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ELEMENTOS DO TEXTO TEATRAL EM A PECADORA QUEIMADA E OS ANJOS HARMONIOSOS

No documento AS PESSOAS DE CLARICE: VIDAS QUE SE ENCENAM (páginas 83-89)

4 CAPÍTULO III – DO TEXTO À CENA: A MISE EN SCÉNE CLARICIANA

4.2 ELEMENTOS DO TEXTO TEATRAL EM A PECADORA QUEIMADA E OS ANJOS HARMONIOSOS

As personagens, não são apenas criaturas ficcionais que povoam a ação dramática. Do ponto de vista Stanislaviskiano, personagens são pessoas e, portanto, não devem parecer caricaturas no palco. Clarice Lispector sugere entender a concepção do dramaturgista russo, vez que as suas personagens são indivíduos comuns, dotados de autonomia. No dizer de Stanislavski, “Há uma grande diferença entre procurar e escolher em nós mesmos emoções que se relacionem com um papel e alterar esse papel para que sirva aos nossos recursos mais fáceis” (STANISLAVSKI 2011, p.51). Assim, a encarnação de uma personagem não se limita às emoções dos atores. O dramaturgista acredita que a representação teatral tem como ponto de partida a realidade do ator, mas esta deve misturar-se à realidade da personagem:

Todo ser humano vive uma vida, mas pode também viver a vida da sua imaginação. A natureza do ator é de tal ordem que, frequentemente, essa vida de imaginação é muito mais agradável e interessante que a outra. A imaginação de um ator pode atrair para a sua vida a vida de outra pessoa, adaptá-la descobrir qualidades e traços mútuos e excitantes. Sabe como criar uma existência de faz de conta a seu gosto e, portanto, chegada ao coração do ator, uma vida que o faz vibrar, que é bela e cheia de significado interior, especialmente para ele, uma vida de estreito parentesco com a própria natureza do autor (STANISLAVSKI, 2007, p. 37).

Na obra clariciana, semelhanças entre autora e personagem, vida e obra não constituem recurso autobiográfico e, sim, características do ser-pessoa Clarice Lispector que se entrelaçam às características da personagem-pessoa,

estabelecendo o elo entre realidade e representação; entre vida e arte; entre escrever e viver.

Stanislavski (2011), na figura de Tórtsov, sugere aos atores o exercício da mascarada. São disponibilizados roupas e acessórios para composição de personagens cuja criação é referendada unicamente pelo ator, sem interferências do diretor. Este processo de criação e representação de um papel, ou a procura de outra pessoa em si mesmo, cria no ator a possibilidade de se reinventar na cena teatral, assumindo papéis dos quais muitas vezes se distancia, mas pelos quais é instigado; o ator encontra na distinção pontos de convergência. A existência multifacetada no palco fortalece a própria existência no mundo, ampliando a compreensão dos seres e das coisas. Kóstia, um dos alunos-atores, outra personificação de Stanislavski, em A construção da personagem (2011), reconhece:

[...] Alegrava-me porque compreendia como viver a vida de outra pessoa, e o que significa embeber-me numa caracterização.

Isto é um recurso importantíssimo para o ator. [...] representando o papel do crítico ainda assim não perdia a sensação de que era eu mesmo. Concluí que isso era porque, enquanto representava, eu sentia um prazer imenso em acompanhar a minha transformação. De fato era o meu próprio observador ao mesmo tempo que outra parte de mim estava sendo uma criatura crítica, censuradora (p.48).

Escrita, em único ato, A pecadora queimada e os anjos harmoniosos atende às três unidades aristotélicas de ação, tempo e espaço. Embora Aristóteles não tenha dado ao termo “ação” maiores esclarecimentos, refere-se à ação trágica, enquanto imitação da vida e não de homens e nomeia o conflito como elemento propulsor da tragédia. A tragédia clariciana assinala o embate entre o ethos social e o exercício das vontades e dos sentidos; traz ao conhecimento do ator/espectador a protagonista que sofre a ação de ser julgada e condenada à morte, mas que sustenta, silenciosamente, o enredo dramático da peça. Clarice busca a verdade que reside no mistério: “[...] Nosso verdadeiro começo, e nosso verdadeiro fim será posterior ao fim visível” (2005, p.57).

