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3. AS TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS DO HIZBALLAH

3.1.1 Elementos gerais do documento

A Carta Aberta (Anexo A) é endereçada aos que se encontram em situações de humilhação, mencionando a expressão

mustad'afin13 se aplica aos injustiçados, os injustamente tratados, tiranizados e empobrecidos que não possuem o pão diário, e que são oprimidos em sua liberdade, dignidade e empenho sem considerar se são cristãos ou muçulmanos. Portanto, a ideologia política do Hizbullah enfatiza a universalidade do conceito do Alcorão em oposição à especificidade do conceito marxista - que atravessa a classe, clivagens culturais e religiosas. (ALAGHA, 2011, p.16, tradução nossa)

Para ​Ghorayeb (2002), a distinção que é feita entre oprimidos e opressores é um princípio estabelecido com base no pensamento do Immã Khomeini, essa compreensão é diferente de outros matrizes dentro do pensamento islâmico. Uma concepção que geralmente é confundida com a dicotomia oprimidos/opressores que o Hizballah advoga é o Dar

al-Islam' ​(a Morada do Islã) versus 'Dar al-Harb' (terra da guerra), que coloca os

muçulmanos contra os não-muçulmanos. O diferencial é que os opressores não representam os não-muçulmanos e sim os oprimidos politicamente, privados da economia e discriminados. Assim, a autora afirma que a concepção da organização sobre a opressão é humanística com base no alcorão a todos 'aqueles que estavam sendo oprimidos na terra '(28: 5).

Certamente, a situação que se encontrava a população mais pobre no Líbano na década da exposição desta carta possa ser o pano de fundo para compreendermos o momento na qual vivia a população local, pois, a face da guerra entre as civis xiitas e cristã no sul do país, era de sufocamento pelas baixas na economia e da brutalidade contra a vida em um quadro de guerra.

Outro elemento a ser identificado é o ascetismo, uma vez que no Islã xiita desde o Imã Ali que abdicou de luxos e optou por uma vida humilde junto aos seus seguidores. Esse tema é relevante no Hizballah, pois o estilo de vida de suas lideranças é predominante pela institucionalização desse modo de vida.​ ​(GHORAYEB, 2002).

Assim, com de falangistas com Israel e a ingerência de países como EUA, o conceito de opressores passa a ser instrumentalizado pelo Hizballah para esses agentes. Esse uso conceitual por parte da organização permitiu uma circulação na comunicação para com as massas no período do conflito, dada a realidade de pauperização e extermínio da população.

A carta coloca mostra o alinhamento com a República Islâmica do Irã e possibilitaram o renascimento do Islã no mundo, cujo a afirmação se encontra no reconhecimento do Ayatullah Ruhallah al-Musawi al-Khomeini, na posição de ​waliyy al-faqih​ (ALAGHA, 2011).

A concepção de ​wilayat al-faqih é resultado do entendimento dos jurisconsultos

xiitas, na busca de repostas para a questão sucessória depois da morte do profeta. Para a legitimação dos Imã Ali e os demais reconhecidos como imamato, esse sistema foi adotado pelos xiitas, ficando obsoleta essa prática após a ocultação do imamato do Imã Ali. Porém essa concepção e prática volta a ser empregada com os discursos do aiatolá Khomeini na Revolução Iraniana ​(COSTA, 2013).

O Irã aparece no documento como o farol revolucionário para o Hizballah, sendo esse país portador da moral no mundo contemporâneo, sendo reconhecida na carta o renascimento islâmico por meio da transformação social impostas pelos xiitas iranianos na revolução.

Apesar do Irã representar o coração do islamismo, e uma nova esperança para a comunidade xiita no Líbano e no mundo, é necessŕio observarmos que o Hizballah dá ênfase nesse país como guardião do islã, mesmo com a existência de regimes sunitas nos países do Golfo. O fato do renascimento islâmico demonstra afinidade com os ​aiatolás iranianos e a visão de renascimento, ou seja, percebe-se uma negação aos regimes já colocados no momentos, a exemplo a monarquia da Arábia Saudita.

