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4 DA SUBALTERNIDADE À AUTONOMIA: A DIFÍCIL TRAVESSIA

4.3 Efeitos do transformismo do PT no MST

Em março de 1997, a Folha de S. Paulo lançava a matéria “PT ”corre atrás'' da visibilidade do MST – Na “carona'' do movimento, o partido organiza agenda intensa, como a participação em manifestação ontem”. Nesta época, o MST vivia seu período de maior expansão84, presente em quase todos os estados do Brasil e detentor de uma grande força política, marcada pela radicalidade de suas ações e o número de ocupações que vinha realizando. Episódios violentos de repressão contra o MST também aumentam sua força e visibilidade, como o episódio de Corumbiara85 em Rondônia (agosto de 1995) e depois Eldorado dos Carajás86 no Pará (abril de 1996), repercutindo em todo o território nacional, tornando o MST um interlocutor obrigatório entre o governo e os assentamentos (ALIAGA, 2008, p. 35).

A reportagem veiculada pela Folha de S. Paulo retrata na declaração da então filiada ao PT, a socióloga Maria Vitória Benevides, a aproximação do PT com o movimento dos sem-terra neste período como “um novo vigor à alma do partido'', complementando que “o PT perdeu fôlego em movimentos sociais urbanos, graças ao êxito do real e da queda da inflação” e neste caso “ou o PT pega rapidinho o MST ou acaba perdendo também no setor rural''. Para ela, “o MST é o único movimento que FHC não conseguiu destruir” (FOLHA DE S. PAULO, 1997). Outro ponto levantado é o da urbanista Ermínia Maricato também militante do partido à época, que identificara em pesquisa realizada na zona sul de São Paulo, que havia um refluxo em movimentos sociais

84 Outro fator importante a ser lembrado, sobre o mesmo período, é que sob o impacto da agenda neoliberal, na reorganização dos Movimentos sociais populares frente à nova relação de força formada entre as frações de classe capitalista, sobretudo no campo, que o MST inicia um processo de redefinição de sua estratégia política “que passa a ser ampliada internacionalmente, na busca de convergência de linhas políticas e agendas em comum, principalmente com a Coordinadora Latinoamericana de Organizaciones del Campo (CLOC) e Via Campesinana (RUBBO, 2012, s/p).

85 Massacre ocorrido em 10 de agosto de 1995, no acampamento do MST na fazenda Santa Elina, formado desde julho do mesmo ano “foram emboscados de madrugada com bombas de gás lacrimogêneo. 355 trabalhadores foram presos e torturados, mulheres foram usadas como escudo por policiais e jagunços, oito trabalhadores foram executados sumariamente e o acampamento foi incendiado com todos os pertences dos posseiros. (MESQUITA, 2003, p. 34)

86 Em 17 de abril de 1996, dezenove trabalhadores rurais sem-terra foram mortos pela polícia militar no episódio que ficou mundialmente conhecido como Massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido no sudeste do Pará. “Os trabalhadores do Movimento dos Sem Terra faziam uma caminhada até a cidade de Belém, quando foram impedidos pela polícia de prosseguir. Mais de 150 policiais – armados de fuzis, com munições reais e sem identificação nas fardas – foram destacados para interromper a caminhada, o que levou a uma ação repressiva extremamente violenta e na morte dos trabalhadores” (ANISTIA INTERNACIONAL, 2016) https://anistia.org.br/noticias/massacre-de-eldorado-dos-carajas-20-anos-de-impunidade-e-violencia-campo/

pilotados diretamente pelo PT, nas áreas de moradia, transporte e saúde, e que naquele momento o MST era “maior que o PT'” no cenário político do país. “O MST tem uma luz maior”, declara Maricato” (FOLHA DE S. PAULO, 1997). O texto do jornal destaca ainda a participação mais frequente dos principais líderes do PT no palanque do MST, entre eles Lula.

A fim de avaliar a mudança na postura do MST – em vista das gestões anteriores, Collor e Cardoso – em relação ao Estado, queremos chamar a atenção para a convergência em aspectos pontuais desta matéria feita pelo jornal em 1997 e a entrevista dada por Stédile para a revista IHU online em 2014, que tem como título "No Brasil, está em curso uma concentração da propriedade da terra, diz Stédile” e o subtítulo: “Em entrevista, João Pedro Stédile, do MST, explica quais são as análises internas do MST em relação à reforma agrária, avalia os 12 anos dos governos Lula e Dilma e rebate as críticas de que os movimentos foram cooptados pelo Estado” (MST, 2014b). Analisando as transformações em curso no MST entre 1997 e 2005, o dirigente aponta na entrevista para a necessidade de reavaliar as estratégias do Movimento frente ao quadro instaurado pelas políticas neoliberais, e as condições de atuação das classes subalternas e do governo frente aos recursos do grande capital na fase atual.

Stédile argumenta que há um “refluxo” da classe trabalhadora entre a derrota eleitoral do PT em 1989 e a implementação do neoliberalismo, que entre o campesinato e as forças populares do campo não teve tanto impacto por não estarem ligados diretamente à luta pelo emprego. Assim, no momento de refluxo de toda a classe trabalhadora, os camponeses se mantiveram mobilizados. Desta forma, o MST, de 1997 a 2005, teria assumido um protagonismo na luta contra o neoliberalismo que não esperava, momento em que “MST e PT” teriam dado novo vigor ao vínculo entre as organizações. De 2005 para frente, este quadro teria mudado em razão própria do processo de luta “os camponeses também refluíram e, nós do MST juntos, como parte dessa onda histórica de refluxo” (idem).

