• Nenhum resultado encontrado

4. MEMÓRIAS DOS PORÕES DA SOCIEDADE: ANÁLISE DE A PEQUENA PRISÃO

4.2. ELEMENTOS INICIAIS

Avançando no livro, encontramos uma epígrafe retirada da música “Há Tempos”, da banda Legião Urbana: “Ter bondade é ter coragem”. Além de introduzir um tom otimista que se destaca em vários momentos de A pequena prisão e que ditará o tom do encerramento do livro, a escolha é muito significativa para o contexto da obra de Mendes, uma vez que retornará na página 130, figurando entre as palavras que o narrador escrevia nas paredes com pasta de dentes, fora do alcance da vista dos guardas.

Outra tarefa, essa normalmente cumprida pela manhã, era escrever palavras-de-ordem ou frases queridas, nas paredes, usando pasta de dentes como tinta [...]. De frente para a minha comarca35, escrevi: “Liberdade aos presos políticos!” e “Resistir é preciso”. Também encontrei espaço para escrever, em letras pequeninas, a bela frase retirada da canção da Legião Urbana, que me enchia de ânimo naqueles momentos duros: “Ter bondade é ter coragem”. Cheguei ao ponto de apagar frases escritas apenas para refazê-las em seguida, a fim de ocupar os minutos intermináveis. Essas consignas não apenas distraíam-me, por uma pequena fração do dia, mas também eram fonte de incentivo para que não me deixasse abater (MENDES, 2017, p. 130).

É impactante aqui o poder de encorajamento e acalento proveniente das palavras a que o narrador alude e que aparecerá de forma reiterada em seu texto – notadamente, nas frases escritas nas paredes das celas, nas raras cartas que lhe eram entregues e também nos poucos livros a que ele teve acesso durante todo o período que passou preso. É importante também, por ora, assinalar a forma como, ao utilizar as paredes de sua cela para escrever palavras que, ao mesmo tempo, representam uma forma de distração mas também de estímulo, ele subverte aquele ambiente: ele produz, para usar um termo de John Holloway (2013), uma fissura na estrutura daquele espaço marcadamente opressor. Para Holloway, quando alguém se rebela frente a um sistema opressor, por menor que esse ato de rebeldia possa parecer em uma perspectiva macro, contribui-se para gerar fissuras no sistema capitalista como um todo – e assim o narrador de Mendes o faz, repetidas vezes.

Ainda sobre a escrita nas paredes, é indispensável aludir à semelhança da ação do narrador com a dos pixadores no espaço urbano; da mesma forma que os pixadores reivindicam a paisagem urbana e exercem seu direito à cidade com seus pixos, também as frases escritas com pasta de dente, escondidas das figuras de autoridade da prisão, o fazem. Para Scardino, o pixo “é uma reivindicação da paisagem, reorganizando o mapa (simbólico e afetivo) da cidade. É, também, um exercício do direito à cidade, pois implica um uso imprevisto (e muitas vezes ilegal) dos espaços urbanos” (SCARDINO, 2017, p. 13). Com seus “pixos” de pasta de dente,

o narrador de Mendes consegue reivindicar para si uma parte, mesmo que pequena, da cruel e plúmbea estrutura que é a cela da cadeia.

Prosseguindo nas páginas iniciais, nos deparamos com a ficha catalográfica de A

Pequena Prisão, que classifica a obra como pertencente à categoria das Ciências Políticas. Um

pouco adiante, há um prefácio escrito por Vera Malaguti Batista, professora adjunta de criminologia da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Batista é secretária-executiva do Instituto Carioca de Criminologia (ICC-RJ) e um nome muito importante no campo da criminologia no Brasil e, sendo autora de diversos livros importantes para a área36, ao classificar o livro de Mendes como “talvez o mais importante livro brasileiro de criminologia dos últimos tempos” (BATISTA, 2017, p. 23), traz o peso de um argumento de autoridade para essa classificação.

Se a ficha catalográfica e a categorização de Vera já apresentam uma divergência inicial quanto à classificação do livro, uma vez que trazem informações distintas, esse conflito se intensificará na seção “Advertência”, na qual encontramos as seguintes palavras:

As linhas que seguem não são uma tese acadêmica ou uma reportagem sobre a lastimável situação carcerária brasileira. Tampouco são uma análise sociológica acerca das Jornadas de Junho de 2013 e o processo, crescente desde então, de criminalização das lutas populares [...]. Também não disponho de tempo ou recursos para ir atrás de numerosas fontes, dedicando-me a um trabalho de elaboração prolongado e ambicioso. Propor-me a fazê-lo significaria, provavelmente, adiar esse projeto para um futuro longínquo e incerto (MENDES, 2017, p. 33).

