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4. MEMÓRIAS DOS PORÕES DA SOCIEDADE: ANÁLISE DE A PEQUENA PRISÃO

4.1. O OBJETO: PERFOMANCE E EVOCAÇÕES DE SENTIDO

Para iniciar a discussão sobre A pequena prisão, é necessário voltar a atenção primeiramente ao livro físico, ao objeto. O livro chama a atenção já à primeira vista por vir acondicionado em uma embalagem de marmita; mais tarde, em diversas partes da obra, o leitor se deparará com as histórias envolvendo as famigeradas “brilhosas”33 e sua significância para o universo da prisão.

Figura 19 - – Embalagem de marmita do livro

Fonte: Amazon, 2020.

Além da embalagem de marmita (ou quentinha, para os cariocas) – que foi ideia de Isabel Teixeira, de acordo com Mendes –, é pertinente discutir os elementos exteriores do livro.

Em época de livros com luxuosas edições, o exterior do livro de Mendes destaca-se por sua simplicidade: sua capa e contracapa são de papelão, com o título, nome do autor e da editora impressos através da técnica da serigrafia; a encadernação é feita por poucas e finas linhas que prendem os blocos de páginas com o texto do livro; de grande fragilidade, a encadernação tem inclinação a se romper caso o livro não seja manuseado com muito cuidado.

Figura 20 - Lombada do livro, com sua frágil encadernação

Fonte: Autora, 2020.

Embora as escolhas para os elementos externos do livro sejam bem curiosas à primeira vista, podemos acabar não lhe dispensando muita atenção, atribuindo a ele uma escolha apenas estética, uma vez que hoje em dia é comum que muitas editoras importem-se bastante com a apresentação física do livro – a extinta Cosac Naify e a atual Darskide são bastante conhecidas no país por possuírem capas esteticamente agradáveis, por exemplo.

No caso da edição de A pequena prisão, a apresentação externa do livro não pode ser interpretada como mera escolha estética, no entanto; além de não poder ser considerado exatamente bonito — nos chamando muito mais a atenção por ser diferente — é preciso ter em mente que a editora responsável pela publicação de A pequena prisão é a n-1 edições. No site da editora, na seção “Sobre”, é possível encontrar a seguinte declaração:

Fundada em 2011, a n-1 edições chegou ao cenário editorial através da produção de livros-objeto numa área transdisciplinar, entre a filosofia, o teatro, a estética, a

literatura, a antropologia e a política, abordando os problemas contemporâneos de maneira plural e aguda, relançando-os em novas direções.

São publicações que unem a escala industrial à produção artesanal e vão além do suporte básico do livro – o papel. Sem formatos pré-concebidos, a ideia é que cada edição inaugure novas formas de apresentação. Para isso, o texto é pensado materialmente, resultando na composição chamada livro-objeto: o livro continua valendo-se da função de leitura, mas passa a ser, também fisicamente, objeto que convoca sentidos (n-1 edições, 2020).

Ultrapassando os elementos externos, outras características do projeto gráfico, de autoria de Érico Peretta, também contribuem para essa construção de sentidos a que a editora se refere. Vários são os componentes que evocam a sobriedade, a rigidez, a natureza desbotada e cruel das prisões. À exceção das folhas de guarda (folhas em branco colocadas no começo e no final de alguns livros) em vermelho, o restante do livro, incluindo ilustrações, é inteiramente composto por tonalidades de branco, preto e cinza. A tipografia utilizada é composta por apenas duas fontes que, apesar de serifadas34, são simples, sem muitos floreios, com utilização apenas de negrito, itálico e de caixa alta para dar destaque a alguns trechos, e a cor utilizada para as fontes é sempre o preto. Todas as páginas que contêm texto são brancas, com exceção de páginas de alguns elementos paratextuais como a falsa folha de rosto, a epígrafe, a dedicatória e uma folha com informações acerca da n-1 edições no final do livro, que alternam entre preto e cinza. Após a apresentação do livro, cada seção é separada por uma sequência composta por uma página preta, duas páginas de ilustração e outra página preta. As figuras do livro foram feitas pelo Ateliê Fora de Esquadro sobre fotografias de Igor Mendes, de protestos, de cartas enviadas ao autor na prisão e de outros elementos ligados à obra. As fotos originais são de autoria de Bruna Freire. As figuras 21 e 22 trazem dois exemplos de ilustrações do livro:

34 Serifa é o nome dos pequenos traços e alongamentos existentes nas extremidades de tipos como Times New

Roman e Garamond. Fontes retas, que não possuem esses traços, como Arial, Helvetica e Verdana, são

Figura 21 - Ilustração feita a partir de foto de Igor Mendes

Fonte: MENDES, 2017.