O tempo é de vinte e quatro horas e toda ação transcorre em um mesmo espaço: o pátio no qual se dá o julgamento. Não acontecem rubricas e as

referências de espaço e tempo encontram-se contidas nos diálogos; as cenas são marcadas pela entrada das personagens. O protagonismo trágico consiste na decifração do enigma construído em torno da Pecadora. O conflito aparece revestido por um principio religioso e/ou moral: a Pecadora é levada a julgamento por infringir um dos dez mandamentos; entretanto, a história é tecida por emaranhado de conflitos e hesitações que confunde inocentes e culpados, vitimas e algozes.

4.2.1 “A pecadora queimada e os anjos harmoniosos”: a arte de pôr em cena os vazios da existência

ANJOS INVISÍVEIS: Eis-nos quase aqui, vindos pelo longo caminho que existe antes de vós. Mas não estamos cansados, tal entrada não exige força e, se vigor reclamasse, nem o de vossa prece nos ergueria. Só uma vertigem é o que faz rodopiar aos gritos com folhas até a abertura de um nascimento. Basta uma vertigem, que sabemos? Se homens hesitam sobre homens, anjos ignoram sobre anjos, o mundo é grande e abençoado seja o que é. Não estamos cansados, nossos pés jamais foram lavados. Grasnando a esta próxima diversão, viemos sofrer o que tem de ser sofrido, nós que ainda não fomos tocados, nós que ainda não somos menino e menina. Eis-nos nas malhas da tragédia verdadeira, da qual extrairemos a nossa fórmula primeira. Quando abrimos os olhos para sermos os nascidos, de nada nos lembraremos: crianças balbuciantes seremos e vossas mesmas armas empunharemos. Cegos no caminho que antecede passos, cegos prosseguiremos, quando de olhos já vendo nascermos. Também ignoramos a que viemos. Basta-nos a convicção de que aquilo a ser feito será feito: queda de anjo é direção. Nosso verdadeiro começo, e nosso verdadeiro fim será posterior ao fim visível. A harmonia, a terrível harmonia é o nosso único destino prévio (LISPECTOR, 2005, p.57).

A longa fala dos Anjos Invisíveis anuncia a tragédia clariciana e converge para busca da verdade original, primeira: “Eis-nos quase aqui, vindos pelo longo caminho que existe antes de vós”; para ausência de respostas: [...] “que sabemos? Se homens hesitam sobre homens, anjos ignoram sobre anjos” [...] e perpetua as convicções que rondam a existência humana: “o mundo é grande e abençoado seja o que é” [...]; “viemos sofrer o que tem de ser sofrido” [...]. Nas malhas da tragédia verdadeira, Clarice Lispector dá início a julgamento onde a designação de pecadora/culpada, embasada em valores morais e religiosos, é antes um equívoco de interpretação. Pavis registra o pensamento de Aristóteles quanto à falta do herói trágico cujo erro de julgamento e a ignorância provocam a catástrofe. A falta não se

dá por causa de “sua maldade e de sua perversidade, mas em consequência de algum erro [hamartia] que cometeu” (2005, p.191); de qualquer sorte, o herói trágico está sujeito à lei de causa e efeito; o erro implica punição.

Em A Pecadora queimada e os anjos harmoniosos, registra-se a impossibilidade de comunicação; as personagens encontram-se isoladas nas respectivas solidões: “Cada um diz e ninguém ouve [...] Cada um está só com a culpada” (2005, p.60). A Pecadora, personagem-trama da peça, está muda em cena; Esposo e Amante padecem da coita amorosa; o Sacerdote dirige-se a Deus; 1° Guarda e 2° Guarda vivem as reminiscências das guerras; Povo e Mulher do povo, Personagem do povo são movidos por uma “fome” insana; a Criança com sono, antes de aperceber o sorriso da Pecadora, limita-se à repetição mecânica da fala de outras personagens; os Anjos invisíveis estão na iminência da existência verdadeira: Anjos nascendo, Anjos nascidos. Está no palco o inefável da representação humana.

