• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 – REDES SOCIAIS E (AUSÊNCIA DE) POLÍTICAS

3.1 REDES SOCIAIS E MIGRAÇÃO INTERNACIONAL

3.1.5 Educação, Trabalho e Religião

Em um sábado pela manhã, em março de 2016, acompanhei Mark no curso de língua portuguesa para estrangeiros/as que ele estava fazendo. Naquele dia ao invés de aula de português haveria um workshop sobre empreendedorismo. Quando cheguei ao local, notei que estavam servindo café da manhã. Mais tarde, ao conversar com a coordenadora, ela me revelou ter percebido que muitos/as dos/as solicitantes de refúgio iam ao curso com fome e, por isso, a escola começou a servir comida e bebida antes de todas as aulas.

Mark chegou junto com seu namorado e outros dois rapazes de Serra Leoa com os quais morava. Era o primeiro dia desses dois na escola. Ao começar o curso, Mark sentou-se à frente, em uma das primeiras filas de carteiras, junto com os outros dois serra-leoninos. Seu namorado ficou bem mais atrás, em uma das últimas fileiras, sozinho, e permaneceu a maior parte do tempo mexendo no celular. Em dado momento, a coordenadora foi até ele e pediu para que parasse de usar o celular e prestasse atenção no curso. Ele acatou, mas continuava parecendo entediado.

Mark, pelo contrário, participou ativamente do curso. Na hora das apresentações, levantou-se e contou – em voz bem alta – que em Serra Leoa teve uma empresa e que pretendia abrir uma em breve no Brasil. No decorrer do workshop, o palestrante pediu para que alguém contasse experiências que tinha vivenciado com o seu próprio negócio. Mark se levantou novamente e relatou sobre seu empreendimento, que era na área de tecnologia.

Poucas semanas depois Mark conseguiu um emprego e, por ter que trabalhar aos sábados de manhã, parou de frequentar as aulas de português. Seu namorado também não seguiu no curso, mesmo não tendo ainda arrumado trabalho.

Foi um conterrâneo que conseguiu a vaga para ele. Conheciam- se de Serra Leoa, mas Mark não sabia que o outro estava no Brasil, só tendo descoberto isso depois de algum tempo em São Paulo. Trabalha concertando celulares em uma lojinha de uma região de comércio popular no centro da cidade. Reclamou de seu chefe, que apesar de morar perto do serviço só chega às 10h, sendo Mark – que mora longe – quem tem que abrir a loja às 8h. “The problem I have at my job: I have so much responsibility. Because my boss, he is not so careful, so I have to look out for him all the time. Every day I have to come and open because he sleeps like a baby”.

Seu chefe é libanês. Quando fui encontrar com Mark em seu serviço a fim de conhecer o local e depois conversarmos em outro lugar

próximo dali, o chefe quis saber quem eu era. Mark disse que éramos amigos. Quando estávamos indo embora, o libanês disparou: “go fuck yourselves!”, frase que pode ser traduzida como “vão se foder!”. O verbo “fuck” em inglês, como “foder” em português, está majoritariamente associado a uma forma vulgar de se referir a relações sexuais. Desse modo, tal frase pode ser interpretada como um ato discriminatório de homofobia69: o chefe de Mark estava supondo que íamos ter uma relação sexual e tal suposição se baseava nas constantes acusações que Mark recebe de ser gay, ainda que não tenha falado sobre sua orientação sexual no ambiente de trabalho.

Mark: They don’t know I am gay. I don’t tell him. Pesquisador: And you are not going to tell them? Mark: No.

Pesquisador: Why?

Mark: Because they are Lebanese people. They

are different, Arabic people. I want to keep it like that.

Pesquisador: But do you guess he thinks you are

gay?

Mark: Sometimes he tells me “you are gay”. Pesquisador: And you say nothing? Mark: I just laugh.

(Trecho da entrevista com Mark, 31-35 anos, solicitante de refúgio de Serra Leoa – 05.05.2016). Portanto, ainda que não queira contar sobre seu relacionamento com outro homem para os companheiros de serviço, a presunção da não- heterossexualidade de Mark faz com que seu chefe o discrimine. Mark justifica tal discriminação pelo fato do chefe ser árabe, e, portanto, “diferente”, dando como resposta somente risadas.

