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2. Narrativas que revelam múltiplos pontos de vista

2.3. Efeito Rashomon

Não poderíamos terminar esse capítulo sem citar Rashomon, filme japonês de 1950, dirigido por Akira Kurosawa, que possui uma estrutura narrativa na qual não é possível obter a verdade sobre um acontecimento, devido ao conflito de informações presentes nos diferentes testemunhos que relatam uma mesma história.

O uso do termo “efeito Rashomon” tornou-se frequente em diferentes áreas.

Além da antropologia, da psicologia e do direito, podemos citar também, como é claro, a comunicação, a cognição, a epistemologia e a sociologia. (ANDERSON, 2016). O chamado efeito Rashomon se dá quando testemunhos de um mesmo acontecimento oferecem relatos ou descrições substancialmente diferentes, mas igualmente plausíveis. Antropólogos, como Karl G. Heider, e psicólogos consideram a subjetividade da percepção e da memória como uma das possíveis chaves para que o efeito ocorra. (MAYOS, 2010) Já a professora de Direito Orit Kamir, diz que o padrão típico “Rashomon” são as diferentes versões factuais que aparecem quando se advoga de uma maneira que reflita antes o interesse próprio que a objetividade. (KAMIR, 2000) Daí podemos concluir que o efeito Rashomon pode ser causado por pessoas que contem uma história diferente, por conta de sua própria construção de realidade ou mesmo porque, deliberadamente, mintam em proveito próprio.

O pesquisador Gonçal Mayos cita o ciclo de romances do escritor britânico Lawrence Durrel, escrito entre 1957 e 1960, que é composto por quatro livros chamados de o quarteto de Alexandria. Cada um possui o nome de um dos personagens: Justina, Balthazar, Mountolive e Clea, que contam suas versões de um mesmo acontecimento. Tanto o ciclo de romances quanto o filme japonês possuem uma lógica similar, mas o filme atingiu tal prestígio no ocidente que foi ele o escolhido para representar o efeito. (MAYOS, 2010)

O roteiro de Rashomon é do próprio Kurosawa e de Shinobu Hashimoto.

Foi desenvolvido a partir dos contos de Ryunosuke Akutagawa: “Rashomon” e “No Bosque”. O filme é um marco da entrada do cinema japonês no ocidente. Despertou grande interesse da crítica norte americana e europeia, além de ter sido premiado em diversos festivais: leão de ouro, prêmio da crítica em Veneza e Oscar de melhor filme estrangeiro. Curiosamente, o filme não foi, a princípio, bem visto no Japão:

era tido como monótono e confuso, além de ter muitos palavrões e uma cena de beijo chocante para os japoneses nos anos de 1950. O próprio estúdio não queria mandar “Rashomon”, quando foram convidados para o festival de Veneza, só o fazendo por insistência do representante da Italian Films em Tokyo. O êxito internacional, no entanto, fez com que seus próprios compatriotas pudessem admirá-lo. O filme lançou o nome de Kurosawa e abriu as portas para outros filmes japoneses. (GRANDÍO PÉREZ, 2010) (MAYOS, 2010)

O que mais chamou a atenção dos críticos ocidentais foi a linguagem inovadora de representar visualmente os flashbacks dos relatos multiperspectivos, onde a verdade é corrompida pelo interesse de quem a conta. Kurosawa levantou muitas perguntas sobre a natureza humana, suas ambiguidades, sobre a dualidade de serem capazes de fazer o mal, mas também o bem. Ele não fecha as questões que levanta, as mantém abertas para reflexão. (GRANDÍO PÉREZ, 2010)

A história começa com o encontro de três homens, entre eles um lenhador e um sacerdote, que se abrigam da chuva debaixo das ruínas do templo de Rashomon.

Eles estão perturbados e falam sobre um acontecimento incompreensível. O último homem a chegar ao templo nada sabe sobre o que se passou e fica curioso com o que pode ser assim tão perturbador, tornando-se um ouvinte da história. Eles vão lhe contando todos os relatos que ouviram no tribunal: o do bandido Tajomaru; o da mulher do samurai morto; o do samurai morto, através de um médium; e o do próprio lenhador, que ao afirmar veementemente que todos os relatos são falsos, resolve contar tudo o que viu, mas que não revelou quando foi interrogado no tribunal.