O texto teatral de Clarice Lispector parece atender à definição de tragédia clássica, vez que o que está em cena sugere ser a fatalidade humana. A personagem Anjos Invisíveis aparece na peça como espécie de alegoria mitológica; ao mesmo tempo em que profetiza e reconhece o destino cego dos heróis trágicos, aguarda pela condição humana: “[...] viemos sofrer o que tem que ser sofrido, nós que ainda não fomos tocados, nós que ainda não somos menino e menina [...]” (p.57). Por analogia, ocorre a predestinação comum às tragédias gregas, a exemplo de Édipo, rei (Sófocles). De acordo com Menezes, a tragédia edipiana traz ao palco “os primeiros rudimentos do ‘eu’, da capacidade de indagar e questionar o que, até então, era dado pelo inexorável destino” (MENEZES, 2006, p.62).

Clarice Lispector investiga, nos meandros multifacetados da fala do Esposo, do Amante e do Sacerdote, a constituição da subjetividade humana. Tais personagens, ao buscarem a culpabilidade da protagonista, na tentativa de manter a noção de coletividade, denunciam as próprias falhas. Assim, enviesadamente, não só afastam o estigma de pecadora da protagonista, como também se revelam suscetíveis ao erro. Na cena grega, Édipo tenta desviar-se do destino inalterável que derrota a vontade humana, mas acaba enredando-se em armadilhas e fatalidades que o levam ao cumprimento da profecia: matar o pai, (Laio) e casar-se com a mãe, (Jocasta). Édipo, ao investigar o assassinato de Laio, sentencia a própria condenação.

A Pecadora não se pronuncia em cena, mas o depoimento do Esposo, do Amante e do Sacerdote suscita-lhe a natureza irrevelada: aquela que “sorrir cheia de silêncio” (2005, p. 64). A Pecadora é levada a julgamento, por desvio de conduta, a que tudo indica, inevitável; a fala dos Anjos Invisíveis confere ao destino o aspecto inexorável e enigmático. A cegueira anterior, sob a condição espectral de anjos, permanecerá, mesmo que depois de nascidos: “[...] se homens hesitam sobre homens, anjos ignoram sobre anjos [...] cegos prosseguiremos quando de olhos já vendo nascermos” (2005, p.57). Assim, a morte da Pecadora é o fio condutor para a misteriosa existência verdadeira: “[...] Também ignoramos a que viemos. Basta-nos a convicção de que aquilo a ser feito será feito [...] A harmonia, a terrível harmonia é o nosso destino prévio” (2005, p.57).

Por outro lado, Vasconcellos (2010) ressalta que o conceito de hamartia não destitui do herói a autonomia:

Uma interpretação correta do conceito de hamartia não pode prescindir dos elementos ‘escolha’ e ‘vontade’ nem de uma ‘tomada de decisão’ por parte do herói. Essas circunstâncias são o que vai provocar no espectador os sentimentos de TERROR E COMPAIXÃO que conduzem à catarse (p. 127).

A falha trágica do herói grego e da heroína clariciana torna-se necessária ao curso dos acontecimentos; contudo, tanto Édipo quanto a Pecadora desafiam, respectivamente, os desígnios dos deuses e as leis de Deus. Édipo nega o vaticínio, abandona o lugar que acredita ser o de origem e precipita-se a uma existência enganosa. A Pecadora constitui um amante e passa a ter existência dupla; compromete o casamento e a própria vida. Há na atitude de ambos a desmesura – hybris - a cegueira da razão. De acordo com as palavras de Vasconcellos (2010), ”O personagem possuidor de uma hybris é aquele que geralmente avança além do que seria prudente ou aconselhável à maioria dos mortais” (p.129).

Em a Pecadora queimada e os anjos harmoniosos, a heroína trágica encontra-se em um tribunal, semelhante à Santa Inquisição, presidido por um Sacerdote, sob acusação de adultério, delatado pelo Esposo. A Pecadora é exposta em praça pública como se protagonizasse o teatro dos horrores; o povo tem fome de condenação, de sacrifício, de morte: “Há dias temos fome e aqui estamos a buscar alimento [...] Ei-la, Ei-la, Ei-la” (2005, p. 58-9). Cada um fala de seu lugar. As impressões da Pecadora são delineadas a partir da visão reducente e tendenciosa

dos que gravitam em torno dela. Mas as fissuras da linguagem permitem ao ator/espectador dar outra feição, mesmo que inacabada, à protagonista. A Pecadora consiste em uma pergunta: “Quem é esta estrangeira?” (2005, p.62).

