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4 CAPÍTULO III – DO TEXTO À CENA: A MISE EN SCÉNE CLARICIANA

4.1 PECADO, CULPA E AUTOCONDENAÇÃO

4.1.1 O drama em um ato

Clarice Lispector, embora lamentasse a longa estada no exterior e os compromissos que a condição de mulher de diplomata lhe impunha, trava uma série de experiências culturais: conhece vários países (ainda que em tempos de guerra) mora em Nápoles, Berna, Torquay e Washington; lê autores estrangeiros, encontra- se com políticos, artistas e intelectuais; assiste a filmes e a espetáculos teatrais, traduz artigos, escreve romances e contos e, sobretudo, conserva o elo com o Brasil, através da vasta correspondência trocada entre as irmãs, Elisa Lispector e Tânia Kaufman; e amigos, a exemplo do dramaturgo Lúcio Cardoso, o escritor Fernando Sabino e a fotógrafa Bluma Wainer que a mantinham informada sobre o contexto político-artístico-literário brasileiro.

Há, principalmente, registros de momentos longe dos consulados e embaixadas; momentos alhures de buscas intensas. Ocorrem, nessa época, mais especificamente, em Berna, onde morou por três anos (1946-1949), os silenciosos intervalos no processo de escritura: “Você [Tânia] me pergunta se tenho trabalhado.

Não sei se tenho trabalhado: meu trabalho não tem aparecido [...]; a ausência de sentido:

[...] Minha impressão é a de que eu trabalho no vazio, e para não cair eu me agarro a um pensamento e para não cair desse novo pensamento eu me agarro em outro [...]; os impasses identitários: [...] Tânia, eu sempre fui assim, difícil, melancólica? Acho que a resposta é positiva, infelizmente (LISPECTOR, 2007, p.209).

Clarice Lispector encontra em outros seguimentos artísticos um modo de entretenimento que a desvia da solidão de estrangeira. O que lhe reforça o interesse pelo teatro. Referências à arte dramática são pontuadas em suas missivas: idas constantes ao teatro e comentários sobre espetáculos aos quais assiste: “[...] Fomos ver uma peça de Arthur Miller (marido da Marylin), Wiew from the bridge. É ótima, mas acho “Morte de um caixeiro-viajante” superior”. (MONTEIRO, 2007, p.278). Interessa- se pela dramaturgia brasileira: “Elisa querida, quando você tiver visto a peça de Nelson Rodrigues, me escreva. Queria saber que mais ele introduziu, além do que já costumava e que já era bastante ousado [...]” (2007, p. 288).

Em carta enviada a Clarice Lispector, em julho de 1947, Lúcio Cardoso solicita à autora parecer sobre o Teatro de Câmera, apoiando-lhe o empreendimento. Percebe-se que o pedido do dramaturgo não se limita à relação afetiva entre ambos, tampouco ao prestígio da Clarice Lispector escritora. Lúcio reconhece em Clarice a veia dramática, a sensibilidade artística, a capacidade intelectual e, assim, confia-lhe a apreciação.

Fundei um teatro para nós. Chama-se “Teatro de Câmera” [...] O repertório é o seguinte: A corda de prata, deste seu amigo e criado,

O jardim, de Cecília Meireles, Mensagem sem rumo de Agostinho

Olavo, Para além da vida, do poeta português atualmente entre nós, Rabelo de Almeida, e finalmente um clássico O anfitrião, de José Antônio, o judeu, modernizado por Marques Rabelo. Há grandes cenaristas: Santa Rosa, Burle Marx etc. as estrelas principais são duas: Alma Flora; esplêndida e Maria Sampaio, que você deve conhecer [...] gostaria que você, caso pudesse e se interessasse, escrevesse quatro ou cinco linhas dizendo o que pensa e apoiando a iniciativa do Teatro de Câmera [...] é um teatro destinado a enfrentar essa idéia de que o teatro é o espetáculo, a grande montagem [...]

resta esclarecer que não há nenhum ranço político no grupo, que acolhemos todo mundo, desde Cecília Meireles a Jorge Amado, que vai nos dar uma peça chamada A estrangeira. Há também uma de Nelson Rodrigues, Electra. Com esses dados, você poderá nos enviar um apoio livre de qualquer suspeita de “reacionarismo” [...] (MONTEIRO, 2002, p.144).

