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CAPÍTULO 3 – REDES SOCIAIS E (AUSÊNCIA DE) POLÍTICAS

3.1 REDES SOCIAIS E MIGRAÇÃO INTERNACIONAL

3.1.6 O pesquisador na rede social

Marcel Mauss, em seu “Ensaio sobre a dádiva” (2003), ao estudar as trocas de bens em “sociedades arcaicas” do noroeste americano, da Polinésia e da Melanésia, postula que não se tratava somente de trocas mercantis, uma vez que estavam associadas a valores morais entre os/as envolvidos/as. Segundo Mauss, isso se deve à concepção de que as coisas possuem “espírito” e ao serem trocadas essa extensão extra-material iria junto com elas, isto é, criaria um laço de energia espiritual entre as partes, caracterizando um sistema de dádivas: “trata-se, no fundo, de misturas. Misturam-se as almas nas coisas, misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas, e assim as pessoas e as coisas misturadas saem cada qual de sua esfera e se misturam: o que é precisamente o contrato e a troca” (MAUSS, 2003, p. 212). Uma característica central desse sistema se constitui na obrigação de retribuir o presente recebido; assim, faz-se necessário dar, receber e retribuir. A retribuição, entretanto, não aparenta ser obrigatória; Mauss ressalta “o caráter voluntário, por assim dizer, aparentemente livre e gratuito, e no entanto obrigatório e interessado, dessas prestações” (2003, p. 188). Para o autor a teoria da dádiva pode ser estendida às nossas sociedades atuais: “uma parte considerável de nossa moral e de nossa própria vida permanece estacionada nessa mesma atmosfera em que dádiva, obrigação e liberdade se misturam [...]” (MAUSS, 2003, p. 294).

No Capítulo 1 evidenciei que voluntariar na Instituição me proporcionou um contexto de troca com os/as solicitantes de refúgio e refugiados/as, uma vez que ao mesmo tempo em que estava pesquisando aqueles/as sujeitos/as, também havia a possibilidade de fazer algo por eles/as, fosse os/as atendendo na Instituição, fosse chamando atenção para a invisibilidade das pessoas não-heterossexuais em situação de refúgio. Ressaltei também que essas trocas estavam associadas a interesses: meu interesse em pesquisar essas pessoas, o interesse deles/as em que eu os ajudasse na resolução de suas demandas pessoais no Brasil. À luz da teoria das dádivas de Mauss, pode-se pensar esse processo como sendo a obrigatoriedade do “dar, receber e retribuir”. Os/as interlocutores/as principais estavam me dando seu tempo, me revelando seus segredos, suas histórias, medos e desejos. De minha parte, havia a necessidade – ainda que não explícita – de retribuir. Desse modo, quando possuíam problemas a serem resolvidos, quando estavam em contato com processos burocráticos com os quais não sabiam lidar ou quando queriam apoio emocional, os/as interlocutores/as me acionavam, a fim de que eu os ajudasse. Esse contexto acabou por me tornar um elemento importante em suas redes sociais no Brasil, em especial para Phillipe, Mark e Enzi.

Phillipe, logo que começamos a conversar, perguntou-me se eu seria seu “amigo de verdade”, conforme relatei no Capítulo1. Constantemente me mandava fotos dele com a sua filha, dizendo-me o quão esperta a menina é, que ela gosta de brincar na pracinha perto do local onde moram, etc. Também me escrevia para reclamar e desabafar quando não tinha dinheiro para pagar o aluguel, nem para o transporte a fim de poder distribuir currículos, tampouco para comprar fraldas para a filha, inviabilizando, desse modo, que ela fosse à creche. Uma noite me escreveu dizendo que não estava conversando com o namorado, o qual andava muito sumido e não queria mais fazer sexo com ele. Solicitou-me que falasse com o seu companheiro para saber o que estava acontecendo. No outro dia de manhã me pediu desculpas, afirmando que na noite anterior estava com muita raiva do namorado. Phillipe também recorreu a mim para pedir conselho quando recebeu um documento afirmando que se depositasse 70 reais em uma dada conta bancária ele conseguiria um emprego.

Mark costumava reclamar para mim de seu chefe e dos companheiros com quem dividia a casa. Uma noite, quando cozinhou um jantar especial, enviou-me fotos da comida; também me mandou fotografias dele e do namorado quando foram a uma festa. Certo dia, deixou-me bastante preocupado ao enviar a seguinte mensagem por WhatsApp:

Hello vitor

I have something that bothers and I need your help Are you there?

I really need your help

(Trecho de conversa de WhatsApp enviada por Mark – 19 de abril de 2016).

Pensei que fosse algo urgente, imaginando que alguma coisa realmente grave havia ocorrido. Ele continuou:

My sister in the United States sent me an iPhone 6 via correios here

The iPhone have been with them for one month now and I don’t know what’s going on

They once sent a telegram to my house stating that I should register on their website, declare the value of the cellular and proof of purchase. I did all that and they supposed to contact me within 5 days as stated in the telegram but it’s been 2 weeks now, no contact.