Diferentemente do seu horizonte e do seu reconhecimento espiritual em seu mentor no Irã, a ​umma expandiria-se para todos os muçulmanos, sendo esse o caráter indivisível do corpo muçulmano no mundo. Porém, segundo mencionado pela carta, isso deve ser confrontado com o dever religioso, isto é, chocar o destino e desígnios dos muçulmanos não alinhados com a suas obrigações ( ​wajib shar'i​) principalmente e à luz de uma visualização política geral decidida pelo líder: “​al-waliyy al-faqih​” (ALAGHA, 2011, p.40, tradução nossa)

Além da direção dada pelo líder ​al-waliyy al-faqih​, as três principais fontes de inspiração teológica e consequentemente jurídico-política encontram-se no Alcorão, na ​Sunna e as regras colocadas pelos juristas, ou seja, a faqi ​. Sendo esses elementos na visão exposta no documento, claros e de fácil acesso e sem necessidade de teorização ou dispêndio filosófico, para todos eles a necessidade é do respeito e que sejam colocados em prática pelos fiéis.

Dessa forma, podemos afirmar que o Hizballah guarda consigo a inspiração da revolução iraniana, desde sua gênese pré-organizativa dada as influências de opositores do Xá

que se instalaram junto à comunidade xiita nativa no Líbano. Com a revolução no Irã, o Immã passa a ser reconhecido através do ​al-waliyy al-faqih ​pelo ​Hezbollah. O Irã tem a hegemonia da organização emergente no Líbano, porém, o mesmo pode compreender a realidade libanesa e suas relações de modo ​sui iuris​em relação ao Irã, apesar do alinhamento ideológico e político.

O Hizballah declara que as capacidades militares da organização são imensuráveis, pois, a não separação entre a comunidade que eles intitulam como sociedade de resistência é parte integrada à comunidade, sendo a jihad da "responsabilidade legítima e religiosa"( taklif

shar'i ​) exercida pelos desígnios de ​wilayat al-Faqi​ cada um torna-se um combatente.

A carta exalta as ações da resistência islâmica contra a Forças de Defesa de Israel (FDI), na qual tenta destacar a resistência islâmica como égide das vitórias alcançadas

A digna Resistência Islâmica, que sublinhou e ainda é sublinhada os melhores épicos de heroísmo contra as forças sionistas ocupantes [exército de Israel],destruiu, com a crença religiosa de seus combatentes, os mitos do invencível Israel. Colocou a “Entidade Violadora” [Israel] em problemas reais devido à guerra diária de atrito que travou contra seus recursos militares e humanos e econômicos,o que levou seus líderes a admitir a gravidade do confronto que são de frente para as mãos dos muçulmanos. Essa resistência islâmica está destinada a continuar e crescer, se Deus quiser. Tudo Espera-se que os muçulmanos do mundo forneçam todo o apoio e apoio para arrancar a “glândula cancerosa” [Israel] e eliminá-la da existência. (Ibidem, p.49, tradução nossa)

Sobre o países, a carta coloca na seara dos opressores a América (Estados Unidos), aliados da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), e a “entidade sionista”, devido aos males causados à toda ​umma​, a Israel, a luta contra opressor se dá pela tomada da Terra Santa, solo palestino (Imagem 04). A principal menção sobre as ações desses agentes contra os oprimidos é a humilhação, a agressão contra a ​umma​, os massacres.

Imagem 4 - Cartaz de 1984: Jerusalém, aqui estamos!

Fonte: SIGNS OF CONFLICT, 1984

Sobre a Guerra Fria e o antagonismo entre os projetos societários do comunismo e capitalismo, a carta se posiciona tanto a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e EUA falharam em seus projetos de estabelecer a felicidade na terra, pois

(...) ambos os campos estão lutando por ganhos materiais e estão tentando deixar para trás os oprimidos de seus recursos naturais e direitos [históricos]. Nesta posição, mantemos-nos firmes contra qualquer intervenção colonial, seja oriental ou Ocidental. Nós repreendemos os crimes perpetrados pela América no Vietnã, Irã, Nicarágua, Granada, Palestina e Líbano. Condenamos a invasão soviética Afeganistão e a interferência na soberania do Irã e no território ( Ibidem, p.47, tradução nossa)

Sobre países árabes caracterizados como reacionários, ele destaca que os países produtores de petróleo não hesitaram em transformar seus territórios em bases militares para América e a Grã-Bretanha, sendo estes dependentes de especialistas estrangeiros que são

colocados dentro do seu alto escalão de oficiais, executando dessa maneira a política de Washington, especialmente em colocarem a disposição seus recursos naturais e distribuí-los entre os colonizadores a partir de todos meios que sejam necessŕaios (Ibidem, p.51).