Versão do lenhador no tribunal

O lenhador diz que, quando foi para as montanhas pegar madeira, encontrou as roupas de uma mulher, em seguida, o cap de um samurai, depois uma corda, até tropeçar em um corpo. Assustado, correu o máximo possível para chamar a polícia e prestar seu testemunho.

Versão do bandindo Tajomaru

Tajomaru diz que ficou encantado com a mulher do samurai e decidiu tê-la, mesmo que para isso tivesse que matar seu marido. Mas, ao perceber que ela também o queria, apenas amarrou o samurai com uma corda. No entanto, ela lhe teria dito depois que o marido tinha que morrer, pois sua vergonha não poderia ser conhecida por dois homens. Tajomaru diz que cortou a corda e ofereceu a espada ao samurai, para que duelassem por ela, e, então, o matou. Ao ser perguntado sobre a mulher, diz não saber seu paradeiro, pois ela havia sumido e achou que não valia o esforço de procurá-la. Sobre a espada desaparecida do samurai, diz ter trocado por licor.

Versão da mulher do Samurai morto

Ela diz que um homem de kimono azul, depois de forçá-la a se entregar para ele, orgulhosamente anunciou que era o infame Tajomaru e ficou rindo de seu marido, que estava amarrado. Depois roubou a espada do samurai e foi embora. Ela correu para abraçar o samurai e, então, percebeu seu olhar frio e indiferente. Pediu que a matasse, mas que não a olhasse assim. Ela teria pego a adaga, soltado as cordas do marido para que ele lhe tirasse a vida. Segundo ela, o olhar dele se mantinha tão indiferente que a deixou nervosa, a ponto de desmaiar com a adaga na mão, apontada para frente e que, quando recobrou a consciência, a adaga estava no peito do samurai. Disse que, em choque, nem se lembrava como havia deixado a floresta. Mas que lembrava de estar no riacho e tentar se matar, tendo fracassado.

Convém aqui destacar que, na versão que eu assisti, em nenhum momento vi alguma legenda que indicasse que a mulher tivesse testemunhado que matou o marido. Alguns autores dizem que ela que matou o marido, outros que ela deixou isso implícito. Robert Anderson, afirma, em seu artigo The Rashomon effect and Communication, que a mulher teria dito especificamente que matou o marido.

(ANDERSON, 2016) Aqui chegamos a um efeito Rashomon dentro da própria análise de Rashomon. Por conta de não compreender japonês, não posso afirmar se ela diz ou não que o matou. Na versão legendada, a que tive acesso, isso não é em nenhum momento verbalizado, ou melhor dizendo, não aparece escrito. Cheguei a pensar que, como ela desmaiou, até poderia ter sido o próprio marido a cometer

suicídio com a adaga dela. Me senti sozinha nessa interpretação, até ler o artigo da pesquisadora Orit Kamir, que também levanta essa hipótese. Me pergunto se essa percepção foi influenciada pelo fato de sermos mulheres e o próprio filme, como veremos mais adiante, naturalmente por sua estrutura colocar a mulher em uma posição de culpa. A forma como o filme é montado, fazendo-se uma analogia aos tribunais, deixa a mulher nesse lugar. (KAMIR, 2000)

Versão do Samurai via médium

O samurai diz que o bandido atacou sua esposa e depois tentou consolá-la, dizendo que, como agora estava desonrada, não poderia mais ficar com o marido e que só fez isso por amor a ela. Diz que ela pareceu entrar em transe e disse a Tajomaru para levá-la onde quisesse. Ele, então, roubou a espada do samurai e ia partir com ela, quando ela lhe pediu que matasse seu marido, pois não podia partir com ele, enquanto o samurai estivesse vivo. O bandido, pálido com esse pedido, jogou a mulher no chão e perguntou ao samurai o que queria que fizesse com ela.

Ela então fugiu, o bandido chegou a correr atrás, mas sem sucesso em alcançá-la, voltou para soltar as cordas que mantinham o samurai preso. Por conta de sua atitude, o samurai deixou que partisse. Diz que ouviu alguém chorar, referindo-se a ele mesmo, avistou a adaga da mulher no chão e enfiou no próprio peito. Quando já estava perdendo a consciência, alguém gentilmente retirou-lhe a adaga.

Nova versão do lenhador

O lenhador acaba assumindo que testemunhou todo o ocorrido e conta sua versão.

