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3. RECURSOS II: MÚSICA E ELECTRÓNICA

6.3. Eindhoven

Antes de Varèse vir realizar o Poème Electronique em Eindhoven já o compositor holandês Henk Badings71

havia utilizado uma secção do NatLab, o laboratório de investigação da empresa, como estúdio para a realização de obras de música electrónica. Esse laboratório foi instalado na sala 306, quando em 1956 Badings produziu, em 17 dias, o bailado Abel en

Cain, acabando por subsistir até fins de 1960 (Tazelaar e Raaijmakers 2004: 7-8).

O departamento de acústica da Philips era dirigido pelo já referido Roeloff Vermeulen, que estava associado à Philips desde 1924. Entre 1940 e 1955 Vermeulen realizara experiências em reverberação assistida de salas e gravação estereofónica com cabeça artificial. (Tazelaar e Raaijmakers 2004: II, 9-11). Entre 1946 e 1948 desenvolveu um sistema de reprodução espacializada multipistas em colaboração com Leopold Stokowski, utilizando várias linhas telefónicas para transmitir os sinais para outra sala (ibid.: II, 9-10), de uma forma que recorda as experiências de Ader em 1881 (cf.2.6) e de Fletcher, com a colaboração do

próprio Strokowski, em 1933 (cf.2.6.2). Em 1940 desenvolveu o Philiolist, um dispositivo que permitia que um só músico tocasse vários violinos ao mesmo tempo, através de um sistema de controlo electrónico, e Stokowski discutiu com ele as possibilidades de novos instrumentos que compensassem a debilidade dos baixos numa orquestra tradicional (ibid.: II, 15) – recorde-se a experiência anterior do maestro com o Theremin Cello (cf. 3.4.3).

O trabalho de Paris e Köln era conhecido na Holanda. Em 1954 Walter Maas, o director da fundação Gaudeamus, convidou Meyer-Eppler para proferir uma série de conferências (Tazelaar e Raaijmakers 2004: I, 7). No mesmo ano Vermeulen assistiu a uma conferência sobre música, ciência e tecnologia, organizada em Gravesano por Hermann Scherchen, sobre a qual viria a escrever: «(...) I was confronted with the pioneering work of Pierre Schaeffer, and was rather surprised that it should be taken seriously by the musicians» [eu fui confrontado com o trabalho pioneiro de Pierre Schaeffer, e fiquei surpreendido que fosse tomado a sério pelos músicos] (ibid.: II, 12). As experiências neste domínio dos compositores holandeses passavam ao lado da degladiação entre os partidários da musique

concrète e da elektronische Musik (ibid.: I, 7), um ambiente favorável ao antidogmatismo de

Varèse.

Badings realizou Abel en Cain em colaboração com o engenheiro Jan W. De Bruyn (o responsável pelo sistema de controlo do Poème Electronique). Num artigo conjunto (Badings e Bruyn 1957/58) eles descrevem os recursos usados na preparação da obra:

1.A tone gate, dispositivo electrónico desenvolvido especificamente para modular a amplitude de um som em forma de sino (som delta), i. e., criar um crescendo seguido de um diminuendo. O efeito, que é obtido através da carga e descarga sucessivas de dois condensadores (Badings e Bruyn 1957/58: 193-194), tem cinco durações possíveis, seleccionáveis através de um comutador que troca os condensadores.

2.Roda magnética de reverberação, com várias cabeças de leitura (correspondendo a diferentes atrasos do sinal), permitindo que os sinais lidos pelas várias cabeças sejam misturados ao que é gravado, com as atenuações que se desejar (fig. 6.4). Note-se que este era o mesmo sistema que a Philips usava para aplicar reverberação assistida em salas de espectáculo (cf.2.7.1). Tazelaar (2004c)

Fig. 6.4 – Esquema de princípio da roda de

reverberação (Badings e Bruy n 1957/58 : 195).

Fig. 6.5 – Badings (direita) utilizando a sirene óptica (Badings e

Bruyn 1957 /58: 191).

informou-me que ela permitia atrasos temporais em duas gamas: até 1/4 s e até 1/2 s, com respostas em frequência de r e s p e ct i va m e n t e 1 6 0 - 1 2 . 000 e 80-8.000 Hz.

3.Gerador de sons sinusoidais.

4.Osciloscópio, que em Abel en Cain foi usado para verificar, através de figuras de Lissajous,72

quando é que os sons

produzidos por dois geradores de sinais estavam a produzir um intervalo natural.73

Uma das possibilidades exploradas por Badings é a não submissão ao temperamento igual.

5.Dois multivibradores (osciladores que produzem ondas quadradas ou em dente de serra) com interfaces projectados especificamente para a produção de música: 5.1.O baritone clavier, que produzia onda quase quadrada e tinha botões que

pré-seleccionavam frequências discretas.

