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Educação popular: um projeto a serviço do regime

É nesse terreno de confrontos políticos, econômicos e ideológicos que o aparelho educativo do país, também, se articulava. No final dos anos 50, liberais e educadores de esquerda, ao defenderem uma educação cidadã que possibilitasse a formação do homem integral e participativo, promoveram um movimento em defesa da escola pública que se traduziu em manifesto, no auge das discussões e conflitos que antecederam a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. A questão ia além do simples confronto entre os partidários da escola privada, normalmente confessional católica, e os defensores da escola pública, gratuita, obrigatória e leiga.

A propósito disso, vejamos o exemplo do Nordeste, onde atuavam educadores compromissados com as mudanças propostas. Diga-se que a região se caracterizava por ser uma área explosiva com mais de 50% de analfabetos. Segundo Scocuglia, ao estudar os movimentos de alfabetização e cultura popular, implantados na região entre 1960 e 1964, vemos que os mesmos objetivavam desenvolver um trabalho de alfabetização de adultos, mas, fazendo uma leitura do pensamento dos seus líderes, a educação e a cultura seriam objetivadas do ponto de vista das necessidades, dos valores e da capacidade de mobilização e organização do povo (Scocuglia, 2001, p. 51).

Cabe acrescentar que a teoria do conhecimento de Paulo Freire, aplicada à educação, torna evidente a vitória dos vencidos, na medida em que esses foram subjugados pelo golpe. Merece destaque, também, a reação dos setores dominantes, os quais procuraram calar as vozes dos “vitoriosos”, os quais haviam sido produtos do movimento conscientizador da educação popular. Em suma, a ação desses educadores populares, fundamentada nas propostas pedagógicas de Paulo Freire, constituiu-se num marco importante para os movimentos sociais brasileiros, num momento de efervescência ideológica (Almeida, 2002, p. 9-27).

Cunha & Góes (1985, p. 32) fazem ver que o governo militar não precisou ir longe para encontrar ajuda no controle do sistema educacional, pois à mão estava a sua fonte de poder: a Aliança para o Progresso. A USAID, agência confiável, desincumbiu-se da missão, subordinando a educação à ditadura do capital.

Romanelli (1987, p. 201), ao tratar da estratégia de ajuda posta em prática pela USAID para o desenvolvimento da educação brasileira, ressalta que essa cooperação passava por fases e obedecia a pontos definidos, ao mesmo tempo em que vinculava tal

ajuda a determinados compromissos de natureza financeira, sobretudo no caso dos países mais pobres ou menos industrializados, como o Brasil.

Prosseguindo sua análise, Romanelli na mesma passagem citada acima, afirma que a construção de escolas, elaboração de estudos, transporte de material e fornecimento de pessoal favoreciam o país assistente, porque apenas uma pequena parte da ajuda aproveita mão-de-obra local. Os países beneficiários, por outro lado, são obrigados a pagar preços superiores aos preços mundiais e a se responsabilizarem por fretes de transporte e seguro junto às empresas dos países de origem. Isso tudo significa dizer que a ajuda termina por favorecer o próprio ajudante, acarretando muitos encargos ao ajudado.

Em O golpe na educação, ao abrirem o capítulo Os acordos MEC-USAID: em direção aos ‘anos de chumbo’, Cunha & Góes afirmam, também, que a tomada do poder em 1964 não foi um simples golpe latino-americano [...] e sim uma articulação política de profundas raízes internas e externas, vinculadas a interesses econômicos sólidos e com respaldos sociais expressivos (1985, p. 32).

Sob esse olhar, a proposta de uma educação social libertadora, em função dessa influência norte-americana, foi substituída por um novo modelo de educação social para o mercado. O conceito de educação muda substancialmente porque a tendência do planejamento educacional de ser relativamente favorável à especialização, em oposição aos outros níveis, deve ser vista no contexto da especificidade da economia brasileira (Dreifuss, 1981, p. 442).

Educação e trabalho interligam-se não no sentido da formação do homem integral, como pensavam os pedagogos humanistas, mas numa visão puramente economicista. A partir do momento em que a educação é encarada como capital humano, ou seja, um investimento como outro qualquer, capaz, portanto, de produzir lucro social e individual, ela deixa de ser vista como um processo de transmissão da cultura geral da humanidade, do conhecimento universal. Isso quer dizer instrumentalizar para o trabalho. O indivíduo é encarado como um ser produtivo. Sob esse novo olhar, a educação passava a ter um enfoque profundamente utilitário e imediatista, o que leva Dreifuss a chamar a atenção para o fato de que:

o Estado, já sendo o mediador da empresa privada no processo de internacionalização da economia, assumiu o ônus da formação dessa mão-de-obra disponível, contribuindo, assim, diretamente, para a formação de um exército industrial de reserva, tanto de pessoal executivo e de profissionais qualificados, quanto de mão-de-obra industrial especializada, através das instituições de ensino superior e através do MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização (1981, p. 443).

