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Em A Artisticidade do Ser (1987) há um capítulo inteiro “A Deambulação” dedicado à metáfora.

No documento O Solipsismo de Evaldo Coutinho (páginas 59-62)

No percurso da deambulação, em contacto visual com a imaginária extema, assisto ao espetáculo das coisas se transferirem da possibilidade de serem em mim, para a realidade de se incluírem em meu repertório. À idéia de ausência, alia-se à idéia de possibilidade de ser, a obliteração contida no desconhecimento, vindo a classificar-se como prestes a desfazer-se diante de minha lente, à guisa das fachadas e dos passeantes ainda longe de meu vulto que, se porventura lhes indagasse se seriam alcançados por mim, responderiam afirmativamente, assim urdindo-se, em fios de ingressão e de regressão, a teia entre o possível e o real. À medida que o belvedere se locomove, verifica-se que a sua tarefa importa em retirar as coisas do estado de possibilidade para o estado de realidade, com o exercício da locomoção a confundir-se com a sucessividade no tempo. Então, a minha receptividade ótica se preenche de si-tuações que, por seu lado, colaboram para a evidência de que o protagonista mais relevante do contínuo espetáculo é o meu próprio belvedere, o existenciador de meu acompanhante e das figuras em índice de possibilidade e de realidade. (COUTINHO, 1987, p. 95)

A presença e a ausência, os conteúdos da imaginária, se configuram fisionomicamente. Por isso o objeto da consciência é conceituado como form ação alegórica, metáfora ou símbolo. A adoção de termos do campo da estética por si mesmo faz subentender a natureza pitoresca e significativa da existencialidade. Se no vocabulário tradicional os objetos ou modos da mente são chamados de imagens, idéias ou representações, no vocabulário fisionômico, os objetos da imaginária são alegorias, ícones, fisionomias, form ações ou configurações alegóricas. Todo pensamento é essencialmente visão, e a visão é iconológica, a ordem fisionôm ica é essencialmente o desdobramento do pensamento na imanência da iconologia. O objeto da imaginária em geral, tudo aquilo que é existenciado por ela, quer seja imaginária interna ou externa, é necessariamente uma composição alegórica.

Por definição, uma formação alegórica é uma composição de nome e face. Nas palavras do filósofo: “Da junção do nome à face advém a alegoria, compondo-se a vida mediante os empreendimentos alegóricos” (COUTINHO, 1987, p. 19). O nome é o aspecto formal do existenciamento (continente, nicho, estojo, concha, forma), e a face é o aspecto material do existenciamento (conteúdo, ícone, recheio, matéria). Todo existenciamento é uma alegoria. Os termos fisionômicos sinônimos de nome são: nominalidade, nominação, legenda, titulação genérica, título, dístico. A fa c e é sinônima de: facialidade, figura, aspecto, conspecto, complexão, semblante. A face representa o aspecto imediatamente dado e visível dos existenciamentos e o nome o aspecto invisível e sutil que informa a visibilidade, tornando-a padecida. Os nomes se confundem com aquilo que se entende por analogia à teoria das paixões ou emoções, bem ao sabor cartesiano e, sobretudo, espinosano. Os nomes, como as paixões, variam em número indefinido sobre uma gama que vai da alegria à tristeza. Isso significa que o ato de existenciamento, do conhecimento criador, é sempre sentimentalmente

padecido. E mais que isso, num sentido ontológico os nomes são o recesso da possibilidade, querendo dizer que são condição de possibilidade, realidade recuada e anterior ao vir a ser de toda alegoria. As faces inexistenciadas estão contidas como possibilidades de algum nome. Se nenhuma experiência é possível fora do tempo e espaço, antes disso, nenhuma experiência é possível fora do nome e da face. Querendo dizer que nenhuma experiência é emocionalmente inerte. Nenhuma situação acontece na ordem fisionôm ica sem que esteja submetida à um nome, uma paixão, uma emoção, uma comoção específica. Daí os nomes ou paixões serem a forma da possibilidade.

