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R ELAÇÕES S OCIAIS : FONTE DE SOFRIMENTO PARA OS MOTORISTAS DE ÔNIBUS

4 O COTEJO DO MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO DE FREUD E SUA APLICABILIDADE NO CONTEXTO DE TRABALHO DO MOTORISTA DE ÔNIBUS

4.2 R ELAÇÕES S OCIAIS : FONTE DE SOFRIMENTO PARA OS MOTORISTAS DE ÔNIBUS

A mistura de mecânica, sons, condições meteorológicas, sinalizações e asfalto são parte do cotidiano do transporte coletivo: de um lado, a técnica e a máquina; do outro, o serviço e as pessoas, motorista, organização e usuários, que compõem a principal parte para a solidez da mobilidade urbana, que é a condição de deslocamento da população.

Na relação com o passageiro, o motorista de ônibus experiencia um misto de sentimentos, desde a satisfação de executar o trabalho de conduzir pessoas ao destino desejado a problemas gerados por incompatibilidade de opiniões ou acusações de ambas as partes. Há desrespeito ao lugar do outro, fazendo o corpo sentir os percalços do relacionamento interpessoal. Além de ser responsável por vidas que conduz, o motorista de ônibus é responsável pela máquina que dirige, na visão organizacional.

O trabalho não costuma ser definido como espaço para estabelecimento de amizades. Trabalhar não objetivaria formar amigos, mas produzir coletivamente algo que circulará para além dos vínculos estabelecidos. Entretanto, não podemos conceber o coletivo de trabalho como dado anteriormente à produção. É preciso pensar os modos de construção de relações no trabalho, ou seja, as políticas da amizade que o perpassam. As políticas são as relações de força que compõem os diversos sujeitos numa situação. A política da amizade que pode, ou não, se desenvolver em formas de relação, produz-se, antes de tudo, em função de modos de existência. (ZAMBONI, 2016, p. 335)

A relação interpessoal no interior dos ônibus é uma via de mão dupla. O respeito é imprescindível para manter a qualidade dos serviços e a segurança das viagens. O motorista lança mão de seus problemas pessoais para atender os usuários. A saber, esta classe trabalhadora sofre com a variação de humor dos passageiros; ele não tem controle de acesso. Ao abrir a porta no ponto, o trabalhador está vulnerável à agressividade alheia.

Os conflitos no interior do ônibus são uma afronta à atividade do motorista, pois, é dele a responsabilidade de conduzir vidas e é responsabilidade dos passageiros e do motorista a boa convivencialidade. “A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com justiça que ela está presente nos outros, constitui o fator que perturba nossos relacionamentos com o próximo e força a civilização a um tão elevado dispêndio [de energia]”. (FREUD, 2006c, p. 117).

Freud alerta os leitores que não é fácil abandonar a inclinação à agressão. O autor cita um fenômeno nomeado por ele de “narcisismo das pequenas diferenças” (p. 119), que significa a troca de hostilidade entre comunidades com territórios contíguos, e que se relacionam como

a Alemanha do Norte e a Alemanha do Sul (nos tempos de Freud). Portugueses e espanhóis, que também tinham rixas constantes, ridicularizavam-se. No cotidiano do transporte coletivo urbano, pode-se afirmar que o narcisismo das pequenas diferenças é um fenômeno observável.

Diariamente, no contexto organizacional, os Recursos Humanos recebem reclamações por parte dos motoristas de ônibus que se queixam dos maus tratos de clientes. As fontes são variadas. Muitos clientes reclamam da demora em chegar ao destino e desconsideram o trânsito, as regras a serem cumpridas pelos motoristas, como só trafegarem em faixas exclusivas e os limites de velocidade. Muitas reclamações recebidas contra os motoristas são infundadas e denotam a malícia do cliente em levar vantagem, ainda que seja para punir o trabalhador. Esquece-se que, como cliente, depende do serviço e tem uma pequena diferença em relação ao motorista.