Durante entrevista que realizei com a funcionária de uma organização cujo foco é auxiliar refugiados/as e solicitantes na inserção do mercado de trabalho em São Paulo, ela afirmou que a maior parte das pessoas não-heterossexuais em situação de refúgio não menciona a sexualidade justamente pelo medo de ser discriminada:

      

69 Ainda que não se referisse a um ato sexual, trata-se de forma bastante rude e desrespeitosa dizer “go fuck yourselves!” para outras pessoas, em especial quando não se tem uma relação de intimidade com elas (caso este que poderia se caracterizar como uma jocosidade entre amigos/as).

Poucos são os refugiados que abertamente compartilham sua opção de gênero [orientação sexual] conosco, muitos deles advém de países muito religiosos que culturalmente e socialmente realizam opressão de gênero, ou de países onde a discriminação por opção sexual é legalizada. Por essa razão, observamos que boa parte dos nossos cadastrados não compartilha seu gênero [orientação sexual], pois acreditam que aqui poderão também ser descriminados. Temos conhecimento de candidatos [não-heterossexuais] contratados, porém essa informação não foi compartilhada por eles no momento do cadastro, mas sim no momento da entrevista do CONARE. (Trecho de entrevista com funcionária de organização que trabalha com a inserção de refugiados/as e solicitantes de refúgio no mercado de trabalho em São Paulo – 03.03.2016).

Enzi trabalhava como eletricista na Nigéria e sua vontade era ter uma ocupação nesta área no Brasil. O emprego que conseguiu, entretanto, foi em uma fábrica de macarrão. É um trabalho braçal e que exige muito fisicamente: sua função é levantar sacos de 50 kg de farinha e despejar o conteúdo em uma máquina. Em uma das vezes que nos encontramos, Enzi me mostrou as marcas em suas mãos, devido aos esforços que o trabalho lhe impunha. Em outro momento, reclamou de dores na coluna:

Enzi: My spinal cord is disturbing me. Pesquisador: Have you been to the hospital? Enzi: No when I complained to the boss they said

they will see what they will do about it. They have not giving me the opportunity to go to hospital. (Trecho de conversa de WhatsApp – 17 de fevereiro de 2016).

Além de Enzi, outros dois funcionários têm a mesma função na fábrica. Os três são negros, como destacou o nigeriano. Um deles é brasileiro e o outro também veio da Nigéria. Foi esse conterrâneo que conseguiu o emprego para Enzi. Não são amigos, apenas colegas no serviço e não se encontram fora do ambiente de trabalho. Esse outro nigeriano tratava muito mal a Enzi: sempre gritava com ele, agindo como se fosse o seu chefe. Mas não era supervisor, nem o responsável pela área, sua função era exatamente a mesma que a de Enzi. Como estava no

emprego há mais tempo e tinha arrumado a vaga para o compatriota, sentia-se no direito de maltratá-lo. Enzi não contou ao companheiro de serviço o motivo pelo qual havia vindo ao Brasil e solicitado o refúgio.

Após várias reclamações com os superiores devido às constantes dores provocadas por sua função, Enzi foi mudado de setor. Pouco tempo depois, no entanto, foi demitido.

I was told to stop my work today I was shifted to another department In my work place this Monday As result of the pains on my back

All to my surprise I was working in the department they posted me. My boss called me to stop work that my service is no longer needed

When I asked why he said as a result of my health status

I am not fit to do the work

I said to him but I have not complained in the new department you posted me

And not only that they said they were not going to pay me any benefit for working with them for 4 months.

(Trecho de conversa de WhatsApp enviada por Enzi – 31 de março de 2016).

Recomendei que procurasse a Instituição para conversar com um/a dos/as advogados/as e verificar as questões trabalhistas envolvidas em sua demissão.

Em relação à inserção no mercado de trabalho, as redes sociais pautadas em conterrâneos/as se mostraram relevantes tanto para Mark como para Enzi. No caso de Enzi, o conterrâneo se colocava em uma posição de superioridade – ainda que tivesse exatamente a mesma função – pelo fato de ter sido ele quem arrumou o emprego, estando, portanto, há mais tempo na empresa.