A metáfora paradigmática para compreensão dos termos técnicos nominalidade e facialidade é a de uma escultura em busto. Tente imaginar a fa c e de um busto cujo título é alegria:

Uma vez sabido o nome da escultura - o campo desta arte é o preferido para as externações alegóricas - a visualização da peça confirma a nominalidade imprimida pelo escultor, geralmente grandes nominalidades como a justiça, a caridade, a piedade, a morte, os seus antônimos, as quais se detêm na corporificação a que se submetem, em franca explicitude, desde que se subscrevem à escultura ou ao grupo escultórico. A contemplação da obra revela um encarecimento especial, conhecendo-se que se trata de alegoria: a perscrutação do espectador, afora a preocupação de verificar os elementos da técnica, os valores em equilíbrio, enfim, os meios com que o artista remove para o trabalho a sua pessoal intuição, afora os cuidados de assimilação e de crítica, terá ele, o espectador, que captar o ponderável e imponderável relacionamento entre a face e o nome, atendendo à maior ou menor intensidade deste e à quantidade e qualidade das figuras com que o mesmo se fará explícito. Decerto que o mais firme empenho do artista consiste em impor à sua matéria um tal índice de diafaneidade que o ato de vê-la se ampliaria ao ato de ver também a denominação, e de tal sorte que esta fosse dispensada de aparecer na superfície da obra, em gravadas letras, e sim que o nome surgisse de modo imediato como o nome da cor que surge ao se deparar com a cor. (COUTINHO, 1996, p. 89)

A metáfora do busto equivale à metáfora do título no quadro: “alguns nomes por mim selecionados, estão aderidos a determinados painéis, à maneira de legenda sob um quadro” (COUTINHO, 1987, p. 17). Também seria possível a metáfora do dístico na fachada, ou da legenda na fotografia, etc. Este é o modelo de interação de um nome e uma face, uma relação de sugestão ou representação mútua, de modo que uma dada situação é uma

externação facial da forma nominal que lhe foi determinado, e o nome contém em virtualização as faces que lhe representam36.

Em verdade, refletindo sobre a qualidade e o interrelacionamento dos nomes, concluo que eles se localizam no recesso ou da alegria ou da tristeza, que constituem a dualidade contemporânea de todos os vultos e entrechos de meu repositório. Por conseguinte, a prática litúr-gica se processa nesse ofício de existenciamentos, segundo o qual prevalece o rito de preencher os nomes com outros nomes. À nominação alegria pertence a nominação amor, enquanto o nome da morte pertence ao nome tristeza; os seus conteúdos, as suas nuanças instituem na imaginária interna o espetáculo de gradações de um e do outro nome, com o meu belvedere a gravar, intimamente, a condição humana de transitar a extre-mos, em matizações opostas, existenciadas por mim e conser-vadas em mim, comigo. (COUTINHO,

1987, p. 17)

O que acontece quando todo o existente (que é o mesmo que todo o conhecido, seja por presença ou por ausência) ganha uma aura estética, quando todos os existenciamentos são entendidos como alegorias? “Eu emprego uma linguagem aplicada às artes, daí as expressões que eu uso: belvedere, miradouro, painel, retábulos. Eu tiro do vocabulário artístico para aplicar no Ser, que é artístico.” (COUTINHO, 2000, p. 40). Aí entra o tema da redução dos existenciamentos à iconologia. Repetindo o que foi dito acima: a ordem fisionôm ica não é composta de coisas, eventos e pessoas, mas de retábulos, sucessos e atores, pois todas as coisas são como que “ungidas” de caráter cenográfico. Para tanto, Evaldo Coutinho usa os termos sinonímicos painel, retábulo, sucesso, entrecho, cena, situações, sequência, episódio, para designar os eventos da ordem fisionôm ica. Os termos sucesso e entrecho são como painéis e retábulos porque são eventos alegóricos, mas os primeiros dois termos passam a idéia de que uma ação acontece, e isto inclui sempre a presença humana, ao passo que painel ou retábulo dão a idéia de estaticidade, não necessariamente indicam ação dramática e, portanto, presença humana; estão uma para outra como natureza morta e o retrato. Todos os painéis estão submetidos a um nome, as situações se passam revestidas de alegria, indiferença, amor, desamor, ódio, tristeza. Em A Ordem Fisionômica os nomes mais assiduamente trabalhados são o da indiferença e da tristeza37.

36 Nesta seção faremos certa abstração sobre o processo de concessão de nome à face, que é o mesmo que a

No documento O Solipsismo de Evaldo Coutinho (páginas 59-62)