Afirma que o samurai não foi morto por uma adaga, mas por uma espada.

Ele revela que achou o chapéu da mulher, mais adiante avistou a mulher chorando e viu Tajomaru se vestindo atrás de um arbusto, enquanto implorava pelo perdão dela e a pedia em casamento. Que poderia deixar de ser bandido, para ficar com ela, mas que se ela negasse, teria que matá-la. Ela diz que é uma mulher e por isso não pode decidir nada. Então desamarra o marido e se joga ao chão, deixando a decisão para ele. Antes que Tajomaru se aproxime dele para duelar, o marido diz que não vale lutar por ela. Diz que ela esteve com dois homens e pergunta a ela porque não

se mata. Diz a Tajomaru que não a quer, que pode ficar com ela. Tajomaru analisa a situação e resolve ir embora. Ela tenta segui-lo, mas ele ordena que não o faça. O samurai manda a mulher parar de chorar, mas o bandido pede que a deixe chorar, pois defende que as mulheres são fracas por natureza. Nesse momento, acontece uma reviravolta. A mulher começa a rir histérica, dizendo que eles eram os fracos, por não tomarem uma atitude de homens e lutar por ela. Que achou que Tajomaru poderia livrá-la de um homem fraco, mas que ele era como o marido. Ela ri compulsivamente deles, fazendo com que se sintam intimados a iniciar um duelo.

Depois de uma longa luta, o bandido consegue matar o samurai já desarmado, rouba a espada do samurai e a mulher consegue fugir.

Ao ouvir o relato, o último homem a chegar zomba dizendo que o lenhador também está mentindo. Desacredita também da sua versão e o acusa de ter visto tudo e não ter feito nada e, ainda, de ter roubado a adaga. Como seria possível acreditar em algum dos testemunhos, quando todo o dito sempre está de acordo com o interesse de seu locutor? No fim, não chegamos a nenhuma conclusão se não a impossibilidade de entender o que de fato aconteceu.

O recurso de usar flashbacks na narrativa já havia sido usado, em 1941, em Cidadão Kane. A novidade trazida por Kurosawa foi que a representação dessa volta ao passado não significava que a história estampada na tela fosse verdadeira.

(GRANDÍO PÉREZ, 2010)

Não é uma ficção direta, que mostra o que aconteceu, assim como ocorre em The Affair, onde a imagem representa o que dizem ter ocorrido e não uma realidade pretensamente objetiva. A narração dos personagens é guiada por seus próprios interesses, para se proteger ou justificar suas ações. A diferença para The Affair é que, enquanto em Rashomon claramente há muita mentira envolvida, na série não sabemos se eles camuflam a verdade ou se contam os fatos simplesmente como se lembram.

É importante notar que em Rashomon as imagens também seguem a forma de narrar das testemunhas no sentido estético (ANDERSON, 2016), ainda que mantendo fortes semelhanças que mantém uma unidade.

Gonçal observa que os críticos veem o filme como uma clássica exploração da decepção do homem com o próprio homem e da relatividade da verdade, ou

como a demonstração de que a verdade para um é ficção para o outro. A soma dos relatos não é uma soma que permite encontrar a verdade. (MAYOS, 2010)

Juntos, os relatos dos personagens de Rashomon são controversos e não há nenhuma chave possível para saber quem mente. A ambiguidade persiste. O filme, mais que sobre um assassinato e um estupro, é sobre a manipulação de eventos por narrativas interessadas e testemunhos egoístas. (GRANDÍO PÉREZ, 2010)

Tanto a voluntariedade da verdade, quanto a confiança na humanidade são ameaçadas pelos relatos incompatíveis e a impossibilidade de se chegar a uma única versão, que poderia ser considerada a verdadeira.

Tendo em vista que a realidade de cada pessoa é específica, seria igualmente impossível, em qualquer situação, chegar a uma verdade absoluta, mas as perspectivas podem ser mais convergentes ou divergentes.

Kurosawa cria subterfúgios para fechar o filme sem tomar partido de qualquer um dos personagens. Ainda assim finaliza o filme tentando passar uma mensagem positiva de que é possível ainda ter fé na humanidade, apesar de toda a sua ambiguidade e egoísmo, ao mostrar que o lenhador, com todos os seus erros e pecados, resolve adotar uma criança que encontram abandonada.