Enzi é cristão. Várias vezes me enviou mensagens de teor religioso pelo WhatsApp. Ir à igreja é algo que o agrada muito. Há algumas perto de sua casa, na periferia de São Paulo, mas ele não as frequenta porque as celebrações são feitas somente em português. Continua se deslocando, aos domingos, até o centro – onde residia anteriormente – para participar do culto em uma igreja evangélica africana. Em março de 2016, acompanhei-o em uma dessas celebrações.

Chegamos, conforme o combinado, por volta das 11h, mas depois Enzi me informou de que a celebração começa sempre às 10h. Ele é bem relacionado na igreja, as pessoas o conhecem e cumprimentaram- no assim que chegamos. Os frequentadores são majoritariamente homens e nigerianos, mas também havia angolanos e alguns poucos/as brasileiros/as. É um culto bilíngue: tudo o que é dito em português é traduzido para o inglês consecutivamente e vice-versa, com exceção das músicas que são entoadas.

Havia um pastor visitante, brasileiro. Em sua fala, destacou que é preciso trazer mais africanos/as para estudar no Brasil e arrumar bons empregos para eles/as. Um dos pastores, que é angolano, também destacou, em seu pronunciamento, programas que fornecem entre 200 a 600 bolsas de estudos para africanos/as em diferentes países, entre os quais o Brasil. Por fim, o pastor principal, nigeriano, em seu discurso afirmou querer que os/as negros/as dominem o mundo e que ao invés de desejar que trabalhem nas grandes empresas, quer que eles sejam os donos desses negócios.

Percebi que apesar de o culto começar às 10h, a maioria dos/as frequentadores/as chega por volta das 13h. O encerramento é às 14h e, logo após, a igreja serve, gratuitamente, comida e bebida a todos/as os/as participantes. Enzi ajudou a servir a comida e na distribuição das bebidas. Provavelmente, algumas das pessoas que frequentam a celebração fazem isso também pelo almoço que é servido no encerramento e por isso chegam mais próximas do final.

Essa igreja evangélica africana se mostra como uma rede de apoio para os/as africanos/as, em especial os/as que vêm da Nigéria. As celebrações são feitas em inglês além de português, o que incentiva que participem, pois entendem o que é dito (caso do próprio Enzi); há um discurso motivacional e antirracista; por fim, há a distribuição de comida e bebida para os/as participantes. Essa rede de apoio, entretanto, não atua no que diz respeito a não-heterossexualidade. O discurso da igreja não é favorável àqueles/as que mantêm relacionamentos e/ou possuem desejos por pessoas do mesmo sexo; não se trata de uma igreja “inclusiva”. Nenhum/a daqueles/as que frequentam o culto sabe o motivo pelo qual Enzi solicitou o refúgio no Brasil.

O caso de Solomon também é ilustrativo a esse respeito. Como mencionado acima, afirmou que praticava “gayism” em Gana e que pretendia parar com essa “prática”. Quando o indaguei sobre o porquê, disse-me acreditar que aquilo não era algo bom. Na sequência, contou-me que está frequentando uma igreja evangélica e que entendeu, graças ao discurso religioso, que as práticas com pessoas do mesmo sexo não são

adequadas. Na igreja que frequenta, não comentou sobre os relacionamentos que teve com outros homens. Relatou que já não se envolve com pessoas do mesmo sexo há algum tempo.

Como mostrado no capítulo anterior, 68% das pessoas não- heterossexuais em situação de refúgio cadastradas na Instituição se declararam cristãs (51% “cristãs” e 17% “católicas”, nos termos nativos) e 12% “muçulmanas”. Tendo esses dados em mente, percebe-se que as organizações religiosas podem ser redes importantes para solicitantes de refúgio e refugiados/as não-heterossexuais, como nos casos de Enzi e Solomon. Suas sexualidades, entretanto, não só não são aceitas, como são combatidas pelo discurso religioso. Enzi continua frequentando a igreja e não comentou querer cessar com seus desejos e práticas com pessoas do mesmo sexo; já Solomon, por participar desse espaço, passou a crer que não deve mais se envolver com outros homens, ainda que tenha vindo ao Brasil justamente porque em seu país esses relacionamentos colocavam a sua vida em risco.