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PARTE 3 REPENSANDO CONEXÕES, PROPOSTAS ASSISTENCIAIS

3.3 Educação: diversas formas de saber

A educação surgiu como temática relevante das análises das trajetórias e das reflexões dos colaboradores, assim como das discussões do Fórum de Debates e palestras sobre a situação de rua ou a assistência social (com a implantação do Suas foram freqüentes as palestras e debates em torno do tema). Trata-se de discutir o lugar da educação — concebida como política pública — e das instituições responsáveis pela transmissão de conhecimento. Adoto a posição defendida por Brandão96:

A educação existe no imaginário das pessoas e na ideologia dos grupos sociais [...] A educação existe onde não há escola e por toda parte pode haver redes e estruturas sociais de transferência de saber de uma geração a outra [...].

O autor entende a educação vinculada à cultura como "o lugar social das idéias, códigos e práticas de produção e reinvenção de vários nomes, níveis e faces que o saber possui" (Brandão97).

A preocupação com a produção de conhecimento e com as formas de transmissão foi constante no trabalho de campo. Nas entrevistas, termos como "formação", "informação", "conscientização", "ensinar", "abrir a mente" foram utilizados de maneira recorrente. As reflexões produzidas pelos

colaboradores, assim como as formas de gestão do cotidiano, de construção de redes e participação em determinados circuitos, são expressões de diferentes formas de saber. Santos et al.98 chamaram a atenção para o "confronto de conhecimentos rivais", principalmente entre conhecimento científico e não-científico:

Mas se se assumir, como faz a epistemologia crítica, que todo conhecimento é situado, é mais correto comparar todos os conhecimentos (incluindo o científico) em função das suas capacidades para realização de determinadas tarefas em contextos sociais delineados por lógicas particulares (incluindo as que presidem ao conhecimento científico). [...] é nossa intenção procurar demonstrar que a atual reorganização global da economia capitalista assenta, entre outras coisas, na produção contínua e persistente de uma diferença epistemológica, que não reconhece a existência, em pé de igualdade, de outros saberes, e que por isso se constitui, de fato, em hierarquia epistemológica, geradora de marginalizações, silenciamentos, exclusões ou liquidações de outros conhecimentos. Essa diferença epistemológica inclui outras diferenças — a diferença capitalista, a diferença colonial, a diferença sexista —, ainda que não se esgote nelas.

É possível acrescentar a esta lista as diferenças de classe social, de origem e raça, entre outras. Neste sentido, pode-se perguntar de que maneira os saberes produzidos por este grupo social são dimensionados em nossa sociedade. Pude presenciar um silenciamento bem concreto, quando Anderson questionava as políticas públicas em um evento promovido pela Prefeitura de São Paulo em 2004. A palavra de Anderson parecia revelar a insurgência contra a ordem instituída: enquanto falava, seu microfone foi desligado. Todavia, alguns exemplos positivos podem ser citados, como na

experiência do Fórum de Debates*, em momentos nos quais saberes

diversos eram valorizados ou mesmo na participação de representantes do movimento da população em situação de rua na construção de uma política nacional para esse grupo.

A preocupação com a busca por informação, conscientização e formação em geral foi expressa nas reflexões dos colaboradores. Em suas andanças pela Praça da Sé, espaço de permanência de pessoas em situação de rua, Francisco observou o tipo de literatura acessada e sua importância. Para ele, esta é uma forma de manter aceso o interesse pela sociedade, sendo uma manifestação do esforço pessoal de participação:

— Vou falar uma coisa pra você: aquelas pessoas ali, que estão sentadas no banco, lendo pelo menos esse jornal aqui, Jornal do Metrô — eu passo ali, eu acho importante. Por que eu acho importante? Porque ele não tá desativado do mundo, não desligou todos os botões, não quer saber da sociedade, aquela pessoa que esta lendo ainda tem chance, porque ele tá tentando, ao modo dele, sem ele saber. O subconsciente dele tá tentando alguma coisa. Esse ainda tem chance.

Em sintonia com Francisco, ampliar horizontes e possibilidades através do acesso aos bens culturais é, para Armand, uma forma de conscientizar- se, aumentando as chances de sair de situações desfavoráveis:

— Ao ter acesso à cultura, você tem possibilidade de formular idéias, e ao formular idéias, você tem a possibilidade de sair da situação que você se encontra. Você consegue refletir melhor sobre essas coisas, né? Porque as idéias são fantásticas! Você também consegue ver um outro mundo, que existe muita coisa mais além. Ontem eu estava assistindo um programa que falava sobre o quintal. Algumas pessoas diziam: qual é o seu quintal? Algumas pessoas acreditam que o

quintal é aquilo, é uma coisa pequena. Aí entrevistaram um senhor no Nordeste, e ele achava que o quintal dele era aquela vidinha, e tudo mais. E já uma escritora famosa falava que o quintal dela era o mundo, todas as coisas. Já pra um astronauta seria o universo, e tal. Qual é o seu quintal? O que você se permite a fazer? Hoje eu posso dizer que o meu quintal — eu não posso dizer que o meu quintal é o mundo ou o universo, mas eu posso dizer que o meu quintal é amplo, porque eu sei que tem outras possibilidades.

