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Toda regra tem sua exceção – será?

3. Ilusão biográfica e ação da memória em The Affair

3.5. Toda regra tem sua exceção – será?

Praticamente toda a narrativa de The Affair apresenta uma cartela com o nome de um dos protagonistas, determinando que aquela parte corresponde à

perspectiva desse personagem. Há raros momentos em alguns episódios que revelam um pequeno extrato de tempo presente/futuro sem apresentar essas cartelas. Seriam então esses momentos desprovidos de subjetividade?

Um único episódio nas quatro temporadas analisadas foge à regra de dividir sua duração com esse tipo de cartela: o episódio 9, da segunda temporada. Ao invés das cartelas por visão, ele usa cartelas de tempo. Ele se desenvolve quase por completo em um mesmo dia e entrecorta cenas protagonizadas por Alison, Helen, Noah e Cole. Essas cenas também não ficam restritas a uma única parte do episódio, sendo intercaladas. Em alguns blogs que fazem resumos dos episódios, seus autores consideraram que esse episódio ofereceu ao público uma visão mais objetiva da realidade desses personagens. Eu não havia tido essa impressão quando assisti a série. Ainda que eles não estivessem sendo apresentados com as respectivas cartelas, as cenas seguiam a mesma lógica de ter sempre seu protagonista presente, incluindo distorções que são claramente subjetivas, que irei descrever abaixo. Outra questão é que, particularmente nesse episódio, nenhum protagonista compartilha sua cena com outro, não tendo então, consequentemente, a possibilidade de uma mesma cena ser apresentada por mais de uma perspectiva.

O fato é que o episódio inovou na estrutura, mas se a imagem apresentada é ou não objetiva só pela ausência da cartela, me parece questionável. Caso essa tenha sido a intenção de seus autores, os recursos utilizados pela narrativa não corroboram para essa pretensa objetividade.

Seguimos tendo a imagem sofrendo a influência da subjetividade dos personagens em suas respectivas partes, tanto em seu plano ponto de vista como na imagem que revela a cena.

O dia em que se passa o episódio é um dia em que chega um furacão na região. O episódio começa ao meio dia, com Alison grávida ouvindo o noticiário e sentindo algumas contrações. Uma hora da tarde, Helen está em um restaurante esperando por um date marcado em um aplicativo, que não aparece, mas encontra Vik, médico que operou seu filho (futuro novo marido). Alison não consegue falar por telefone com Noah e vai sozinha para o hospital. A cartela de sete da noite mostra Noah em seu carro, acompanhado por sua publicitária, buscando, sem sucesso, por seu telefone, que vibra em algum lugar abaixo de seu assento. Ansiosa

por entrar na festa, a publicitária o convence a achá-lo depois. Nessa festa, após conversar com o possível diretor de seu filme, ele se droga, bebe e trai Alison com a publicitária. Ela lhe indica um quarto para encontrá-la, mas nesse momento ele já está tão fora de si que começa a vagar maravilhado pela festa, que parece alheia à tempestade que já se apresenta. A imagem fica turva, com as luzes fazendo as movimentações naturais a uma visão alterada por entorpecentes. Isso se reflete não só em seu plano ponto de vista, mas em toda a tela, denotando uma clara subjetividade. A narrativa segue com ele entrando na água e observando duas garotas peladas se beijando. Ele fica parado observando-as e quando a que está de costa se vira, é sua filha Whitney, que o reconhece e berra. Seu berro parece também ser ouvido por sua mente alterada. Ele sai correndo da festa e tenta entrar no carro, contra o aviso de que a estrada estava fechada pela chuva. Nesse momento, vê as milhares de chamadas perdidas de Alison. Tenta dirigir de volta à cidade, mas ao tentar contornar o bloqueio encalha o carro e grita inúmeras vezes, caindo em si por suas atitudes. A cartela das dez da noite mostra Alison tentando adiar o nascimento da filha para não passar pelo momento sozinha. Às onze da noite, Cole e Luisa estão aguardando a forte tempestade passar, após tirarem da casa, que será vendida e derrubada, as coisas de Cole e também de Alison, que sabemos por que não apareceu. A voz de Luisa contando uma história para Cole aparenta estar mais baixa que o normal dos diálogos, dando a entender sua falta de atenção para ouvi-la, ainda que ele esteja a olhar para ela. Após ela lhe contar que não pode ter filhos, ele novamente ouve tudo o que lhe aconteceu com sua voz muito baixa, e assim percebemos que ele está só pensando que isso tem a ver com maldição, conforme lhe revela em seguida. Quando ela sai da casa saturada por ele achar que tudo gira em torno de sua dor, Cole começa a beber. A visão também se torna turva. Essa cena se entrecorta várias vezes com a cena de Alison gritando parindo. Esses gritos se mantêm no áudio da cena de Cole, totalmente desestruturado sentado no chão aos prantos, dando ainda mais dramaticidade à tempestade. Cole olha para fora da janela de vidro e, no meio da tempestade, vê ainda turva a imagem do filho Gabriel e ouve sua voz lhe chamando para entrar com ele no mar. Alison consegue ter o bebê, mas tanto sua visão quanto sua imagem estão levemente embaçadas. Após vermos Cole no meio da casa em chamas, a cena seguinte mostra Alison na calmaria segurando seu bebê. A médica diz que o pai finalmente chegou e pergunta se pode deixá-lo entrar. Ela diz que ainda não e olha para a criança se sentindo completa.

Essa é a única cena que parece acontecer no dia seguinte e não é introduzida por uma cartela, apesar de ser claro que ouve uma elipse temporal.

Será que os autores, da mesma forma que criaram o jogo de colocar cartelas com os horários e a omitiram nessa última cena, que claramente não segue o tempo da anterior, omitiram as cartelas com os nomes dos personagens por já estarmos familiarizados com o jogo das perspectivas e, então a acharem óbvias?

Não sei a resposta para essa pergunta, apesar de claramente considerar que a subjetividade, de uma forma ou de outra, se manteve. O que posso afirmar é que houve uma quebra na estrutura ao entrecruzar as cenas protagonizadas pelos diferentes personagens.