Figura 22 - Ilustração feita a partir de cartas enviadas para Igor na cadeia

Fonte: MENDES, 2017.

As fotografias originais já não existem aqui: tiveram suas cores removidas e foram manipuladas. O resultado são ilustrações monocromáticas, com rabiscos, borrões e outros elementos de intervenção. O minucioso trabalho gráfico realizado para A pequena prisão apresenta nessas intervenções outros elementos que, quando desdobrados, expandem os

significados enunciados pelo texto, formando um conjunto coeso e prolífico. A figura 21 traz o nome completo de Mendes ao lado de uma foto de seu rosto; a ilustração nos remete a um processo de censura, de apagamento do sujeito na cadeia – Igor é só mais um nome no bruto e cinza sistema carcerário, sem direito à sua identidade. A figura 22 é especialmente sugestiva: ela traz várias cartas destinadas a Mendes, endereçadas à Cadeia Pública Bandeira Stampa (Bangu 9), com os mesmos traços censurando palavras e pedaços dos envelopes; no centro da figura, está um pedaço de um papel que aparenta estar com as bordas queimadas. Se os riscos da ilustração 21 já nos evocavam uma ideia de rasura, aqui esta ideia aparece intensificada e nos remete à pulsão de morte que trabalha para destruir o arquivo, a pulsão arquviolítica (ou mal de arquivo) a que Derrida (2001) se refere em Mal de arquivo: uma impressão freudiana. A dualidade memória e esmorecimento da memória, que Derrida aborda em suas elucubrações sobre o arquivo, é aqui escancarada: o arquivo aparece no limiar de sua própria destruição. A fragilidade da encadernação do livro, citada anteriormente, também encarna essa dualidade arquivo/mal de arquivo: o próprio receptáculo do livro de Mendes é responsável por essa pulsão de agressão, de destruição do arquivo.

A proposta da editora n-1 de criação de livros-objeto fica clara não só nos aspectos da apresentação física de A pequena prisão como os anteriormente apresentados, mas também nos eventos de lançamento da obra, ocorridos em 23 e 24 de setembro de 2017, no Sesc Ipiranga, em São Paulo. A página 4 do livro, que contém as informações catalográficas, diz que a obra foi publicada dentro do projeto “A prisão e as pequenas prisões – ‘Performance Invisível”. A “performance invisível” aconteceu no dia 23 e teve direção de Isabel Teixeira e coordenação do encadernador e designer gráfico Pablo Peinado; na performance, 10 encadernadores, das 10:00 às 21:00, confeccionaram 100 livros que foram numerados e assinados pelo autor. Os trabalhadores tiveram duas pausas para banho de sol e a alimentação foi feita no local, com marmitas, tal como na prisão. O público não podia se comunicar com os encadernadores. No dia 24, aconteceu um debate com a presença de Igor Mendes, de Breno Tardelli (advogado e diretor de redação do site “Justificando”) e de Jaime Ginzburg, com mediação do cineasta João Wainer.

Figura 23 - Igor Mendes autografa exemplares do livro. Os encadernadores trabalham na “Performance Invisível”

Fonte: Página do Facebook de A pequena prisão

Em entrevista concedida por Igor Mendes à presente pesquisa (reproduzida integralmente no ANEXO A), o autor revelou ter pouca participação nas escolhas do projeto, porém declara que teve “a sorte de encontrar no percurso verdadeiros artistas que conseguiram captar às vezes aspectos do livro que me pareciam secundários, e transformá-los em imagens” (MENDES, 2020, p. 1). É necessário pensar em como as escolhas tomadas para o projeto gráfico e para o lançamento do livro de Mendes articulam-se não só com a proposta da n-1 edições de tornar-se um livro-objeto que convoca sentidos, mas que funcionam também como uma forma de incorporar significados importantes para a obra de Mendes – incorporar aqui no sentido proposto por Diana Taylor (2013), de trazer para o corpo. Ao botar o leitor em contato com a embalagem utilizada para as refeições na prisão, ao reproduzir restrições normalmente impostas aos prisioneiros aos participantes de uma performance e ao integrar o próprio púbico à confecção do objeto, aproxima-se o púbico dos sentidos evocados pela obra de uma forma que seja mais física, da ordem do repertório; e não apenas intelectual, através do arquivo. Além disso, o nome escolhido para a performance adquire grande importância ao aludir à condição de invisibilidade daqueles que são aprisionados em nosso país; se muitas vezes escolhemos não ver os graves problemas enfrentados pela população carcerária do país (tais como superlotação, maus tratos, violência e tantos outros abordados no primeiro capítulo deste trabalho), ou seja, se essa população é normalmente invisibilizada, a performance, assim como o livro de Mendes, lança luz à condição de invisíveis daqueles que se acumulam no sistema carcerário brasileiro.