5.2.Um multivibrador cuja forma de onda era quadrada no grave e quase em dente de serra no agudo, controlado por uma corda que acciona um potenciómetro. Note-se que a interface deste instrumento é reminiscente do sistema de anel + fio encontrado nas ondes martenot (cf.3.6) com que Varèse estava familiarizado.

6.Gerador de ruído branco.

7.Filtros passa-banda de 1/3 oitava, de oitava e de mais de uma oitava. 8.Uma sirene óptica (fig.6.5), em

que qualquer forma de onda periódica que se desejasse podia ser recortada num disco de papel, colocado em movimento rotativo e varrido por um feixe luminoso. Do outro lado do disco, a

Fig. 6.6 – Sala 306 do NatLab, mostrando parte do equipamento usado

na realização de Abel en Cain (Badings e Bruy n 1957/58 : 191).

intensidade luminosa era transformada num sinal eléctrico correspondente à forma de onda desenhada, graças a uma válvula fotomultiplicadora (cuja corrente de saída depende da luz incidente).

9.Sete gravadores (fig. 6.6), d o s q u a i s c i n c o c h e g a r a m a s e r u t i l i z a d o s simultaneamente em

Abel en Cain, sendo

também usadas fontes de alimentação de

frequência variável para modificar a velocidade (varispeed). Segundo um relatório de Bruyn, de 7/8/1956 (Tazelaar e Raaijmakers 2004: III, 19-20), três trabalhavam a 30 polegadas por segundo (76,2 cm/s) e outros dois, ambos com velocidades de 15 e 7,5 pps (38,1 e 19 cm/s), eram uma variante estereofónica74

de um modelo padrão. Dos do primeiro modelo, um era modificado para transpôr até uma oitava acima ou abaixo e outro, com uma fita de 16 mm, gravava 8 pistas. Porém, quando Varèse trabalhou no Poème não havia gravadores multipistas em Eindhoven (Tazelaar 2004b): os de três pistas usados para a montagem só estiveram disponíveis na fase final de montagem.

O relatório de Bruyn que referi dá-nos uma ideia muito precisa do modus operandi de então, e das dificuldades inerentes às limitações do equipamento, ao explicar como foi realizada a sincronização das camadas (layers) em Abel en Cain:

The beginning of a sound layer was spliced after a ‘leader’ tape containing spoken sequential reference numbers (1 through 25), each followed by an audible click. During this recording process, the inputs of all tape recorders were connected in parallel. Thus, each machine had its own leader tape. A start error could be corrected during playback of the leader tape by slightly manipulating the tape speed. However, because the machines would eventually ‘drift’ apart, acoustic layers synchronized in this fashion could not exceed three minutes. (...) We found that 8-track recorder was impossible to use for this work, because its start-time could not be precisely controlled.

Additionally, it was impossible to erase or record tracks individually on this machine. [O início de uma camada era cortado depois de uma fita inicial contendo números de referência falados (1 a 25), cada um seguido de um clic audível. Durante o processo de gravação, as entradas de todos os gravadores eram ligadas em paralelo. Assim, cada máquina tinha a sua fita inicial. Um erro de arranque podeia ser corrigido durante a reprodução da fita inicial manipulando ligeiramente a velocidade da fita. Contudo, como as máquinas acabavam por se ‘desviar’, as camadas acústicas sincronizadas por este método não podiam durar mais de três minutos. (...) Descobrimos que o gravador de 8 pistas era impossível de usar para esta obra, porque o seu tempo de arranque não podia ser controlado com precisão. Além disso, era impossível apagar ou gravar pistas individualmente nesta máquina.] (Tazelaar e Raaijmakers 2004: III, 23)

Verificamos assim que o laboratório da Philips, segundo os padrões da época, dispunha de recursos variados, sofisticados mesmo, p. ex. ao nível da reverberação. A sound gate é um recurso especialmente interessante para um dos tipos de envolvente que Varèse já explorava nas suas obras instrumentais (os sons delta). Um dos multivibradores dispunha de uma interface versátil para a exploração do continuum de alturas e que seria familiar a Varèse. A sirene óptica era uma ferramenta simples e versátil que permitia criar qualquer timbre de som periódico (mas apenas periódico). Note-se porém a falta de recursos específicos multipistas e/ou de espacialização, essenciais ao projecto do Poème Electronique: nada comparável ao

7.O POÈME ELECTRONIQUE

[...] with bells and rings that are dainty and sweet [...] likewise great sounds extenuate and sharp[...] yea, some rendering the voice, differing in the letters or articulate sound from that they receive [(...) com sinos e campainhas que são d elicad os e doces (...) e igualmente sons gran des com o tén ues e ag udo s (...) ou ainda alguns transformando a voz, tornando-a diferente nas letras ou som articulado em relação ao que recebem] (Bacon 1626: 129)