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Educação para jovens e adultos (EJA) presos: educando para liberdade

3.1 EDUCAÇÃO NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

3.1.1 Educação para jovens e adultos (EJA) presos: educando para liberdade

No começo dos anos 2000, as discussões sobre a educação de jovens e adultos (EJA) se consolidam no âmbito do poder executivo. A publicação do Parecer nº. 11/2000 da Câmara de Educação Básica (CEB) do Conselho Nacional de Educação (CNE) é um momento importante para esta consolidação, em que se buscou estabelecer as diretrizes curriculares nacionais da EJA.

No extenso parecer, foi realizada uma abordagem retrospectiva sobre a educação de jovens e adultos no país. Ao longo do texto, é evidente a preocupação com a “validação do saber que se aprendeu fora dos bancos escolares” (BRASIL, 2000, p. 34) e com as “situações reais” que marcam as vidas dos alunos.

Além disso, também é destacado o objetivo de evitar a desqualificação destes cursos, o que representaria uma “nova negação” de direitos. Neste sentido, o parecer elenca a formação específica para docentes como um dos pontos centrais a serem enfrentados.

A educação de jovens e adultos é retratada como um instrumento “a serviço do pleno desenvolvimento do educando” (BRASIL, 2000, p. 66). Esta noção dialoga diretamente com a ideia de cidadania, incorporada pela LDB e pela Constituição Federal.

Em 2001, no ano seguinte à aprovação do parecer, foi sancionado o Plano Nacional de Educação (PNE), que estabeleceu em sua Meta 17 do capítulo específico de educação de jovens e adultos, a necessidade de implementação de programas de educação em “todas as unidades prisionais e nos estabelecimentos que atendam adolescentes e jovens infratores”.

O projeto Educando para a Liberdade também marca um momento importante no desenvolvimento das discussões sobre educação em prisões, sendo fruto de uma parceria entre os Ministérios da Educação e da Justiça, com apoio da UNESCO e do governo do Japão. Em 2005, os dois ministérios criaram um grupo de trabalho específico para discutir o tema, identificando a permanência de práticas “improvisadas e voluntaristas” sobre educação no sistema prisional.

O projeto tinha duas metas inicias: a “extensão dos serviços regulares”, incluindo a população carcerária nas políticas mais amplas da EJA, e “definição de parâmetros que ajudassem a pautar uma oferta de mais qualidade” (BRASIL, 2006, p. 14). Os objetivos do projeto são espelhados naqueles definidos na constituição Federal e na LDB: “realização pessoal, exercício da cidadania e preparação para o trabalho”.

O Educando para a Liberdade representou uma tentativa articulada de promoção de políticas públicas voltadas à educação em prisões através de três “dimensões”: (i) mobilização e articulação das pastas de Educação e Administração Penitenciária dos estados; (ii) colaboração para organizar o atendimento nas unidades, através formação diferenciada dos professores; (iii) traçar estratégias para que a educação pudesse promover “a autonomia e a emancipação dos sujeitos envolvidos” (BRASIL, 2006, p. 18-19). Para atingir estes objetivos, foram realizados diversos seminários pelo país, convidando os atores do sistema prisional e da educação para uma “construção coletiva”.

Pode-se dizer que a articulação promovida pelo projeto teve efeitos positivos, guardando relação direta com o crescimento das pesquisas e outras experiências educacionais realizadas nas penitenciárias brasileiras.

Ao menos três questões enfrentadas no projeto merecem destaque: a defesa e sensibilização da remição pelo estudo, como meio de reduzir o tempo de pena e tornar mais atrativa a frequência à escola (BRASIL, 2006, p. 26); o estímulo à realização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) nas unidades penitenciárias (BRASIL, 2006, p. 24); e sensibilização pela possibilidade de garantir o voto aos presos não condenados, como forma de exercício da cidadania (BRASIL, 2006, p. 27-28).

