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CAPÍTULO 2 – PERFIL DAS SOLICITAÇÕES DE REFÚGIO

2.3 DADOS DA INSTITUIÇÃO REFERENTES ÀS SOLICITAÇÕES DE REFÚGIO

2.3.1 Gênero

No que diz respeito ao gênero de solicitantes de refúgio e refugiados/as por orientação sexual que se cadastraram na Instituição, a grande maioria são homens: 88%.

Gráfico 1. Gênero das solicitações de refúgio por motivos de orientação sexual

Fonte: Dados da Instituição tabulados por Vítor Lopes Andrade, 2016

Não há dados para se pensar que o número de pessoas não- heterossexuais do gênero feminino nos países de origem seja menor do que o de pessoas do gênero masculino. Desse modo, há três hipóteses a respeito desse cenário.

A primeira é que pode haver um “mascaramento” dos dados. Ao enquadrar essas mulheres em um dos critérios de solicitação de refúgio, pode ser que entrem em “grupo social”, mas caracterizando uma perseguição de gênero e não de orientação sexual. Pensemos, por exemplo, em uma mulher lésbica que foi forçada a se casar em seu país de origem. O fundamento do seu pedido de refúgio no Brasil pode ser enquadrado como uma perseguição de gênero (por ser mulher, foi obrigada a se casar) e não de orientação sexual (era uma mulher lésbica e teve que se casar com um homem). Ainda assim, ao que tudo indica, chegam ao Brasil muito mais homens do que mulheres para solicitar o refúgio devido à orientação sexual. Esse cenário parece ser uma constante em diferentes países: “os homens gays preponderam numericamente

88% 12%

Masculino Feminino

dentre as solicitações de refúgio baseadas na orientação sexual e identidade de gênero” (ACNUR, 2012, p. 6) 33.

Ademais, as porcentagens seguem a tendência geral de solicitações por gênero feitas ao CONARE e da quantidade de cadastros por gênero realizados na Instituição (independentemente da orientação sexual), ou seja, um número bastante superior de homens em relação a mulheres. Nota-se, portanto, ser mais interessante analisar os contextos referentes aos países de origem a fim de levantar outras hipóteses do porquê o número de solicitações de homens é tão maior em comparação ao de mulheres.

Como será discutido abaixo, dos Estados que criminalizam as relações consentidas entre adultos/as do mesmo sexo, a maioria se encontra nos continentes africano e asiático34. A quase totalidade de solicitantes que se cadastraram na Instituição alegando perseguição por orientação sexual é proveniente de países da África. São, no geral, sociedades altamente patriarcais35. Assim, há, via de regra, diversas opressões para mulheres não-heterossexuais: “com frequência, lésbicas sofrem múltiplas discriminações em razão do seu gênero, do seu status social e/ou econômico inferior e da sua orientação sexual” (ACNUR, 2012, p. 5). Outrossim, “mulheres podem ter menos oportunidades econômicas do que homens, ou podem não estar aptas a viver separadamente dos homens membros da família” (ACNUR, 2012, p. 24). Desse modo, a segunda hipótese no que tange ao porquê o número de solicitações por orientação sexual se apresenta menor entre mulheres é que provavelmente para elas é mais difícil conseguir emigrar.

De acordo com Uriarte e Etcheverry, “é possível dizer que [a] divisão de tarefas e de espaços sociais por gêneros é determinante na configuração do fenômeno migratório” (2012, p. 72-73). Essa afirmação é feita ao se estudar os motivos pelos quais jovens homens nigerianos são       

33 Destaca-se que a maior parte dos Estados não disponibiliza dados oficias acerca das solicitações de refúgio motivadas por perseguição ou fundado temor de perseguição em relação à orientação sexual.

34 Na África, 34 países condenam legalmente as práticas sexuais consentidas entre homens adultos, dos quais 24 criminalizam também os atos entre mulheres. Na Ásia, são 23 os Estados que possuem essa punição para homens, dos quais 13 aplicam também às mulheres (CARROLL, 2016).

35 Essa informação consta no relatório “Violence based on perceived or real sexual orientation and gender identity in Africa”, 2013, p. 11. Disponível em: http://www.cal.org.za/wp-content/uploads/2013/07/English-SOGI-

Booklet.small_.pdf. Acesso em: 21 dez. 2016. O relatório foi elaborado por uma coalização de organizações não governamentais de direitos humanos.

estimulados a emigrar. Os autores não fazem uma análise a partir da categoria orientação sexual, isto é, pressupõe-se que estão falando de sujeitos/as heterossexuais, mas, ainda assim, o debate que fazem se mostra interessante. Para Uriarte e Etcheverry (2012, p. 71), a emigração de jovens nigerianos não deve ser vista somente como uma estratégia em busca de melhorias financeiras, uma vez que também é impulsionada por uma impossibilidade de se projetar no futuro e na comunidade de uma forma positiva:

Tanto uma análise da posição social desses jovens quanto de seus próprios relatos caracterizam-nos como sujeitos sem um espaço social onde se localizar, e sem possibilidades de construí-lo. Essa impossibilidade se desagrega em duas, estreitamente vinculadas entre si: a impossibilidade para achar um emprego estável em concordância com o nível de estudos que eles alcançaram e a impossibilidade de gerar os recursos para se casar, manter uma família e, portanto, tornar-se adultos (URIARTE E ETCHEVERRY, 2012, p. 72). Ou seja, esses jovens são impulsionados a emigrar para garantir um status econômico condizente com o seu nível de estudos; entretanto, dentro de um contexto patriarcal, a questão econômica está também vinculada a um status social: conseguir um bom emprego para manter uma família, já que ao homem cabe o papel de sustentar uma mulher e os/as filhos/as. “Os homens são, ou deveriam ser, os donos do seu destino e por isso decidem migrar” (URIARTE E ETCHEVERRY, 2012, p. 73). O que essa análise acerca de homens supostamente heterossexuais pode nos dizer em relação ao fato de ser mais difícil para mulheres não-heterossexuais conseguirem emigrar para solicitar o refúgio? Em muitos dos que seriam os países de origem das solicitantes de refúgio, as mulheres não são estimuladas a serem “donas de seu próprio destino”, pelo contrário, a elas cabe viver de acordo com o estipulado por seus pais, irmãos ou maridos. Assim, o fato de serem mulheres (independentemente da orientação sexual) faz com que a emigração seja mais difícil para elas, uma vez que normalmente dependem social e financeiramente dos homens da família e não faz parte do universo referente aos seus papeis de gênero a saída do país, ao menos não desacompanhadas. Vê-se, portanto, que às mulheres não- heterossexuais recaem não só suas orientações sexuais, mas também seu gênero: trata-se da intersecção das duas categorias no que diz respeito à

opressão e à discriminação. A escritora nigeriana Unoma Azuah ao revelar as pressões sociais e os medos a que suas entrevistadas – mulheres nigerianas lésbicas e bissexuais – estavam submetidas, como a expectativa de precisar se casar e ter filhos, assédio sexual por parte de seus empregadores e ameaça de serem estupradas, afirma “these are not lesbian or bisexual issues, but the result of a much larger patriarchal structure” (AZUAH, 2011, p. 57).

Ainda de acordo com Unoma Azuah (2011, p. 46), tanto homens quanto mulheres são vitimados/as sob o sistema patriarcal e opressivo que reina na Nigéria, mas de maneiras diferentes. Para a autora, a homossexualidade é um dos mais fortes desafios ao patriarcado, e, portanto, há diversas estratégias de controle em relação a essa orientação sexual, a fim de reforçar o poder patriarcal. Nesse sentido, uma das maneiras pelas quais se combate a homossexualidade masculina é através das leis. Conforme será discutido abaixo, são legislações, como as encontradas na Nigéria, que criminalizam majoritariamente “atos contra a natureza”, referindo-se à penetração anal. Assim, em alguns países a lei não condena as relações sexuais consentidas entre mulheres, somente entre homens, o que não significa que as mulheres que destoam da heteronormatividade não sejam perseguidas social e familiarmente. “The laws of Nigeria are not the only means of controlling sexuality, and lesbian and bisexual women must also deal with customary and religious laws that dictate and limit their behavior” (AZUAH, 2011, p. 46).

Entretanto, devido às leis e às normas sociais estabelecidas, há uma maior visibilidade – e, então, possivelmente, uma perseguição mais declarada e intensa – da homossexualidade entre homens em países como a Nigéria:

… homosexual men in Nigeria more publicly transgress gender norms, especially the belief that men should be dominant over submissive women. By rejecting the privilege enjoyed by heterosexual men, homosexual men represent a visible threat to patriarchal values and the sexual ideologies they support. While lesbianism is more tolerated than male homosexuality, a significant number of Nigerian lesbians and bisexual women are also targets of extortion and blackmail. Like their male counterparts, they also break the rules of their patriarchal community. They tend to be independent of men and therefore step outside of

the boundaries of their traditional roles. (AZUAH, 2011, p. 47).

Portanto, a maior tolerância em relação a não-heterossexualidade feminina é a terceira hipótese para o porquê o número de solicitações de refúgio baseadas em perseguição por orientação sexual é menor entre mulheres do que entre homens.