Nesse sentido, Dreifuss (1985, p. 443) lembra que a substituição da criativa experiência de Paulo Freire e do Movimento de Educação de Base não foram casuais. Assim, quando o governo militar implantou, por algum tempo, sobretudo no Nordeste, a Cruzada ABC, dirigida por um pastor norte-americano, ele tinha um objetivo direto: refrear expectativas, restringindo a formação de uma perspectiva crítica.

Logo em seguida, veio o projeto definitivo com o Movimento de Alfabetização de Adultos, MOBRAL, instituído sob a égide de Mário Henrique Simonsen, um dos magos do modelo econômico que se implantara no Brasil. Para dirigi-lo, foi escolhido Arlindo Lopes Correa, o qual havia delineado um dos planos de mobilização da classe média, empregados pelo IPES, a fim de criar a atmosfera política e emocional propícia para o golpe de abril de 1964 (Dreifuss, 1985, p. 443).

Vanilda Paiva (1987), em Educação popular e educação de adultos, ao analisar a atuação do MOBRAL, mostra que entre sua criação, como órgão encarregado de promover a educação dos adultos analfabetos, através da Lei 5.379 de 15 de novembro de 1967, e o momento em que se torna entidade executora, com o lançamento de seu programa de alfabetização, em 1970, o MOBRAL tem uma longa trajetória a qual inclui a criação de um Grupo Interministerial, um vínculo com a UNESCO de curta duração e sua conversão em campanha de massa com objetivos político-sociais.

Inicialmente, segundo Vanilda Paiva, o plano a ser executado pretendia atingir a 11.400.000 analfabetos entre 1968 e 1971, para que se pudesse pensar na extinção do analfabetismo até 1975. Diz, ainda, Vanilda que a lei que criou o MOBRAL veio acompanhada de decretos que já poderiam dar uma idéia do novo interesse pelo problema. Os decretos aos quais ela se refere tratam da utilização das emissoras de TV nos programas de alfabetização, da constituição da Rede Nacional de Alfabetização Funcional e Educação Continuada de Adultos e da educação cívica nas instituições sindicais e a campanha em prol da extinção do analfabetismo. Vanilda Paiva conclui,

dizendo que as deficiências da campanha alfabetizadora começaram a exigir a oferta de uma educação mais extensa, através do rádio ou da integração do programa com os sistemas supletivos estaduais (1987, p. 292-298).

Dreifuss demonstra que o MOBRAL destinava-se a cooptar e conter o trabalhador urbano. Assim, o governo impôs uma campanha de alfabetização de caráter explicitamente ideológico, destinada a instalar nas classes trabalhadoras urbanas os valores do capitalismo autoritário (1985, p. 443).

Na ação pedagógica do MOBRAL, há um item curioso. Seus criadores optaram pela utilização de técnicas de alfabetização do banido Paulo Freire, mas tiveram o cuidado de retirar delas seu conteúdo filosófico e político, substituindo-o pela ideologia posta em prática pelo governo militar (Dreifuss, 1985, p. 443-444).

O MOBRAL, portanto, não era uma figura estranha ao modelo educacional que o governo militar decidira implantar, muito menos ao modelo econômico. Se do ponto de vista operacional, o regime servia-se da repressão, das prisões, das torturas e, até de assassinatos, no que diz respeito ao assessoramento ideológico, assistência técnica e cooperação financeira, o governo se utilizaria, como foi dito acima, de dois instrumentos postos à sua disposição, no auge da Guerra Fria: a Aliança para o Progresso e a Agency International for Development, AID.

Esses organismos norte-americanos de cooperação internacional, segundo Maria Luisa Santos Ribeiro (1992, p. 166), incentivam as atividades dos vários grupos de especialistas brasileiros e norte-americanos, das quais resultam os acordos MEC / USAID (Ministério da Educação e Cultura / United States Agency International for Development). Tais convênios, no entendimento de Romanelli (1987, p. 196-197), tiveram o efeito de situar o problema educacional na estrutura geral de dominação, reorientada desde 1964, e de dar um sentido objetivo e prático a essa estrutura, fazendo com que os órgãos passassem a ter, também, uma função mediadora entre os interesses externos e os internos na reorganização da educação brasileira.

Em 1971, a ditadura militar, também com assessoramento de técnicos americanos do MEC-USAID, promoveu a reforma do ensino de 1º e de 2º graus, uma de suas peças mais significativas na política educacional. Estabelecida através da Lei 5.692/71, as mudanças se adequavam à nova ideologia, recriando o ensino profissionalizante.