A escritora atende à solicitação e mostra-se curiosa sobre os textos elencados pelo amigo48:

[...] Não sei se compreendi bem a intenção do Teatro de Câmera, mas como compreendi achei ótimo. Eu queria tanto saber como é A

corda de prata. O que é Lúcio, conte, por favor, um pouco ao menos

[...] Como é O jardim, de Cecília Meireles? Deve ser uma maravilha, e eu tinha tanta vontade de conhecer a peça e a autora [...] (MONTEIRO, 2002, p. 147).

Bluma Wainer, em carta de 03 de março de 1948, resenha acontecimentos teatrais:

[...] Pascoal Carlos Magno tem feito um grande trabalho com o Teatro do Estudante que conseguiu realizar Hamlet e mantê-lo no cartaz durante 6 semanas e anuncia que voltará na próxima semana, a pedido. Agora estréia A Castro – peça portuguesa, que não conheço nem fui ver ainda. Dulcina anuncia para breve L’aigle a deux

tetê – que tal Odilon fazendo o papel de Jean Marrais?(o nome dele

não é assim que escreve, mas não faz mal). Teatro há mesmo o do estudante, Procópio e Dulcina que ainda não está funcionando, o resto são filmes ruins e só [...] (MONTERO, 2002, p.169).

Em outra correspondência, a amiga tece críticas incisivas ao ator polonês, naturalizado brasileiro, Ziembinski, evidenciando o estranhamento provocado ao representar um coronel do interior da Bahia, personagem de Jorge Amado.

48

O texto escrito por Clarice Lispector, atendendo à solicitação de Lúcio Cardoso, foi transcrito na p. 39 desta dissertação.

[...] Noutro dia fui ver a première de “Terras dos sem fim” (sic) – adaptação para o teatro, de Graça Mello. Não gostei. Muito longo, quadros rápidos como se fossem snaps de cinema não tem a atmosfera do livro e fazendo coronel do sertão, é de matar, com sua pronúncia e jeitos de Europa central (MONTEIRO, 2002, p.149).

O ano de 1948 registra dois fatos indeléveis na vida da escritora: o nascimento do primeiro filho, Pedro Gurgel Valente, e o término do livro A cidade sitiada cuja escrita foi induzida pela falência de comunicação em Berna; pela busca de sentido para vida. “O mais difícil de escrever” (LISPECTOR, 2005, p. 149). Segundo Gotlib (2009), “[...] quanto mais a escrita fica difícil, mais [Clarice ] se certifica de que é ela a razão da sua vida [...]”(p. 268). Clarice revelou não escrever como catarse “[...] eu não escrevo como catarse, para desabafar. Eu nunca desabafei num livro [...] Eu quero a coisa em si” (2005, p. 155). Mas aventura-se na dramaturgia em processo de depuração contraditória: “[...] comecei a fazer uma ‘cena’ (não sei dar o nome verdadeiro ou técnico); [...] em verdade vos digo, é uma coisa horrível. Mas tive tanta vontade de fazer que fiz contra mim.[...] Você não imagina o prazer[...]” (2005, p. 55).

