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3. RECURSOS II: MÚSICA E ELECTRÓNICA

7.2. A Materialização Sonora do Poème de Varése

7.2.3. Método de Trabalho

Varèse fôra imposto à Philips como condição para a aceitação do projecto do pavilão por parte de Le Corbusier, e o acolhimento que o compositor tivera por parte da empresa – a qual preferia um nome mais tradicional, como Benjamin Britten – foi sempre no mínimo reservada (Treib 1996: 3-4; 18; 168-172; 194). Ao contrário de Badings, que fizera o Abel en

Cain em 17 dias, Varèse trabalhava lentamente, experimentando, sem apresentar um produto

acabado que se achasse em proporção com o tempo dispendido. Este modus operandi, com a sua aparente irracionalidade, desconcertava Tak, que costumava contar um episódio em que Varèse, depois de passar horas sem sucesso à procura de um som, ouvira a dobradiça da porta a ranger e dissera: «preciso desse som!» (Treib 1996: 182).

O episódio da dobradiça revela um aspecto importante no método de trabalho de Varèse: a atenção constante ao potencial de cada som que se lhe depara, a fim de descobrir «a inteligência que nele possa existir», parafraseando Wronsky. Uma implicação deste método é a postura de sensibilidade: mais do que impor ao mundo um modelo de som que concebe isolado em si mesmo, o compositor procura a sua matéria prima no ambiente que o rodeia. Parece-me provável, assim, que as ideias que Varèse tinha quando começou a trabalhar no

Poème fossem de natureza muito geral: ele não teria um modelo sonoro concreto ainda

formado, mas por isso mesmo estava receptivo a experimentar e ir progressivamente criando, com base nessa experimentação, um modelo sonoro a concretizar. Esta hipótese é coerente com a importância que, como vimos no cap.5, o compositor concedia à experimentação nos seus projectos de estúdios electroacústicos.

Isto não anula a possibilidade de Varèse formular hipóteses prévias em relação ao que pretendia experimentar, e de imaginar auditivamente o resultado final. Já formulei aliás esta hipótese no cap.5. Varèse frequentemente racionalizava, em termos de acústica, os efeitos que procurava na sua música instrumental. Barraud (1968: 153) relata tê-lo ouvido, em 1933, explicar Amériques, página a página, a partir da partitura:

Ces commentaires avaient ceci de surprenant (...) qu’ils semblaient ceux d’un ingénieur acousticien beaucoup plus que d’un compositeur. Varèse explicait toute son œuvre comme une suite de phénomènes sonores qu’il décomposait pour nous en analysant les interférences provoquées par tels rapprochements de timbres, telles agglomérations de sons, en calculant les fréquences élevées qu’ajoutait à l’ensemble l’intervention de tel ou tel instrument, de telle cymbale, et ainsi de suite. [Os seus comentários tinham isto de surpreendente (...) que se assemelhavam aos de um engenheiro acústico muito mais que de um compositor. Varèse explicava toda a sua obra como uma série de fenómenos sonoros que ele decompunha para nós analisando as interferências provocadas por tais aproximações de timbre, tais aglomerações de sons, calculando as frequências elevadas que acrescentava ao conjunto a intervenção de tal ou tal instrumento, de um determinado prato, e por aí adiante.]

O uso do eco para adensar um glissando através de sons diferenciais (cf.7.2.2) é uma forma de Varèse transpôr o raciocínio ao nível de interferências entre componentes do som para um recurso novo agora disponível, a reverberação artificial.

Ao nível da espacialização, segundo Tak (1958/59: 43), «Varèse concentrated primarily on the character of the tonal pattern, and for the most part left us to decide the ‘intonation’ (the distribution of sound over the loudspeakers, i.e., the spatial effect» [Varèse concentrou-se principalmente no carácter do padrão sonoro, e na maior parte deixou para nós decidirmos a ‘intonação’ (a distribuição so som pelos altifalantes, i.e., o efeito espacial]. Como conciliar o facto de o compositor deixar aos técnicos da Philips a «maior parte» da espacialização com a importância que ele, desde Octandre, concedia ao elemento espacial?

