• Nenhum resultado encontrado

4 A PENITENCIÁRIA LEMOS BRITO (PLB) E A EDUCAÇÃO ESCOLAR: O

5.1 PERCEPÇÕES SOBRE A EDUCAÇÃO ESCOLAR NA PRISÃO

5.1.5 Trabalho e escola

Poucas vezes ao longo da pesquisa, registrei nas falas dos alunos a vinculação entre a impossibilidade de comparecer às aulas e o trabalho exercido no complexo penitenciário. Apesar disso, é possível perceber que o colégio, de certa forma, disputa espaço com outras atividades, dentre as quais também se incluem rituais religiosos e atividades esportivas (KRAHN, 2014, p. 176; 192-193).

Em um dos momentos em que foi possível verificar relações diretas de interferência entre trabalho e colégio, um aluno atribuía ao trabalho exercido na manutenção de outras unidades da penitenciária (em uma das atividades não remuneradas realizada pelos farda azul) algumas faltas às aulas.

30 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/14/massacre-silencioso-mortes- por-doencas-trataveis-superam-mortes-violentas-nas-prisoes-brasileiras.htm. Acesso em 27 jun. 2018.

A trajetória deste aluno, em seu discurso, é marcada pelo trabalho, desde os sete anos de idade. Ele contou que na infância ajudava os pais na roça, mas sua mãe pagava uma banca particular, aos fins de semana, para que ele estudasse e foi assim que aprendeu a ler. Aos 15 anos, saiu da escola para trabalhar como mecânico e, aos 17, tentou voltar a estudar à noite, mas era chamado com frequência para algum trabalho na estrada, o que inviabilizou sua permanência.

Em seu discurso, portanto, a evasão escolar se deu em razão das necessidades de trabalho. Sua trajetória é marcada por uma tentativa de retorno, mas seguida de nova saída da escola, pelas mesmas razões.

O trabalho, visto como “dimensionador de competência” (CHIES, 2008, p. 53), tem sido elemento importante para as discussões sobre o chamado mundo do crime e suas fronteiras. O discurso apresentado por um preso ao longo da pesquisa – que no módulo IV não encontraria pessoas envolvidas com o crime – dá a entender que há uma dissociação entre estar preso e se identificar com o mundo do crime. Tensões contemporâneas entre estes papéis sociais foram trabalhadas em detalhes na pesquisa etnográfica de Feltran (2011, p. 135-166).

A questão torna-se ainda mais complexa se observada as constatações de José Ricardo Ramalho (2008, p. 83), de que o trabalho na prisão “parecia não abrir apenas oportunidade para o mundo do trabalho”. O próprio trabalho lícito, valorizado enquanto marcador ético, pode ser instrumentalizado para fins ilícitos na prisão. A existência do filtro institucional pelo comando na cadeia, em relação às ocupações das funções, coloca uma questão sobre a possiblidade de instrumentalização de determinadas atividades por estes grupos.

Para Chies (2008, p. 57-58), há uma distância das motivações dos presos para exercer o trabalho na prisão – ligadas a ganhos mais diretos como redução da pena – e o discurso estatal que tem no trabalho um valor ético-social importante, capaz de modificar o indivíduo. Os pressupostos estatais, são preconceituosos, como bem afirma Chies, “imputando ao apenado a condição de não trabalhador ou trabalhador falho”.

Para além disso, destaco a ocasião em que uma professora relatou que um frente de cadeia havia se matriculado em sua turma, que já estava bastante cheia. Ela demonstrava preocupação com a matrícula de outros alunos a partir da atitude do frente, mas acredita que, de certa forma, aquela procura “valoriza a escola” perante os internos.

A distribuição de poder e das posições de comando nas penitenciárias estão ligadas a grupos mais ou menos organizados, que gerenciam os mercados no pavilhão e impõem regras

ao convívio. A liderança, nas prisões brasileiras, não é distribuída exclusivamente em razão das características pessoais de um determinado preso bem considerado, corajoso, generoso ou destemido (CLEMMER, 1938, p. 867). Em geral, as lideranças têm ligações com algum grupo que disputa comércios ilegais, dentre e fora da prisão, operando no espaço que Godoi (2017, p. 77) chamou de “vasos comunicantes” do cárcere. A consolidação destas lideranças no sistema carcerário baiano foi ressaltada no capítulo anterior.