Para os colaboradores, estas seriam possibilidades de transformação pessoal e coletiva. Por sua vez, Anderson considerou que as lideranças e os militantes de movimentos sociais necessitam de formação: "— Hoje já você precisa ter formação, porque se você não tem formação, você não encara a luta, não é verdade?" A própria participação em processos de reivindicação pode ser compreendida como um processo educativo. Para Gohn99, "[...] o caráter educativo deste processo é dado pela aprendizagem obtida, quanto aos assuntos em tela; pelo papel dos agentes e atores envolvidos; e pelas estratégias ou resistências que são elaboradas".

Formas de aprendizado e de construção de conhecimento foram avaliadas por Anderson e Francisco, os quais defenderam a experiência na prática como uma forma fundamental de construção de conhecimento. Ao refletir sobre sua forma de aprendizado ligada a participação política e às questões da rua, Anderson argumentou:

— A escola que eu tive foi até a sétima série, não tive o primeiro grau completo, não tenho o segundo grau. E aí eu fui aprendendo, vendo como é que se falava, como é que se organizava e participando. [...] Então eu comecei aprendendo, né? O que era organicidade, o que era organização, e também pelo "trecho". Fui andando um pouco por Minas, Rio, e conhecendo um pouco a população de rua já, em outros estados, vivenciando, fazendo lideranças, conversando,

participando da Pastoral, participando de encontros, indo, vendo a organicidade. [...] Principalmente eu que vivi nessa vida de rua, hoje eu posso falar com clareza, porque eu não poderia tá falando da rua se eu não tivesse vivido a rua, né? A gente só pode falar daquilo que a gente vive.

Ao valorizar o saber construído na experiência prática, Anderson também criticou a supervalorização do conhecimento produzido por pesquisadores e pelos técnicos de forma geral.

Francisco criticou a produção de conhecimento que não dialoga com a realidade da população estudada:

— Pra você saber de população de rua, você tem que conviver com a população de rua. Dentro do escritório, se você for escrever, você não vai conseguir, vai sair uma coisa muito superficial. Superficial tem de mais por aí. Pra fazer um trabalho sério, uma coisa com responsabilidade, você tem que fazer exatamente isso que você tá fazendo: andar com a pessoa, ver a realidade dele.

Espaços ligados à religiosidade também foram referidos como situações que favorecem o aprendizado pessoal e fortalecem a construção de um conhecimento compartilhado pelos grupos que freqüentam determinado circuito. Em sua rotina de participação na Igreja Adventista, Pedro tem o estudo da Bíblia, que realiza no seu cotidiano mediante leituras, assistindo a sermões e, todos os sábados, na Escola Sabatina*. Sempre que

encontra uma oportunidade, transmite este conhecimento para outras pessoas. Ele expressou a importância deste estudo:

— De 2001 pra cá, eu vou sempre na igreja, e estou sempre aprendendo cada vez mais. E descobri que a igreja verdadeira de Deus é a Igreja Adventista do Sétimo Dia. Continuo lendo a Bíblia. Eu falo que a

Igreja Adventista do Sétimo Dia é a igreja verdadeira porque está na Bíblia.

Anderson tem também seu espaço de estudo na Escola do Serviço do Senhor, realizada na Casa de Oração do Povo de Rua:

— Então, Escola do Serviço do Senhor é onde a gente estuda, muitas vezes, passagens da Bíblia, do contexto da Bíblia, que nos fazem refletir o conceito de comunidade. Como se fazer comunidade? Como atuar na comunidade? Uma comunidade que não seja a comunidade que explore, aquela comunidade que só olhe pro bem material e que não olha pelo pobre.

Francisco participou da criação da primeira comunidade eclesial de base de Vitória, no Espírito Santo. Ele relatou que

— [...] era época da ditadura, não podíamos falar aberto contra o governo, e nós éramos espertos. Eu comecei a conhecer o Partido dos Trabalhadores nessa época. A gente começou a criar um grupo muito forte. Então, nas reflexões do evangelho, a gente colocava a vida real nossa e jogava o que poderia fazer pra melhorar a situação, que nós estávamos contra essa ditadura. A gente não pode aceitar isso, Cristo nunca foi um ditador, entendeu como é o negócio? Introduzindo uma coisa devagarzinho, não com essas palavras que eu tô dizendo, mas introduzindo uma coisa pra que as pessoas pudessem se politizar mais e ficar esperto com que o governo tava fazendo, contra essa idéia de autoritarismo. Então a gente fazia muito isso, era muito bom, me ajudou muito, demais mesmo! Abriu a minha mente!

