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3. MANIFESTAÇÕES, REPRESSÃO, DEMOCRACIA SELETIVA: O PANORAMA

3.5. O JULGAMENTO

Em julho de 2018, quatro anos após o início do processo criminal 0229018-26.2013.8.19.0001 contra os 23 da Copa, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) condenou todos os processados através de uma única sentença, em julgamento no dia 17. Três manifestantes com menos de 21 anos foram condenados a cinco anos e dez meses de reclusão em regime fechado e os vinte restantes foram condenados a sete anos de prisão no mesmo regime. Os crimes pelo qual foram sentenciados foram o de formação de quadrilha e corrupção de menores.

A sentença do juiz Flavio Itabaiana de Oliveira Nicolau, da 27ª Vara Criminal, trouxe espanto para parte da comunidade jurídica, não só pela severidade das penas – uma vez que o próprio Ministério Público do Rio de Janeiro havia enviado a denúncia final com pedido de

absolvição de 5 dos 23 processados, que ele recusou –, mas principalmente pelas justificativas apresentadas no texto da sentença, do qual apresento alguns destaques:

“No tocante ao crime do art. 288, parágrafo único, do Código Penal, atento às circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal, há que se fixar a pena-base

no máximo legal, ou seja, em 3 (três) anos de reclusão, em decorrência da personalidade distorcida do réu, de sua conduta social reprovável, das

circunstâncias do crime, das consequências do delito e dos motivos do crime, consoante se pode verificar a seguir. O réu tem uma personalidade distorcida,

voltada ao desrespeito aos Poderes constituídos, o que, no tocante ao

Executivo, pode ser constatado, por exemplo, pelo enfrentamento aos policiais militares nas passeatas (as imagens de TV dizem mais do que mil palavras, sendo certo que os materiais apreendidos na residência da ré Camila Jourdan -

e também aqueles não apreendidos, mas mencionados pela Delegada de Polícia Marcela Ortiz em seu depoimento, quais sejam, pedaços de pau,

máscaras e escudos - não deixam dúvida quanto à utilização dos mesmos contra os agentes da lei e da ordem nas passeatas) e ao "Ocupa Cabral" (é inacreditável o então Governador deste Estado e sua família terem ficado com o direito de ir e vir restringido). O desrespeito ao Poder Legislativo, por sua vez, pode ser verificado, por exemplo, pelo “Ocupa Câmara". Outrossim, o réu em comento tem

uma conduta social reprovável, pois, apesar de se tratar de uma pessoa da classe média, o que pode ser constatado pela sua profissão e pelo seu local de residência

(vide fl. 5.843), não trilha o caminho da ética e da honestidade, não se

podendo perder de vista, ainda, que, em razão de se tratar de uma pessoa da classe média, o réu teve oportunidades sociais que a esmagadora maioria dos réus nas ações penais não teve, não podendo sua pena, por conseguinte, ser a mesma que aquela de uma pessoa em situação idêntica, mas com poucas oportunidades sociais. [...] Os motivos do crime também não favorecem o réu, haja vista que os aludidos motivos foram implantar o caos social e levar terror à sociedade” (NICOLAU, 2018, grifos meus).

Os condenados, através de seus advogados de defesa, atualmente recorrem da prisão em liberdade. Não fosse a gravidade da sentença e o impacto nefasto que a sentença pode ter na vida dos 23 da Copa caso sejam aprisionados, a redação da sentença condenatória poderia suscitar risadas em vista dos motivos que apresenta para a incriminação dos réus. No trecho aqui apresentado, por exemplo, além de afirmar diversas vezes que o réu possui “personalidade distorcida” e “conduta social reprovável” apresentando como justificativa para tais fatos seu “desrespeito aos Poderes constituídos”, comprovado através de imagens de TV que mostram o réu em questão enfrentando policiais militares nas passeatas, a sentença de Nicolau proclama também que tanto materiais apreendidos quanto os não apreendidos mas citados no depoimento de uma das testemunhas de acusação do processo serviriam como provas indubitáveis de que os réus utilizariam dos materiais citados contra os agentes da lei.