O mal-estar gerado no interior do coletivo influencia todo o dia de trabalho do motorista, pois o cliente possui destino determinado para descer do ônibus, mas o motorista não tem opção de interromper seu itinerário e elaborar seu sofrimento. O ego fica dividido entre o instinto e às exigências do superego, e o inconsciente do motorista aparece na queixa de um sintoma, ou nas consequências da operação do veículo, freadas bruscas, avanços de sinais, aumento da velocidade. Os conflitos no ônibus podem influenciar os índices de absenteísmo das empresas, a preservação dos coletivos e, principalmente, os desajustes nas relações interpessoais no trabalho fragilizam o corpo do motorista que pode somatizar o conflito.

O cotidiano do motorista de ônibus pode culminar em sofrimentos físicos e psíquicos. O inconsciente, a estrutura revelada pela Psicanálise, instância da vida mental, é diretamente atingida no dia a dia de trabalho do motorista, pois, o trabalhador não dispõe de poder de decisão sobre quem entra em seu ambiente de trabalho (o ônibus), ou ficando vulnerável ao humor dos passageiros e à violência.

Necessário é considerar o sujeito em sua singularidade. O apoio psicológico ao trabalhador é uma ferramenta de promoção de saúde, e não deve ser negligenciado. Deve-se sempre considerar o motorista como sujeito desejante, que sofre na realização do seu trabalho. Não reduzir o sofrimento do trabalhador é não garantir, efetivamente, intervenções eficazes às demandas psicológicas que aparecem como recurso para o sujeito olhar para si, no afã de cumprir a jornada de trabalho sob as dificuldades variadas do setor. Assim, o motorista de ônibus sofre e compromete sua saúde.

A visão pessimista de Freud sobre o futuro da civilização transcende à discussão acerca da religião ou felicidade ou ainda questões ligadas ao ego. Freud preocupava-se com o instinto

humano de agressão e autodestruição. O controle, resultado da dominação humana, para o autor, diz respeito à infelicidade e à ansiedade, revelando a agressividade e endereçando ao outro esse instinto. Ainda hoje, a contemporaneidade reflete o aumento deste mal-estar relatado por Sigmund Freud há quase 90 anos atrás. A atualidade do texto é assustadora, pois mostra o retrocesso que a humanidade assume com mesmo descontrole, autodestruição do outro, guerras, intolerância às diferenças. O narcisismo das diferenças pequenas transbordou as distinções territoriais. Esse narcisismo revela-nos a barbárie do ocidente e do oriente no que tange às diferenças culturais, políticas, sociais e religiosas.

5 A PSICOSSOMÁTICA E SUAS INFERÊNCIAS NO COTIDIANO DO MOTORISTA DE ÔNIBUS

O trabalho é uma forma de interação social, em que um sujeito produz o resultado de suas habilidades na construção da prática diária. Todavia, a direção na que a rotina é levada pode induzi-lo ao adoecimento. A fim de superar os efeitos do trabalho na saúde do trabalhador, considera-se a Psicossomática como uma ferramenta explicativa, quando a doença não existe apenas no corpo, mas também existe no psíquico.

O ambiente de trabalho determina, expressivamente, a qualidade de vida e o bem-estar dos trabalhadores que nele atuam. Por isso, cabe à comunidade científica propor métodos para humanizar estes espaços e transformá-los em promotores de saúde, ao abranger o trabalhador biopsicossocial-espiritual.

Os ambientes vitais humanos são marcados por diversos convívios sociais – família, vizinhança, colegas de trabalho, estudo e ademais. As relações interpessoais, ou seja, as relações entre as pessoas estão presentes em todos os lugares onde existem dois ou mais indivíduos e que podem assumir variadas dimensões, como por exemplo, as relações de parentesco, relações de amizade, relações de trabalho, dentre outras, principalmente devido ao ambiente em que esta relação é formada. (POLASTRINI; CORTEGOSO, 2005, p. 5).

Tais relações podem influenciar o estado de saúde do sujeito, de forma positiva – suporte social e emocional, por exemplo, mas também, pode interferir negativamente – gênese de doenças ou até mesmo, a morte. Há muitos determinantes que agem expressivamente na saúde do sujeito, como o acesso a alimentação, moradia, saneamento, educação, transporte, lazer, principalmente o trabalho e as relações sociais nele estabelecidas, que são relevantes para a promoção de saúde psíquica.