Na entrevista de 2014, Stédile retoma as bases da Reforma agrária popular, as novas dimensões do latifúndio e os déficits da Reforma agrária clássica, no entanto, acrescenta a perspectiva de seu vínculo com o PT, quando questionado pelo entrevistador. No primeiro ponto que destacamos na entrevista, Stédile retoma a compreensão da classe financeira como novo domínio sobre a produção agrícola no lugar do latifúndio tradicional e da burguesia industrial e aponta para a ligação que se forma entre esta e os

meios de comunicação, como um “palanque ideológico da burguesia”. A liderança atribui à mídia, em vista disto, um poder de repressão e criminalização superior ao do Estado:

Há companheiros nas universidades dizendo que o governo está criminalizando as lutas sociais. Não. Nosso problema não é só repressão policial. Nosso problema é a repressão ideológica que os meios de comunicação fazem contra qualquer luta social (MST, 2014b).

Uma argumentação semelhante é trazida em relação a conjuntura política nacional sobre a questão agrária. Quando inquerido se a Reforma agrária seria um tema presente nas eleições de 2014, Stédile responde:

Reforma agrária no sentido stricto sensu é um programa de governo para eliminar o latifúndio e democratizar a propriedade da terra. O que está em curso no Brasil é uma concentração da propriedade da terra. Agora, por que isso acontece? Não é só por causa da ação de tal ou qual ministro. Isso acontece porque o capital financeiro e multinacional tomou a iniciativa de disputar a terra, a água, as sementes, e isso gerou uma hegemonia do agronegócio. O modelo de dominação capitalista está presente na produção, nas mercadorias agrícolas, na mídia, no Estado, no governo, como a força majoritária, e isso bloqueou a discussão e as conquistas da reforma agrária. [...] A concentração da propriedade de terra aumentou porque há a ação do capital independe do governo. Então, quando se compra uma fazenda, ninguém pede se o governo deixa ou não, se o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra quer ou não. O capital tem uma lógica de acumulação e vai concentrando. Nós somos vítimas desse processo (MST, 2014b).

Da mesma forma como a ação da mídia, as declarações dadas por Stédile, deixam a entender que o Estado na atual conjuntura é “refém” do capital financeiro e dos mecanismos que dispõe. Os interesses do agronegócio, assim, teriam uma força que se sobrepõem as forças governamentais. Há, portanto, a percepção de que na fase do capitalismo neoliberal, o mercado se sobrepõe ao Estado e nesta disputa “PT e MST” estariam do mesmo lado, sendo assim, ambas as organizações enfrentariam a mesma correlação de forças e não estaria o MST sendo “cooptado pelo Estado”. Quando questionado sobre o que havia dito em outro momento sobre Lula nunca ter prometido reformas estruturais e se por isso era de se esperar a relação com a reforma agrária brasileira da forma como se apresentava no quadro atual, Stédile afirma que “Lula defendeu na campanha presidencial de 2002 não foi o programa democrático e popular. O programa que ele defendeu foi o de brecar o neoliberalismo” e que sim, no governo que a posteriori se chamou neodesenvolvimentista, “ele cumpriu o seu programa”. Avalia criticamente, contudo que os limites do neodesenvolvimentismo estariam na dependência do capital internacional e o seu caráter de composição de classes, que para o dirigente, “ até pode dar certo eleitoral e politicamente, mas não consegue ter forças para fazer as reformas estruturais, nas quais as classes proprietárias percam parte de seus privilégios” (MST, 2014b). No entanto, na sequência da avaliação, o dirigente analisa que frente aos

impasses da crise e a renúncia de parte da burguesia em dar apoio ao governo, poder-se-ia formar uma “nova coalizão de forças socpoder-se-iais mais de centro-esquerda, que pode exigir mudanças que resolvam os problemas do povo”, ou seja, a partir do momento que a gestão petista prescindisse do compromisso que havia assumido com a burguesia, voltaria ao projeto inicial, democrático e popular.

Em vista disto, é importante retomar três informações já trazidas neste trabalho: 1) O fato de o PT ter, ao longo de sua trajetória, transformado a base de seu discurso democrático-socialista em uma narrativa institucional anti-neoliberal/popular 2) A “aposta” divulgada pelo MST no Manifesto ao povo brasileiro em 2000, na eleição do candidato petista em 2002, em vista da construção de um projeto “popular” e por fim, 3) o “novo fôlego” dado ao vínculo entre PT e MST em 1997. Articulando estes três fatores, podemos inferir que a proposta popular do MST e a plataforma de governo do Partido dos trabalhadores eleita em 2002 – apesar da declaração dada por Stédile de que esta não era desde o início a proposta lulista – lançam, ao menos em termos retóricos, o objetivo comum de “brecar” o avanço do neoliberalismo como estratégia democrática-popular. Neste caso, podemos inferir também que o que leva o presidente Lula, recém-empossado, a vestir o boné do MST, durante solenidade no Palácio do Planalto em Brasília no dia 3 de julho de 2003, é a intenção de transparecer a “vitória” de um projeto comum entre as duas organizações. Pelo mesmo motivo, o MST faria a avaliação a posteriori de um governo petista restrito pelas forças de oposição dentro do governo ao programa “neodesenvolvimentista”, desprovido de meios para a concretização de um projeto democrático-popular. Passemos às consequências deste conjunto de elementos para as políticas de Reforma agrária durante os mandatos petistas.