Sobre a maior monarquia muçulmana de fundamentação sunita, a carta se menciona que

Alguns dos que afirmam serem os guardiões da ​Sharia islâmica [ O regime da Arábia Saudita] empregam essa alegação para encobrir sua traição e para encontrar um pretexto por sua entrega à administração dos EUA. Ao mesmo tempo, eles [ O regime saudita] proíbe veementemente qualquer livro revolucionário islâmico referênciados pelo Imam Khumayni. (Ibidem, p.51, tradução nossa)

Segundo ele os derrotistas, empurram o povo para a ignorância, não permite mobilizações contra a América e seus aliados, necessitando a vigilância dos oprimidos em face a corrupção impregnada nos seus próprios sistemas políticos. O Iraque de Saddam banhou-se de recursos ilimitados dos EUA na guerra contra o Irã.

Sobre o sunismo, alicerce do regime saudita a organização menciona no documento que as divergências entre xiitas e sunitas são “discórdia colonial maligna ( ​fitna ) que visa romper sua unidade para espalhar a sedição entre vocês e inflamar os sentimentos sectários entre sunitas-xiitas.” Assim como é enfatizado que os inimigos dos muçulmanos “usam a tática para dividir para reinar, inclusive do apoio de “eruditos muçulmanos corruptos (juristas do estado) ou os líderes feudais ( ​zu'ama​ )” (Ibidem, p.53, tradução nossa).

A carta também caracteriza como a política do ceder, na qual resulta em reconhecer a legitimidade de Israel, que impera a política da OLP (Organização de Libertação da Palestina) de Yasser Arafat, a Organização das Nações Unidas, o Iraque, o eixo jordaniano-egípcio e o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG). 14

Então, o discurso da carta tipifica o países citados anteriormente como “regimes árabes reacionários, que se caracterizam como um impedimento contra aumento da conscientização e da unidade da população islâmica.” (Ibidem, p. 51-52, tradução nossa) Declarando a inimizade e até mesmo um fim semelhante ao de Anwar Al Sadat, do Egito, morto por jihadistas de dentro do exército pelos motivos de aproximações do acordo de paz com Israel.

Um dos estopins perpetuados pela invasão das tropas israelenses e da milícia cristã, o massacre de Sabra e Chatila é descrito que

14 Essa entidade reúne seis estados do Golfo Pérsico: Omã, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Qatar, Bahrein e Kuwait e tem como objetivo a cooperação econômica e

Em uma única noite, os israelenses e os falangistas massacraram milhares de nossos filhos, mulheres e crianças em Sabra e Shatila. Nenhuma organização internacional protestou seriamente ou denunciou esse massacre feroz, um massacre perpetrado em coordenação com as forças da OTAN que desocuparam suas posições alguns dias, talvez algumas horas antes do massacre nos campos palestinos. Os derrotistas libaneses [governo] aceitaram colocar os campos palestinos sob a proteção do lobo [da OTAN], em conformidade com o que o ditou o astuto enviado dos EUA, Philip Habib (Ibidem, p.42, tradução nossa).

A organização cita a tomada das terras e de territórios como violação de terras muçulmanas e a organização por meio do pronunciamento acusa de Israel ter ocupado dois terços do Líbano. O impacto dessas ocupações resultaram segundo a organização xiita, quase em meio milhão de muçulmanos fora de suas casas de bairros muçulmanos que estavam sob controle das forças libanesas. Os bairros em​Nab'a , ​Burj Hammud , ​Dikwané , ​Tal al-Za'tar , ​Sibnih​ , ​Ghawarina ​distrito e ​Jubayl​ muçulmanos eram totalmente devastados.

A ocupação de territórios é creditado aos falangistas pois estes

participaram da execução dos planos e políticas israelenses para que pudessem ser recompensado com a sede da presidência no Líbano. O sonho falangista foi realizado. O açougueiro [comissário de massacre] Bashir Jumayyel. tomou o poder com a ajuda de Israel, países ricos em petróleo árabe, e os maronitas políticos. Através de um esforço consolado para embelezar sua imagem. (...) Amin Jumayyel, destruiu as casas dos deslocados; exerceu sua agressão contra as mesquitas; ordenou que o exército [libanês] bombardeassem fortemente o povo oprimido nos subúrbios do sul de Beirute; convidou Tropas da OTAN para ajudá-lo contra nós; e assinou o acordo de 17 de maio de 1983 com Israel, que pretendia fazer do Líbano um protetorado israelense e uma esfera de influência americana . (Ibidem, p.42-43, tradução nossa)