Uma hipótese a considerar é que o relevante para Varèse fosse a existência de uma projecção espacial e não tanto a forma específica dessa espacialização. Por outro lado, pode haver um exagero na afirmação de Tak. Segundo Tazelaar (2004c), o artigo de Tak é anterior à conclusão do Poème, e a espacialização foi realizada (ou pelo menos depurada) tardiamente. Numa carta a Odile Vivier, de Fevereiro de 1958, Varèse, depois de relatar uma visita ao pavilhão com os Philips, Le Corbusier e Xenakis, escreve:

(...) Je pense que vers la mi-mars nous commencerons expériences pour la mise au point de le distribution spaciale de ma partition. (...) Le problème électronique est bien plus complèxe qu’on en pense, ou qu’en ont conscience Paris, Cologne, et autres colonies plus ou moins ‘concrètes’. [Creio que por meados de Março comecaremos as experiências para depurar a distribuição espacial da minha partitura. (...) O problema electrónico é bem mais complexo do que o que se pensa, ou da consciência que dele têm Paris, Colónia e outras colónias mais ou menos ‘concretas’.] (Vivier 1973: 165).100

Por um lado, este texto mostra que a experiência do trabalho no Poème estava a ser, para Varèse, importante como tomada de consciência para novos problemas e novas questões: o contacto e a experimentação com novos materiais e métodos, independentemente de ser um meio para a materialização de ideias anteriores, estava a ser um estímulo para novas ideias, para descobrir a inteligência que poderia haver nos novos sons – independentemente de, no

Poème ou mais tarde, o compositor vir a transformar tudo isto em resultados sonoros

acabados.

7.2.3.1.Metalinguagem

Tak (1958/59: 43) agradece a Bruyn «for solving many of these difficulties» [por resolver muitas destas dificuldades] envolvidas na realização da «extraordinary wealth of sounds» [extraordinária riqueza de sons] que caracterizava o Poème. Tais dificuldades tinham a ver com a inexistência de uma metalinguagem para descrever os sons imaginados por Varèse. Note-se que o que Varèse sempre pretendera era obter sons nunca antes ouvidos, o que torna ainda mais difícil a criação de uma tal metalinguagem que fosse compreensível aos técnicos.

Como explica Tak (ibid.), a solução encontrada foi o uso de onomatopeias:

The deficiency of language in this field, the lack of words to express what is intended, was keenly felt. Varèse frequently indicated his wishes by such expressions as ‘more nasal’, ‘less biting’, ‘more rasping’, and it was our job to meet his wishes by such expressions as well as possible by means of filters, mixers and frequency-shifting circuits. To define the necessary operations we had to resort repeatedly to onomatopœic words, such as ‘wow wow’, ‘poowhip’, ‘tick tock’, ‘whoop’ and ‘choochah’. [A deficiência da linguagem neste campo, a falta de palavras para expressar o que se pretendia, fez-se sentir fortemente. Varèse frequentemente indicava os seus desejos por expressões tais como ‘mais nasal’, ‘com menos mordente’, ‘mais áspero’, e era o nosso trabalho ir ao encontro dos seus desejos assim expressos o melhor possível através de filtros, misturadores e circuitos para alterar frequências. Para definir as operações necessárias tínhamos que recorrer repetidamente a onomatopeias, como ‘wow wow’, ‘poowhip’, ‘tick tock’, ‘whoop’ e ‘choochah’.]

Fig. 7.20 – Excerto de uma das folhas que sobreviveram da

partitura de trabalho do Poème (Treib 1996: 198 ).

7.2.3.2.Partituras e Esboços

Badings fez o seu Abel en Cain com base numa partitura praticamente tradicional. Varèse, ao compor o Poème, andava sempre com uma partitura no bolso, na qual estava constantemente a fazer mudanças (Tazelaar 2004c). O que resta desta partitura são algumas folhas soltas (Treib 1996: 194-191; 198-201), cujos esboços não são relacionáveis directamente com qualquer parte específica do produto sonoro final. Trata-se pois de uma partitura de trabalho, mas que nos informa sobre a natureza da experimentação empreendida por Varèse.

Na fig. 7.20 vemos gráficos de altura vs. tempo, associados a simbologia rítmica e dinâmica tradicional, tudo isto em oito camadas sobrepostas. Corresponderão estas 8 pistas a uma intenção inicial de aproveitar o gravador de 8 pistas (cf.6.3) que Bruyn e Badings tinham considerado inutilizável? Há ainda referências a recursos ou técnicas específicas – «pure sine wave generator 200- 2000 c/s», «pulses of a sawing machine», «distorsed sine wave filtered 20-200 c/s» – e equivalências entre níveis dinâmicos e

intensidades relativas. O que se me afigura aqui mais notável, pelo que nos permite vislumbrar do modo de pensar e de operar de Varèse, é a utilização de um método puramente gráfico de notar a altura, eliminando as descontinuidades da pauta tradicional.