As palavras dessa Advertência nos levam a uma direção diversa das classificações de “Ciências Políticas”, da ficha catalográfica, e da de “Criminologia”, de Malaguti, uma vez que há uma declaração bem marcada de que a escrita não se baseou em numerosas fontes bibliográficas – o que representaria um impasse na recepção de uma obra supostamente teórica, como normalmente são os livros de ciências políticas ou de criminologia. É muito importante também a afirmação encontrada ainda na “Advertência” de que A pequena prisão é um depoimento,

[...] fruto de um compromisso assumido com as vozes silenciadas que me pediram, como único apoio, que dissesse o que vi e vivi nos porões de nossa sociedade. É, sobretudo, um depoimento engajado, assumidamente parcial, de quem continua disposto a prosseguir na briga, porque, como dizia Carlos Marighella, “a única luta que se perde é a que se abandona (MENDES, 2017, p. 33).

36 Difíceis ganhos fáceis - drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro; Introdução Crítica à Criminologia

Os dizeres dessa seção nos fornecem chaves mais precisas quanto ao modo de leitura do livro: encontramos neles forte presença das características da literatura de testemunho elencadas no primeiro capítulo desta dissertação, e tais marcas manter-se-ão palpáveis durante toda a extensão da obra. As características a que me refiro são: escrita com a voz narrativa em primeira pessoa, com sobreposição de autor e narrador; a exposição de um evento histórico coletivo (ainda que, diferentemente dos livros previamente enumerados, um evento historicamente muito mais recente e inédito na literatura de testemunho); a exposição de um trauma vivido pelo autor; a busca, através da literatura, de reparação e justiça. Ademais, são marcantes também em A pequena prisão peculiaridades da literatura de cárcere, em especial a função catártica da literatura para os traumas da prisão; o desejo de reparação e justiça; a escrita como objeto de resistência e o compromisso ético de falar pelas vozes silenciadas de outros tantos presos.

Ainda na advertência, temos mais um indício que aponta para a leitura do livro como um representante da literatura do cárcere, com alto teor testemunhal: “Para preservar a identidade de pessoas que me confessaram crimes, ou poderiam constranger–se com histórias aqui narradas, alguns nomes foram trocados ou substituídos por iniciais. Todo o mais é rigorosamente verdadeiro” (p. 36). É importante evocar aqui o debate do primeiro capítulo sobre a relação entre literatura e verdade, tão cara para o campo do testemunho. Salgueiro (2015) explora essa complexa relação, afirmando que

No testemunho não há pretensão – diferentemente do que muitos pensam – de Verdade (absoluta), nem de Autoridade (total), mas não se aceita com tranquilidade a indistinção entre Verdade e Ficção/Mentira. No testemunho ortodoxo, isso tem implicações mesmo jurídicas. Falo naturalmente do testemunho clássico, paradigmático, como as narrativas de Primo Levi. Há muitos textos e obras e gêneros e graus distintos. No testemunho em geral, e na teoria do testemunho sempre, não há ingenuidade no sentido de uma crença no poder de representação “total” da linguagem. Ao contrário, a “indizibilidade” e a “irrepresentabilidade” são questões centrais do testemunho. Mas, sim, não se foge do real; tenta-se alcançá-lo. Aqueles que testemunham sabem já que o testemunho é “impossível”: falar/escrever é já “não-testemunhar”. O testemunho é uma urgência, um imperativo, uma utopia (SALGUEIRO, 2015, p.127, grifo do autor).

Mendes parte dessa urgência de que fala Salgueiro: ele é impelido pela necessidade absoluta do narrar, central para a literatura de testemunho, a tentar alcançar esse real irrepresentável. O caráter imperativo que seu testemunho tem para si próprio fica evidente quando, ao ser questionado sobre os motivos que o levaram a escrever A pequena Prisão, responde: “havia o desejo, a necessidade mesmo, de gritar aos quatro ventos as barbaridades que eu vira no sistema penitenciário” (MENDES, 2020, p. 1).

Cabe mencionar, antes da entrada na diegese, que o livro de Mendes é dedicado à Liga dos Camponeses Pobres (LCP), movimento social de combate ao latifúndio, à exploração capitalista dos trabalhadores e ao imperialismo; a homenagem à LCP se soma à exigência da imediata liberdade para Rafael Braga. A dedicatória explicita o posicionamento político de Igor Mendes desde esse ponto tão inicial de seu livro, posicionamento que manterá firme durante toda a narrativa e reafirmará em seus momentos finais, em um epílogo escrito já fora dos muros da pequena prisão, mas cada vez mais opositor das amarras impostas pela grande prisão a que chamamos de sociedade.