No entanto, a forma como o filme é montado pode criar uma leitura que influencie a visão dos relatos. Orit Kamir analisa os depoimentos no tribunal, segundo a ordem padrão de um julgamento. O primeiro a falar apresenta as acusações. O primeiro depoimento é o de Tajomaru que, apesar de assumir ter assassinado o samurai, coloca a culpa na mulher por ter mandado matá-lo, o que já seria considerado um crime. O segundo momento corresponde à defesa. A segunda a depor é a mulher, sendo importante observar que o filme não mostra o estupro.

Ela só comenta que foi tomada a força, em oposição à grande cena em que Tajomaru diz ter sido consensual o que aconteceu. (KAMIR, 2000)

Convém aqui fazer um parêntesis: de que a mulher carregava uma adaga para, caso houvesse qualquer chance de violação, se matar antes, para que a honra do marido não fosse atingida. A honra na sociedade japonesa do período estava acima da vida. As meninas eram ensinadas a como se matar com discrição com suas adagas. A mulher era tida como um objeto, o que é claramente percebido com a forma que tanto o bandido quanto o samurai a tratam. Quando um perde o interesse,

o outro também perde. E quando um a vê bonita, o outro também a vê. Mas, por ter sido usada por outro, o samurai não a quer mais. Ela então, culturalmente, já seria culpada por ter deixado que a honra do samurai fosse manchada. (KAMIR, 2000)

O terceiro relato, o do samurai, também a condena por ter pedido que o matasse, assim como o do lenhador, e com isso ela acaba ficando com o lugar de culpada, ignorando-se o fato dela ter sido vítima. O bandido reforça esse papel de culpada, quando diz que não pode resistir a ela, como se ela tivesse causado toda a situação. No terceiro relato, o samurai que nada conseguiu fazer para evitar que a violassem, se mata com a adaga da mulher, simbolizando que ele morreu porque ela não soube resolver sozinha a situação de se matar e, por isso, teve que cometer o suicídio. Ainda que não se chegue a uma conclusão do que ocorreu de fato, essa leitura de Orit demonstra que a mulher é mostrada como culpada. Ainda que mantendo a culpa de ter pedido que matasse o samurai, no relato do lenhador poderia ser inferido que ela tentou lidar com toda a situação de modo a garantir a sua sobrevivência, em um mundo em que estava sozinha e era vista apenas como um objeto. Outra curiosidade é que foi suprimido o depoimento da mãe da mulher, presente no conto, que advogava em favor do valor de sua filha. (KAMIR, 2000)

Anderson cita a observação de Janice Matsumura de que no Japão dos anos de 1950, o estupro só era socialmente significativo quando manchava a honra de um homem, o qual deveria ter impedido que isso ocorresse. (JANICE, apud ANDERSON, 2016) Tendo em conta essa conjuntura, não é de se estranhar que não seja dada mais a importância a esse acontecimento no tribunal.

O lenhador seria em teoria o testemunho menos interessado, por isso existe a possibilidade de ser mais fiel aos fatos, porém não é possível que ele seja lido assim. Ainda que por último, Kurosawa se preocupou em colocar a figura do ouvinte que, crítico, o acusa de mentir e desmascara seu roubo da adaga, que diz não ter sido a arma que matou o samurai, e também a sua vergonha por não ter impedido que toda a tragédia acontecesse.

Anderson considera que o efeito Rashomon não é só sobre uma diferença de perspectiva. Ele ocorre principalmente quando essas incongruências nos relatos emergem de uma combinação da falta de evidência para afirmar ou desqualificar

uma versão da verdade, somada à pressão social de se chegar a uma conclusão sobre o que de fato ocorreu. (ANDERSON, 2016)

Podemos assim concluir que, quando aqueles que passaram por um determinado acontecimento são de alguma forma levados a narrá-lo, os detalhes que focalizaram, a sua subjetividade, percepção e memória vão influir em sua narração. Mas a verdade de um testemunho só será relativizada quando for ouvido um outro que mostre incongruência em relação ao primeiro. Quando não houver a possibilidade de chegar a uma conclusão sobre o ocorrido configura-se o efeito Rashomon. Contudo, a ambiguidade não precisa ser um problema, pode ser uma escolha narrativa. No caminho da busca por um fechamento de sentido estão as diferentes versões.