Para o confronto contra as injustiças, o documento é direto ao dizer que somente a agressão e sacrifícios surtiram efeito. A justificativa para o uso do sacrifício e do sangue é justificado pela falta de escolhas efetivas

vimos que a única maneira de enfrentar a agressão é com sacrifícios. A dignidade só pode ser mantida com o sacrifício de sangue. Liberdade não é dada; ao contrário, é recuperada com sacrifícios dispendiosos. Escolhemos fé (religião), liberdade e dignidade para viver sob humilhação contínua da América e seus aliados: os sionistas e os falangistas colaboradores. Nós nos revoltamos para libertar nossa terra, expulsar os colonialistas e os invasores a partir dele, para que possamos exercer nosso direito de autodeterminação.Não podíamos mais ter paciência; nós já esperamos dez anos e apenas vimos que a situação se deteriorou de mal a pior. (Ibidem, p.42, tradução nossa)

No discurso, o sofrimento da população chegava a ser insuportável, Losurdo (2010) menciona que os ataques suicidas eram movidos pelo desejo de “resistir à ocupação

estrangeira.” O significado compartilhado pelos participantes da organização do Hizballah é descrito por Ghorayeb (2002) como um enaltecimento do martírio como uma defensiva

jihadista ​para enfrentar uma invasão de grupos superiores militarmente com um arsenal de alta tecnologia. Sendo o martírio recompensado com a certeza dos céus, ao contrário do suicídio por motivos de sofrimento como o que seria uma condenação eterna ao inferno. Assim, a legitimação das operação do martírio são com base em decretos religiosos

O Hizballah legitima suas operações de martírio com base em decretos religiosos e reitera sua proibição de conduzi-los se os mesmos objetivos pudessem ser alcançados por menores ​jihad​. Segundo o discurso da carta, a população estava numa situação na qual a

população não suportava mais traição, então eles decidiram permanecer firmes contra as nações de infidelidade ( ​a'immat al-Kufur ​) América, França e Israel. Nossa população os castigou: em 18 de abril e 29 de outubro de 1983. A resistência islâmica (ala militar do Hizbullah) lançou uma guerra de atrito contra as forças invasoras de Israel (IDF) e foi capaz de destruir dois líderes quartel-general militar, infligindo pesadas baixas e forçando o inimigo (IDF) para desocupar terras ocupadas, que é um precedente na chamada região árabe-israelense conflito. Pela pura verdade que declaramos: os filhos da umma do Hizbullah sabem quem são seus grandes inimigos estão no Oriente Médio: Israel, América, França e os falangistas. (ALAGHA, p.43, tradução nossa)

A carta é enfática em ter como estratégia a destruição do Estado de Israel, pois este se trata da “ponta de lança da América em nosso mundo islâmico […] Israel é um inimigo violador que continuaremos a lutar até que a terra violada retorne ao seus Proprietários legítimos [palestinos]” (Ibidem, p.48, tradução nossa). Desse modo,“Israel deve ser completamente eliminado da existência”​ ​(Idem,​ ​Ibidem​,​ tradução nossa).

A posição da organização sobre a expansão de Israel é caracterizada como uma colonização expansionista e reconhecer a entidade sionista seria legitimar as ações desta, apontando inclusive sobre o chamado israelense para a imigração de judeus etíopes e de outras nacionalidades para sul do Líbano (Ibidem, p.48, tradução nossa).

Sobre os agentes externos que tentam almejar as soluções para o conflito árabe israelense, o escrito afirma que rejeita qualquer intromissão, assim como rechaça a capitulação de forças rebeldes para acordos, assim como rejeitam “Acordos de Camp David [entre Egito e Israel], as propostas do rei Fahd, o Fez [Marrocos] e Reagan e de Brejnev” (Ibidem, p.48, tradução nossa).

Sobre o repúdio ao Estado de Israel e a afirmação do desejo de sua destruição, Ghorayeb (2002) afirma que o Hizballah leva em conta a natureza civilizacional e existencial

do Estado judeu, a ocupação não é ilegal por que estava no Sul do Líbano e sim é ilegal por estar ao sul do Líbano, na Palestina e em Jerusalém. Portanto, mesmo com a presença israelense fora do Líbano, a abominação do Hizballah continuaria inalterada.

A ONU, e o Conselho de Segurança entre outros são caracterizados por

não constituem um pódio para os oprimidos nações e, em geral, permanecem ineficazes e ineficientes devido ao processo hegemonia dural e domínio dos opressores mundiais em suas decisões. O direito de veto, concedido a alguns países, é um testemunho do que nós dizemos. (...) Nesta perspectiva, não previmos que essas organizações emitam qualquer coisa que serve aos interesses dos oprimidos (Ibidem, p.55, tradução nossa).

Sobre Israel na ONU, o Hizballah pede para que todos países “adotem uma resolução para demitir Israel da ONU porque é uma entidade ilegítima-violadora, que se opõe à humanidade em geral” (Ibidem, p.55, tradução nossa).

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