Outro aspecto evidente é que a sentença não individualiza as condutas criminalizadas dos réus, repetindo por diversas vezes inclusive mesmas palavras para descrever réus diferentes. Ademais, outro trecho em destaque na transcrição da sentença acima apresentada mostra claramente como o juiz não procura esconder sua postura preconceituosa ao declarar que,

embora pertença à classe média, o réu possui conduta social reprovável, não trilhando o caminho da ética e da honestidade – criando aqui uma relação direta entre classe social e ética e honestidade; além disso, afirma ter que aplicar ao réu uma pena mais severa do que pessoas que tiveram menos oportunidades sociais do que ele, como se houvesse de fato em nosso país uma tradição de se atenuar as penas daqueles que vivem à margem, enquanto a verdade é que, para aqueles que moram nas favelas, muitas vezes atiram primeiro para perguntar depois.

Retornamos aqui a ideias de Agamben anteriormente mencionadas: uma vez que os corpos dos 23 da Copa recusam-se a ser os corpos dóceis que dita o capitalismo, uma vez que recusam-se a dobrar perante as ordens policiais que lhes mandam “circular”, ou seja, desocupar a cidade, são convertidos em inimigos pela lei, instrumento de efetivação do estado de exceção das “democracias” modernas.

Em agosto de 2018, um mês após a promulgação da sentença condenatória pelo juiz Flávio Itabaiana Nicolau, Igor Mendes publicou Resistir é preciso!, livro-manifesto em formato de panfleto, lançado pela série Pandemia da n-1 edições. Na obra, Mendes discorre sobre o resultado do julgamento dos 23 da Copa, bem como sobre o contexto histórico do momento em que foi promulgada essa sentença.

Mendes reproduz parte de um relatório publicado pela organização Artigo 19 que expõe o outro lado da narrativa oficial: as violações perpetradas pelo Estado nos protestos de 2013. Foram analisados 696 protestos, 15 dos quais contabilizaram mais de 50 mil manifestantes. Em 16 das manifestações, houve mais de 10 feridos. O saldo total foi de 8 mortes, 876 pessoas feridas e 2608 pessoas detidas. Além disso, também saíram feridos ou agredidos 117 jornalistas. Segundo a Artigo 19,

nos protestos em 2013, foram presenciadas violações de vários tipos, entre as mais comuns estão:

1. Falta de identificação dos policiais;

2. Detenções arbitrárias, como detenção para averiguação, prática extinta desde o fim da ditadura militar;

3. Criminalização da liberdade de expressão por meio do enquadramento de manifestantes em tipificações penais inadequadas às ações do "infrator";

4. Censura prévia, por meio da proibição, legal ou não, de manifestantes usarem máscaras ou levarem vinagre para o protesto;

5. Uso de armas letais e abuso das armas menos letais;

6. Esquema de vigilantismo nas redes sociais montado pelas polícias locais, pela Abin e também pelo Exército; assim como as gravações realizadas pelos policias durante os protestos;

7. Desproporcionalidade do efetivo disposto para o policiamento do protesto com o número de manifestantes;

8. Policiais infiltrados nas manifestações que por vezes causavam e incentivavam tumulto e violência;

9. Maior preocupação policial com a defesa do patrimônio do que com a segurança e integridade física dos manifestantes;

Mesmo com o esforço de grupos como a Artigo 19 e o DDH, de páginas do Facebook como “Liberdade aos presos políticos – RJ”, de iniciativas como o lançamento dos livros de Mendes como formas de denunciar a narrativa hegemônica e mostrar os abusos realizados pelo aparelho estatal no contexto das manifestações de 2013 e 2014, para parte da população, influenciada pela grande mídia, os 23 processados continuam sendo vistos como vândalos que receberam o que mereceram ao serem condenados: um editorial do jornal O Estado de S. Paulo, datado de 20 de julho de 2018, comemora a condenação dos “black blocs” e afirma: “ao condená-los pelos graves crimes que cometeram, o juiz traça uma linha divisória entre violência pura e simples e o legítimo direito de protestar, o que fortalece a democracia” (O ESTADO DE S. PAULO, 2018).

No presente momento, não há desdobramentos posteriores ao julgamento dos 23 da Copa, que ainda recorrem da sentença em liberdade.

3.6. BREVES APONTAMENTOS SOBRE O MOMENTO HISTÓRICO APÓS O