I’m really worried and I need your help urgently I need you to call the office and ask them what is the problem with my object

I have to pay tribute as they said but I don’t know how much and I don’t know the process

Please help me

(Trecho de conversa de WhatsApp enviada por Mark – 19 de abril de 2016).

Ao mesmo tempo em que Mark me pedia ajuda para resolver o seu problema (“please help me”), exigia que eu ligasse para os Correios a fim de saber o porquê ele ainda não tinha recebido o seu iPhone 6 (“I need you to call the office”). Tive que me certificar de como era o processo burocrático para receber um objeto vindo do exterior, uma vez que não tinha conhecimento sobre isso. Mark me passou os seus dados – número do CPF, sua senha para acessar o site dos Correios – e me deixou encarregado de resolver a questão para ele. Descobrimos depois de alguns dias que os impostos referentes à retirada do celular somavam 3.400 reais. Mark pensava que estavam tirando proveito dele por ser estrangeiro: “I’m not fine. I really need my phone. I feel like they want to take advantage of me because I’m foreigner here”. Acabou ficando sem o celular pois não tinha a quantidade de dinheiro necessária para pagar todos os tributos. Posteriormente, recorreu a mim novamente, quando precisava abrir uma

conta corrente no banco e não sabia como fazer para comprovar o seu endereço em São Paulo.

Enzi, além de reclamar constantemente das dores físicas que sentia devido ao seu emprego e de ter entrado em contato comigo quando foi demitido, acionou-me quando queria assinar um serviço de internet wifi. Disse-me que um conhecido que fala português havia ligado para a empresa e recebido a informação de que o documento de Enzi não era válido. Imaginei que fosse desconhecimento acerca da validade do protocolo provisório de refúgio, algo muito recorrente, já que a maior parte dos estabelecimentos exige o RNE (documento que só os/as refugiados/as já reconhecidos/as possuem). Liguei na empresa e perguntei se um solicitante de refúgio poderia contratar o serviço; depois de aguardar durante vários minutos, enquanto o atendente solicitava a ajuda de seu superior, fui informado de que a assinatura poderia ser feita através do número do passaporte. Combinei com Enzi de nos encontrarmos no dia seguinte, quando ele saísse do trabalho, em um shopping próximo à sua residência para que eu o auxiliasse na contratação da internet. Quando estávamos na loja, a atendente pediu o RNE de Enzi. Expliquei que havia me informado sobre a questão e que era possível fazer a contratação através do passaporte. A funcionária, entretanto, disse que não, que pelo fato de ali ser uma revendedora não seria possível, sendo necessário ir a outra loja.

Resolvemos, então, tentar por telefone. A pessoa que atendeu a ligação também pediu o RNE de Enzi, mas quando expliquei que se tratava de um solicitante de refúgio, aceitou o número do passaporte. Após uma série de outras informações que eram necessárias e de aguardar mais alguns minutos enquanto os dados eram conferidos, o atendente avisou que o CPF estava irregular. Ao desligar o telefone e traduzir isso para Enzi, ele disse algo do tipo: “pois é, foi o que disseram da outra vez”. Quando havia tentado anteriormente, com a ajuda de um conhecido que fala português, já tinha sido informado que o problema era com o seu CPF e que, portanto, precisaria resolver essa questão antes de entrar em contato com a empresa para a solicitação de assinatura. Sua intenção real, na verdade, era que eu contratasse o serviço para ele em meu nome. Comentou comigo que era muito comum o fato de amigos/as brasileiros/as assinarem a internet wifi para estrangeiros/as.

Nota-se através dos exemplos de Phillipe, Mark e Enzi que acabei assumindo um papel de importância dentro de suas redes sociais, tanto para aspectos emocionais – afinal era alguém que sabia sobre suas sexualidades e que estava interessado em suas histórias – como para

processos burocráticos. O caso de Enzi, além disso, evidencia outras duas questões.

A primeira é o fato de ser realmente bastante difícil para um/a solicitante de refúgio conseguir contratar alguns serviços – e mesmo abrir conta em banco – enquanto ainda não foi reconhecido/a refugiado/a e, portanto, não possui o RNE. A segunda questão está relacionada ao porquê Enzi queria ter internet wifi em sua moradia. Contou-me que fica muito limitado só com a internet do próprio celular e que gostaria de ter acesso a sites através de seu notebook. Poderia, por exemplo, tentar aprender português por conta própria, já que teve que parar o curso que estava fazendo quando começou a trabalhar. Seria possível também entrar em sites de relacionamento a fim de conhecer pessoas, como é comum na Nigéria, de acordo com Enzi. Perguntei se nesses sites era possível conhecer pessoas do sexo oposto e também do mesmo sexo e ele afirmou que sim. Desse modo, percebi que o motivo central de Enzi querer internet wifi em sua casa era o fato de que assim seria possível conhecer novas pessoas, possivelmente parceiros afetivos e/ou sexuais.