De acordo com Stanislavski, a personagem teatral não pode permanecer inerte no palco; assim, é preciso buscar mecanismos cênicos para que lhe seja atribuída importância. Se a Pecadora é a própria trama da história e isenta-se de fala, cabe à arte teatral significá-la. Em A construção da personagem (2011), Stanislavski, na figura de Tórtsov, refere-se à valorização da personagem no palco:

[...] Não estamos interessados em impressões que ferem e fogem, aparecem e logo desaparecem. Não nos contentamos simplesmente com efeitos visuais e auditivos. O que merece nossa maior estima são as impressões exercidas sobre as emoções, que deixam no espectador uma marca indelével e transforma os atores em seres reais, vivos, que podemos incluir na lista dos nossos amigos íntimos e queridos, que podemos amar, com os quais podemos sentir afinidades, e que vamos visitar no teatro muitas e muitas vezes [...] (STANISLAVSKI, 2011, p.382-3).

O dramaturgista russo propõe aos atores que a veracidade da cena teatral esteja antes comprometida com a vivência das leis naturais. As palavras de Stanislavski confirmam-se na cena clariciana. É nos deslizes das falas do Esposo, do Amante e do Sacerdote, quando o sentido verdadeiro das palavras escapa, que Clarice Lispector promove a representação cênica da protagonista.

O silêncio da Pecadora, ainda que seja o caráter instigante desta tragédia, cabe registrar que as demais personagens, também anônimas, carregam em si uma falta. Há nelas a necessidade de atuação. O delito da Pecadora é a força motriz que lhes anima a existência. Os Anjos Invisíveis esperam, enfim, vir à cena; o Sacerdote pleiteia a salvação; o Povo, a Mulher do Povo, a Criança com sono, Personagem do povo purgam diante do espetáculo de morte; 1º Guarda e 2° Guarda recobram as sensações das guerras. Quanto às personagens Esposo e Amante, o destino da Pecadora assinala outras peculiaridades. A fala do Esposo acusa a superficialidade da relação amorosa:

[...] É aquela que para quem das viagens eu trazia brocado e preciosa pedraria, e por quem todo meu comércio de valor se tornara um comércio de amor [...] Não houve jóia que ela não cobiçasse, e com ela a nudez do colo não abafasse. Nada existiu que eu não lhe desse, pois para um viajante humilde e fatigado a paz está na sua mulher [...] Mas na transparência de um brilhante ela já perscrutava a

vinda de um amante. Quem vos diz é quem experimentou a peçonha: acautelai-vos de uma mulher que sonha (2005, p.62).

O Amante, que se diz também traído, esteve alheio à solidão da Pecadora:

[...] Abro agora os olhos até agora fechados pela jactância e vos pergunto: quem? Quem é esta estrangeira, quem é esta solitária a quem não bastou um coração [...] Pois na sua límpida alegria ela me vinha tão singular que jamais eu suporia vinda e um lar [...] Ah, desdita, pois se também junto a mim ela sonhava. O que então mais desejava? Quem é esta estrangeira? (2005, p. 61-62).

De olhos fechados estiveram o Esposo e o Amante, cegos para a profundidade do artifício humano; para as inquietações da amada. Clarice Lispector, ainda que se insinue nas próprias personagens, consiste em mistério. Em Um sopro de vida (1978), a autora arrisca resposta para a recorrente pergunta e persiste a incógnita: “Eu que apareço neste livro não sou eu. Não é autobiográfico, vocês não sabem nada de mim. Nunca te disse e nunca te direi quem sou. Eu sou vós mesmos”(LISPECTOR, 1978, p.19).

No documento AS PESSOAS DE CLARICE: VIDAS QUE SE ENCENAM (páginas 83-89)

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