Envolvida com a difícil escrita do romance e a própria maternidade, Clarice Lispector reconhece que “escrever é uma maldição, mas uma maldição que salva” e, distraidamente, dá forma A pecadora queimada e os anjos harmoniosos, resgatando um “estilo empoeirado” desde a infância: o texto teatral. “[...] Trabalhando nessa cena, estou descobrindo uma espécie de estilo empoeirado – uma espécie de estilo que está sempre sob o nosso estilo e que é uma mistura de leituras meio ordinárias da adolescência [...]” (2005, p. 55). Clarice Lispector, aos nove anos, escreve, em quatro folhas de caderno, uma peça em três atos, Pobre menina rica, a qual não se permite compartilhar, nem mesmo com as irmãs. A essa época, as preocupações não seriam as mesmas de Clarice adulta; não foram as dúvidas quanto à qualidade do texto que resultaram desaparecimento, mas sobre o que escreveu: “[...] e como eu já falava de amor, escondi a peça atrás de uma estante e depois, com medo de que a achassem e me revelasse, infelizmente rasguei o texto. Digo infelizmente porque tenho curiosidade do que eu achava de amor aos nove precoces anos” (LISPECTOR, 1999a, p. 429).

As leituras que compreenderam a infância e a adolescência não foram ordinárias, ainda que misturasse romance cor de rosa, Delly e Ardel, com clássicos da literatura brasileira, Monteiro Lobato, Machado de Assis; e estrangeira, Katharine Mansfield, Hemman Hesse, Dostoiévski entre outros. Eram os títulos dos livros que a incitavam à leitura, portanto, lia ao sabor da aventura, do inusitado. Viver literariamente parece ser o destino da escritora; o modo de manter-se na vida; sabia como transformar as mazelas em histórias fantásticas que não acabavam nunca:

Bom, antes de ler e escrever eu já fabulava [...] Eu ensinei a uma amiga um modo de contar histórias. Eu contava uma história, e quando ficava impossível de continuar, ela começava. Ela então continuava, e quando chegava em um ponto impossível, por exemplo, todos os personagens mortos, eu pegava. E dizia: “Não estavam bem mortos”. E continuava (LISPECTOR, 2009, p.79).

Em entrevista ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (1976), Clarice relata a perplexidade ao ler, aos catorze anos, Hesse: “Fui ler Hermann Hesse. Tomei um choque. O Lobo na Estepe ou da Estepe, não sei. Aí comecei a escrever um conto que não acabava mais. Terminei rasgando, jogando fora”(LISPECTOR, 2009 p.79).

Ao ser subitamente hospitalizada, logo depois da publicação de A hora da estrela (1977), re-inventa o estado de enfermidade e propõe-se à ficcionalização: “Faz de conta que a gente não está indo para o hospital, que eu não estou doente e que nós estamos indo para Paris” (LISPECTOR, p. 1980); na véspera da sua morte, acometida de intensa hemorragia, Clarice encena-se: “[...] Desesperada, levantou-se da cama e caminhou em direção à porta, querendo sair do quarto (...) a enfermeira impediu que ela saísse. Clarice olhou com raiva para a enfermeira e, transtornada, disse: ‘Você matou meu personagem!”(GOTLIB, 2009, p.604).

O drama em único ato, A pecadora queimada e os anjos harmoniosos, reafirma a impossibilidade de completude; retoma o inacabado do ser que perpassa toda a obra clariciana. Não se pode dizer tudo sobre a personagem, não se pode apreender a vida em totalidade. O suspense da existência humana está nos não- ditos. Na tragédia clariciana, a personagem Pecadora revela-se imprecisa; à medida que Esposo e Amante especulam sobre ela, distanciam-se da verdade absoluta que encerra a condição de adúltera:

“Esposo: [...] não consigo ver mais nessa mulher aquela que foi e não foi minha, nem na nossa festa passada aquela que era e não era nossa [...]” (p.60); “Amante: [...], pois esta mulher que nos meus braços a seu esposo enganava, nos braços do esposo enganava àquele que o enganava [...]” (p.61).

4.2 ELEMENTOS DO TEXTO TEATRAL EM A PECADORA QUEIMADA E OS

No documento AS PESSOAS DE CLARICE: VIDAS QUE SE ENCENAM (páginas 78-83)

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