As razões para a Psicossomática tratar acerca da cultura das relações de trabalho e os aspectos de promoção da saúde não são provenientes somente de fatores meramente individuais, mas também das manifestações em âmbitos coletivos. (POLASTRINI; CORTEGOSO, 2005, p. 111). Por este motivo, o cotidiano do motorista de ônibus foi correlacionado à Psicossomática, a fim de facilitar o entendimento sobre os efeitos, sejam dos fatores sociais e/ ou psicológicos, que atuam no corpo e bem-estar das pessoas que integram os ambientes de trabalho. O que não é resolvido no âmbito organizacional escoa para o corpo, do corpo para o exterior, convertendo em doença física que não tem sua gênese no físico, e sim no

psíquico. Isto é Psicossomática: comprometimentos do corpo sem origem biológica, mas psicológica.

O homem, ao desempenhar alguma atividade laboral, não deve ser percebido como máquina de produção, mas deve ser valorizado como um indivíduo repleto de potencialidades, livre para criar e se desenvolver em toda a sua plenitude, inclusive no trabalho. Todavia, delimita-se como problema de estudo o fato dos ambientes de trabalho, especificamente, das empresas de ônibus, capacitarem-se para lidar com tecnologias cada vez mais inovadoras, ante a clientela exigente por direito e qualidade de serviços, esquecendo-se de considerar as dimensões biopsíquicas e socioespirituais, de seus funcionários.

Prioriza-se aqui o motorista, que é o ser que confere a “imagem” da empresa e o que movimenta todo um trabalho. A não consideração de sua subjetividade, consequentemente, pode induzir ao adoecimento deste trabalhador e/ ou equipe, afetar a qualidade dos serviços prestados, e deteriorar a imagem da organização pelo qual faz parte. Deste modo, norteia-se a seguinte questão: Como transpor os desafios biopsicossociais e espirituais emergentes das relações interpessoais estabelecidas nos ambientes de trabalho, principalmente entre motoristas de ônibus?

Os desafios a serem superados, que afetam qualquer relacionamento pessoal, partem desde um trabalho fortemente burocrático, carga horária excessiva, competitividade, intrigas, pressões da chefia, o despreparo da equipe em promover a humanização no ambiente, baixo incentivo e desvalorização do funcionário, os problemas existenciais e aqueles oriundos do seio familiar, estado biopsicossocial e espiritual, entre tantos outros.

A saúde humana vem apresentando indícios pela forma como o processo de globalização e reestruturação produtiva vem se desenvolvendo, definindo o processo saúde- doença da população produtiva. As transformações que ocorrem nas esferas econômicas, política, social e técnica, presentes no trabalho, exercem forte domínio sobre a saúde dos trabalhadores. Quanto mais um ambiente se tornar desumano, mais difícil será manter a sobrevivência dos sujeitos que interagem neste espaço.

A escassez nos recursos materiais, humanos e físicos implica em uma diminuição da qualidade no atendimento ao cliente além de demandar maior esforço dos trabalhadores, de natureza psíquica ou física, podendo levar inclusive a acidentes de trabalho, e consequentemente. Insatisfação. (JEONG; DJY; KURCGANT, 2010, p. 5)

O tratamento de questões psicológicas é de grande relevância para a manutenção do clima organizacional e a saúde do trabalhador, e considerar programas educativos e

motivacionais contribui para prevenção de agravos psicossomáticos do trabalho. Ressalta-se que o autoconhecimento do trabalhador é fundamental para que haja mudança na realidade, o que reforça também a importância de sua participação efetiva no processo educativo e motivacional.

Entende-se que essa educação participativa contém potencial para desenvolver, nos trabalhadores, capacidade crítica diante do cotidiano do trabalho e convívio interpessoal. Essa postura crítica fará com que os trabalhadores atuem diante das situações de risco e conflitos de forma a evitar os adoecimentos e acidentes de trabalho. A aproximação do trabalhador ao espaço de escuta nas organizações é uma via de escape para as queixas psicossomáticas.

Com a participação ativa do trabalhador no processo de trabalho, o ambiente se tornará um local com menores riscos para acidentes, bem como o motorista buscará o reconhecimento em seu saber atuar, questionando as alterações nos processos de trabalho, e com adoção de novas tecnologias e novas formas de organizar o trabalho, à informação e recusa de trabalho perigoso ou arriscado a saúde, buscando, assim, a humanização no trabalho.