Em uma perspectiva mais individual, temos os exemplos de Armand e João da Viola. Armand ressaltou, no trecho a seguir, a importância do acesso à informação:

— [...] o que me dá mesmo suporte é a questão da informação. Gosto muito de ler, principalmente coisas que eu num tenho acesso assim. Sou muito de ficar lendo tudo e analisando as pessoas [...] ficar ouvindo tudo que elas têm a dizer e aprendendo com isso. Acho que é uma coisa que me dá bastante suporte.

João, além da leitura da Bíblia, observou as pessoas para escrever suas composições, através das quais procura transmitir seu conhecimento. Por isso, considera-se poeta e analista.

Parece-me importante observar que — seja pela participação em movimentos sociais, seja em circuitos religiosos ou em espaços de educação formal, seja ainda nas buscas pessoais (como nos exemplos de Armand e João) — todos percebem a importância de seus conhecimentos e preocupam-se com sua transmissão. Não poderia, entretanto, deixar de apontar para a falta de acesso ao ensino formal e as dificuldades enfrentadas para aqueles que entram neste circuito*.

Acredito que os processos de ensino–aprendizagem iluminam as formas de pensar projetos e metodologias de atenção. Freire e Faundez100 afirmaram que "[...] os que detêm o poder detêm o saber". Compartilho, assim, com algumas das reflexões dos colaboradores que enfatizam a necessidade de democratização do saber. É preciso, também, questionar as hierarquias de saber, visto que os conhecimentos técnico-científicos têm sido percebidos e apresentados, em nossa sociedade, como forma única de conhecimento válido. Nesse sentido, acredito que as reflexões de João, Anderson, Francisco, Armand e Pedro, assim como suas histórias, sejam contribuições singulares, que convidam pesquisadores, técnicos e lideranças de movimentos sociais, entre outros, a compreender as diferentes faces

* Um exemplo são as criticas recorrentes aos supletivos, que desconsideram

a condição de adultos de seus estudantes, ao utilizar metodologias de ensino inadequadas para suas respectivas faixas etárias.

inclusive de dominação da equação saber-poder, como já evidenciaram Santos et al.101.

Desde as primeiras pesquisas realizadas pela SAS/Fipe — com o intuito de quantificar e compreender o perfil das pessoas em situação na cidade de São Paulo —, o nível de escolaridade foi uma das características abordadas. Apesar das diferentes abrangências das pesquisas, tais dados podem contribuir para esta reflexão. Por um lado, desde 1993 observa-se a presença nas ruas e em albergues de pessoas com nível universitário, como pode ser observado na Tabela 2.

Tabela 2: Distribuição de adultos em situação de rua com 3º grau completo

Ano da pesquisa Porcentagem

1993 (*) 1,8

2003 (**) 4

2006 (***) 2

Fonte: São Paulo24.

Legenda: (*) Dados referentes a abrigos, casas de convivência e albergues. (**) Dados referentes a pessoas encontradas nas ruas e albergues. (***) Dados referentes aos 22 albergues conveniados com a Smads.

Ainda que em pequena porcentagem, a presença nas ruas de pessoas com formação universitária provoca certa inquietação, ressaltando as mazelas de uma sociedade que não consegue manter integrada nem aquela minoria, teoricamente, de privilegiados que tiveram acesso ao Ensino Superior. Há, ainda, aqueles que concluíram o Ensino Médio e estão em

busca de acesso à universidade, como foi possível acompanhar na trajetória de Armand. Por outro lado, os dados revelam uma grande porcentagem de pessoas com ensino fundamental incompleto (ver Tabela 3).

Tabela 3: Distribuição do nível de escolaridade de adultos em situação de rua (em porcentagem)

Ano Analfabeto/ semi-analfabeto Ensino Fundamental incompleto Ensino Fundamental Ensino Médio 1993 12,6 65,3 16 6 2006 5 61 25 5

Fonte: São Paulo24.

Mesmo com poucos dados, fica evidente o baixo nível de escolaridade entre as pessoas em situação de rua. As possibilidades oferecidas de acesso ao ensino formal, assim como os métodos de ensino para adultos em supletivos, são temas pertinentes e que deveriam se interconectar com as políticas concebidas para esse grupo social. Será que quem está em situação de rua é considerado como possível estudante? Acredito que outros estudos sejam necessários para aprofundar esta discussão.