Em 2006, foi realizado o Seminário Nacional pela Educação nas Prisões, como resultado do Educando para a Liberdade, sendo elaboradas 40 propostas para educação em prisões, a partir dos pressupostos de que a “educação é um direito de todos” e de que a elaboração de políticas públicas voltadas a concretização deste direito é um caminho para “democratização de toda a sociedade” (BRASIL, 2006, p. 34).

As propostas10 elaboradas neste encontro influenciaram todos os demais documentos elaborados sobre o tema, em diferentes instâncias. Alguns dos principais pontos abordados foram: atribuição de funções de fomento ao governo federal, disponibilização de material didático da EJA, preferência para educadores do quadro das Secretarias de Educação, criação de espaços físicos adequados às práticas educativas, oferta educacional a todos os regimes de privação de liberdade (“independente de avaliação meritocrática”), garantia da remição pela educação e possibilidade de cumulação com a remição pelo trabalho, compatibilidade de horário com as atividades laborativas, certificação “não-estigmatizante das atividades”, incentivo à leitura, formação continuada dos professores, participação das instituições de ensino

superior, apoio de profissionais de outras áreas, possibilidade de participação de alunos com “perfil e formação adequados” enquanto monitores, estímulo ao desenvolvimento de material didático e currículo específico para a educação no sistema penitenciário e participação para o mundo do trabalho.

A partir deste documento, nota-se a tentativa de construir um verdadeiro programa para a educação em prisões no Brasil, buscando definir atribuições, objetivos e práticas a serem concretizadas.

Em 2009, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária publicou a Resolução nº. 3, dispondo sobre as diretrizes para oferta de educação em estabelecimentos prisionais, em expressa referência ao Seminário e ao projeto Educando para a Liberdade. Praticamente todas as propostas mencionadas foram incorporadas. Este é um fato importante, ainda que não tenha havido inovações frente às propostas do seminário, pois representa uma adesão do poder executivo federal – através de um órgão específico de política criminal – ao programa traçado.

No Ministério da Educação, também houve adesão formal ao programa consolidado no seminário, tendo sido publicados o Parecer nº. 04/2010 e a Resolução nº. 02/2010 Câmara de Educação Básica (CEB) do Conselho Nacional de Educação (CNE). Este instrumento também dialoga e reproduz diversos elementos do Educando para a Liberdade e das propostas do Seminário. Partindo do pressuposto da educação como um direito humano a ser garantido e identificando a ausência de uma política homogênea no país, o Parecer fala em propiciar uma “ocupação proveitosa”, “melhoria da qualidade de vida na prisão” e “resultado útil”, como a aquisição de conhecimentos.

No conteúdo da Resolução, foram reforçadas as distribuições de atribuições entre os órgãos públicos, o indicativo das fontes de recursos, a necessidade de atendimento em todos os turnos e a atenção às peculiaridades das unidades prisionais, além de estabelecer a necessidade de contratação de educadores, devidamente habilitados, permitindo a participação de presos tão somente em “apoio ao profissional de educação”.

A LEP também passou por reformas importantes, ao longo deste período, que muitas vezes caminharam no mesmo sentido dos instrumentos normativos aqui destacados. Também em 2010, houve uma modificação na LEP, através da Lei nº. 12.245, impondo a instalação de salas de aula “destinadas a cursos do ensino básico e profissionalizante” nos estabelecimentos prisionais. No ano seguinte, a Lei nº. 12.433/2011 alterou novamente a LEP, regulamentando a possibilidade de obter a remição pelo estudo.

Em 2011, o governo federal publicou o Decreto nº. 7.626/2011, estabelecendo o Plano Estratégico de Educação no Âmbito do Sistema Prisional (PEESP), abarcando a educação básica, profissional e superior. O incentivo a elaboração dos planos estaduais, a contribuição para erradicar o analfabetismo e a viabilidade de condições para continuidade dos estudos do egresso prisional são alguns dos objetivos traçados no Plano.

O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) editou a Resolução nº. 9/2011, estabelecendo as Diretrizes Básicas para Arquitetura Penal, que previa a necessidade de construção de sala específica para atividades educativas nas unidades prisionais.