Segundo Nádia Meinerz (2005) – que escreve a partir de uma visão ocidental pautada, em especial, na pesquisa de campo realizada na cidade de Porto Alegre, no Brasil – “um dos principais pontos de confluência da produção teórica em torno da homossexualidade feminina é a argumentação acerca da invisibilidade social das relações homoeróticas entre mulheres” (MEINERZ, 2005, p. 130)36. A antropóloga elenca uma série de motivos que teriam contribuído para essa invisibilidade. Em termos históricos, pouco foi registrado acerca das relações entre mulheres, já que a norma heterossexual é a que informa os registros historiográficos e opera de uma maneira a ignorar os relacionamentos femininos. Em termos histórico-linguísticos, chama atenção a ausência de uma nomeação própria para as mulheres acusadas de práticas homossexuais durante a Inquisição do século XVII – eram chamadas “sodomitas”, como os homens – já que a falta de uma nomeação específica tem como consequência a negação da existência para essas mulheres (MEINERZ, 2005, p. 131).

No Brasil, o crime de sodomia só foi retirado do código penal por volta de 1940. Os registros anteriores a essa época apontam para uma incidência muito inferior de processos envolvendo acusações de sodomia, movidos contra as mulheres. Mott sugere que essa incidência menos significativa de processos de homossexualidade movidos contra mulheres não significa que havia menos práticas sexuais entre mulheres, mas que ela está relacionada à invisibilidade da homossexualidade feminina e também promovem a sua consolidação (MEINERZ, 2005, p. 131-132).

      

36 Há uma vasta literatura acerca do tema da invisibilidade social da homossexualidade feminina. Uma vez que o propósito aqui em questão não é realizar um debate exaustivo sobre essa temática, optou-se por fazer referência ao trabalho de Nádia Meinerz (2005), já que a autora realiza uma revisão acerca dessa literatura.

Ainda em termos históricos, a autora evidencia que os grandes trabalhos feitos na área da sexologia acerca da homossexualidade privilegiaram em sua maioria as práticas entre homens; assim, a menos expressiva elaboração sobre as relações entre mulheres contribuiu para a consolidação de sua invisibilidade social (MEINERZ, 2005, p. 132). Em termos políticos, destacam-se as dificuldades de organização do movimento lésbico em virtude do posicionamento conflituoso que estabeleceu com os movimentos gay e feministas (MEINERZ, 2005, p. 134). Por fim, com o surgimento da AIDS, intensifica-se a necessidade de controle das práticas sexuais entre homens, enquanto que o mesmo não acontece no que tange aos atos entre mulheres já que o risco de contaminação nessas relações é considerado muito menor (MEINERZ, 2005, p. 135). A AIDS serviu, sob esse ponto de vista, para dar grande visibilidade à homossexualidade masculina, sendo que a mesma atenção não foi dirigida às mulheres.

A invisibilidade social da homossexualidade feminina proporciona uma ambiguidade no que diz respeito às relações sexuais/afetivas: duas mulheres conversando na mesa de um bar podem ser vistas como um casal ou como duas amigas, dependendo da expectativa de quem as observa; muitos casais de namoradas passam por amigas perante aos familiares e à sociedade; isto é, há táticas e ações que são utilizadas em favor da invisibilidade (MEINERZ, 2005, p. 144). Para Nádia Meinerz, portanto, esta invisibilidade social “possibilita às mulheres estabelecerem as suas parcerias sem confrontar diretamente a norma heterossexual” (2005, p. 145).

Apesar de a autora estar se referindo ao contexto ocidental e especificamente brasileiro, pode-se pensar que isso se aplica também a outros cenários. Pelo fato da lesbianidade ser mais tolerada do que a homossexualidade masculina na Nigéria (AZUAH, 2011, p. 47), por exemplo, pode-se entender que isso seja favorável para as mulheres que se relacionam com outras mulheres. Ou seja, por serem menos visadas socialmente, pode ser que consigam vivenciar suas experiências afetivas/sexuais estando menos propensas do que homens a sofrer perseguição. Não se está aqui afirmando, de maneira nenhuma, que as mulheres que destoam do padrão heterossexual não sejam discriminadas e perseguidas37, mas o fato de seus relacionamentos serem menos visados

      

37 Há, inclusive, discriminações e perseguições dirigidas especificamente a mulheres não-heterossexuais, como estupros corretivos e casamentos forçados. A esse respeito, sobre o contexto africano, ver Azuah (2011) e os seguintes relatórios, elaborados por organizações da sociedade civil: “Realities and Rights

socialmente pode influenciar para que não emigrem tanto quanto os homens.

Concluindo, no que diz respeito a solicitantes de refúgio e refugiados/as por motivos de orientação sexual que se cadastraram na Instituição, tem-se que a grande maioria eram homens. Isso segue a tendência dos pedidos em geral, uma vez que mais homens solicitam refúgio no Brasil do que mulheres. Foram elencadas três hipóteses para explicar esse cenário: um possível “mascaramento” na forma como os dados são computados; o fato de ser mais difícil para uma mulher emigrar sozinha, a partir de certos países, em comparação com um homem; e a ambiguidade que as relações entre mulheres proporcionam em termos de invisibilidade social, o que, a depender do contexto, pode ter como consequência que consigam esconder seus relacionamentos e, com isso, serem menos visadas em termos de discriminação e violência do que homens não-heterossexuais.