Em outra ocasião, um aluno afirmou que já havia sido frente de cadeia, em uma passagem anterior na penitenciária, em outro módulo. Em sua fala, era possível notar certa perda de prestígio e contraposição de grupos interessados no comércio de drogas, o que, segundo ele, não era permitido, em sua época. Na sua volta à penitenciária, há dois anos, não ocupava mais a posição de liderança.

Se é verdade que as atividades do colégio são frequentadas por uma minoria dos presos, é também possível perceber que, mesmo em casos em que há uma identificação mais direta do preso com o comando ou ao “mundo do crime”, a escola pode ser vista como um espaço a ser procurado.

É possível perceber também alguns problemas similares em relação a adultos trabalhadores que estudam dentro e fora da prisão (BARRETO, 2017, p. 26). O cansaço é a marca destes trabalhadores-estudantes. Era possível perceber, em alguns momentos, um estado de exaustão: alguns alunos, às vezes de olhos fechados, esfregando os olhos ou com a cabeça sustentada pelas mãos. Em alguns momentos, os alunos afirmaram estar com dor de cabeça, para dar satisfação à professora de eventuais desatenções.

Na qualidade de pesquisador, também senti na própria pele a sensação do cansaço durante algumas aulas, nas quais o sono me desviava a atenção, após uma jornada dupla de trabalho durante o dia.

Em uma determinada aula, foi pedido que os alunos indicassem adjetivos que servissem para descrever seu dia. Havia um grupo que classificou o dia como cansativo, trabalhoso,

difícil, relacionando, em alguns momentos, estas qualidades com a jornada de trabalho. Outro

grupo classificou o dia como bom, mole, feliz, tranquilo. Um dos alunos justificou que o dia foi

mole porque descansou, não precisou trabalhar.

Destas declarações é possível perceber, além da postura mais reservada de alguns alunos, que não procuraram explicar o porquê dos adjetivos empregados, o trabalho cumulado com as atividades da escola é uma atividade extremamente cansativa. Por outro lado, há um certo tom

de resignação em certas falas, que podem indicar que saber tirar a cadeia32 exige a capacidade de conseguir viver dias bons.

O trabalho, se não faz com que o aluno se ausente da sala, mas esgota as energias, também surge como algo que dificulta a realização de tarefas. Um aluno afirmou que “lá [na cela] não tem tempo, não. Acordo cedo, pego a rampa e vou para o serviço o dia todo. Só tem tempo aqui e no fim de semana”.

Se por um lado, cumular o trabalho com os estudos, prejudica a realização de atividades, por outro, é possível notar também que a soma destas atividades deixa pouco tempo ao indivíduo para ficar na cela ou no pátio.

Uma questão essencial a ser refletida é a exploração da mão de obra dos presos, sem qualquer garantia de direitos trabalhistas (FERNANDES; MATOS, 2016, p. 172-173). Além disso, os objetivos disciplinares da administração na gestão das poucas vagas de trabalho também são evidentes. Como já indicado, a grande maioria dos trabalhadores da penitenciária sequer tem remuneração, aceitando as jornadas de trabalhos exaustivas em troca de vantagens mais pragmáticas no interior da prisão e da possibilidade de remição da pena.

No geral, parece que o horário não é uma barreira para participar das atividades do colégio, ao menos neste módulo, que fica localizado próximo às oficinas. A opção por acumular as atividades na prisão, além das relações peculiares com o tempo, apresenta algumas peculiaridades em relação ao trabalhador que estuda nas escolas fora da prisão. Os deslocamentos, por exemplo, que são um grave problema para grande parte dos trabalhadores brasileiros, não são um problema na prisão, ao menos quando as aulas ocorrem nos próprios módulos. Arroyo (2017, p. 22-24) trabalha a partir dos desafios dos “passageiros da noite”, que amanhecem cedo o dia e vão para a escola no início da noite. Os obstáculos espaciais, na prisão, são outros, materializados nas trancas, agenciadas pelo comando da cadeia ou pelos agentes, e não nas distâncias.

Na fala de um dos alunos, passando em revista o momento que o levou à evasão escolar, afirma que via “as pessoas formadas sem emprego”. Este tipo de visão marca certa dissociação da formação escolar com vantagens futuras e possibilidade de melhoria de vida. A educação ora é encarada como meio de mudar de vida e conseguir melhores posições, ora é vista como algo dissociado das oportunidades de trabalho e sustento (KRAHN, 2014, p. 190).