A divisão de atribuições entre os Ministérios da Educação e da Justiça também é estabelecida no Plano, que impõe a necessidade de previsão de um diagnóstico das demandas educacionais e de estratégias e metas para o atendimento desta demanda.

Em 2012, a Bahia apresentou o Plano Estadual de Educação em Prisões, aderindo ao Plano Nacional e realizando o diagnóstico da oferta de educação no estado. O Plano identificou um grande déficit na oferta de educação em prisões, especialmente no ensino fundamental, em consonância com os dados de escolaridade da população prisional. O Plano identificou o atendimento de 26,77% da demanda, considerando a escolaridade das pessoas presas no estado (BAHIA, 2012, p. 27) e definiu os passos para atendimento das estratégias estabelecidas e das metas do Plano Nacional.

Também em 2012, foi publicada a Resolução do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), com objetivo específico de financiar novas turmas da EJA, prevendo especificamente a meta de contribuir para expansão desta modalidade entre populações vulneráveis e como comunidades no campo, quilombolas e pessoas presas.

Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a Recomendação nº. 44/2013, regulamentando questões referentes a remição pelo estudo. A normativa do CNJ buscou estabelecer os parâmetros para o reconhecimento da remição em relação a (i) atividades de caráter complementar, à (ii) obtenção de certificados dos exames nacionais e à (iii) fixação de critérios para leitura de livros.

Na Bahia, em 2014, o Conselho Estadual de Educação (CEE) editou a Resolução nº. 43/2014, que previa o planejamento de ações de articulação entre educação formal e não-formal nos espaços prisionais. Em 2015, é elaborado um novo Plano Estadual de Educação em Prisões no estado.

Outra mudança na LEP também ocorreu em 2015, através da obrigação de implementar nas unidades prisionais o ensino médio, de formação geral ou profissional, em atenção à universalização prevista na Constituição, por força da Lei nº. 13.163/2015.

O Parecer nº. 05/2015 e a Resolução nº. 04/2016 do CNE estabeleceram as diretrizes operacionais para o reconhecimento da remição pelo estudo.

Por fim, a LDB também passou por modificações recentes que consolidam a educação de jovens e adultos no país. Com a Lei nº. 13.415/2017 ficou estabelecido a necessidade de manutenção do ensino noturno regular, adequado às condições do educando. Já a Lei nº. 13.632/2018 consagrou a aprendizagem ao longo da vida como parte da educação de jovens e adultos.

O Projeto de Lei nº. 7.177/2017 busca inserir na LDB expressamente a previsão da oferta escolar para jovens e adultos, estabelecendo sua realização pelos “sistemas de ensino”, em articulação com a administração do sistema prisional.

Como se percebe pela vasta produção normativa, a educação de jovens e adultos em prisões entrou de vez na pauta das instituições e ganhou espaço enquanto política pública. Julião (2013, p. 17) tem sustentado que o Brasil “ultrapassou a etapa que discute o direito à educação na política de restrição e privação de liberdade”, encontrando-se na fase em que deve “analisar as suas práticas experiências, procurando instituir programas, consolidar e avaliar propostas e políticas”.

No entanto, o cenário já mencionado de ruptura institucional após o golpe de 2016, não demorou a indicar retrocessos na área, através do anúncio da revisão da mencionada Resolução nº. 9/201111 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, revogando, dentre outras coisas, a necessidade de construção de salas de aulas nas unidades novas. O cenário de retrocessos desenhado na nova conjuntura pode influenciar diretamente no desenvolvimento da educação em prisões em um futuro próximo.

Para além da regulamentação e da atuação de diversos órgãos sobre a educação de jovens e adultos, é preciso dialogar com as pesquisas realizadas sobre o tema, buscando compreender de que maneira estes processos têm ocorrido, dentro do cenário complexo do sistema prisional.

11 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/12/13/governo-acaba-com- obrigatoriedade-de-espacos-de-educacao-e-trabalho-em-presidios.htm. Acesso em: 04 jul. 2018.

3.2 O MURO DENTRO DO MURO? PESQUISAS SOBRE EDUCAÇÃO ESCOLAR