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O ESTATUTO ONTOLÓGICO DAS OUTRAS PESSOAS

No documento O Solipsismo de Evaldo Coutinho (páginas 86-89)

43 Ver capítulo “Teatralidade Real e Liturgia”, de O Espaço da Arquitetura, e capítulo “Teatralidade” de A Artisticidade do Ser.

4.3 O ESTATUTO ONTOLÓGICO DAS OUTRAS PESSOAS

O problema da demonstração da existência das outras mentes e suas modificações mentais é o problema especificamente solipsista. Porém, sendo o solipsismo evaldiano mais metafísico do que gnosiológico, e mais dogmático do que cético, esta questão deve receber o mesmo tratamento que a questão do estatuto ontológico das coisas do mundo e de Deus (contemplando assim os três objetos da metafísica especial). Quer dizer, as pessoas, as coisas e Deus, na ordem fisionôm ica, sendo existenciamentos, dependem do existenciador para existirem e serem concebidos, são criados e conservados por seu concurso, seja por presença ou por ausência, assim como os modos dependem da substância e a substância independe dos seus modos. No entanto, é esta questão a que tem mais provocado a curiosidade dos intérpretes de Evaldo Coutinho. O autoalegado solipsismo é autêntico, quer dizer, absoluto? Ou então seria apenas uma forma de idealismo, restrito ao privilégio do sujeito no domínio gnosiológico? Teria Evaldo Coutinho desenvolvido uma teoria metafísica na qual demonstrasse que o eu pessoal existe em solitude absoluta em desfavor do estatuto ontológico independente de todas as coisas, em especial das outras pessoas? Parece que os comentadores não quiseram aceitar esta interpretação, no caso de Nelson Saldanha e Benedito Nunes, e se aceitaram, no caso de Daniel Lima, só o fizeram por causa das restritas condições de aceitabilidade, a saber, que a tese ontológica do solipsismo deve ser acolhida mais como uma obra de arte do que como uma hipótese científica.

Nesta seção tentamos lidar com uma série de questões exigidas pelo assunto, com a intenção de reforçar nossa hipótese de pesquisa, a definição ontológica do solipsismo como um monismo imanentista subjetivista. A questão das outras mentes é central, pois se o ego é a substância, a coexistência de vários egos implica um pluralismo de substâncias e uma transcendência em relação ao repertório da substância única. Então se colocam as questões:

qual o estatuto ontológico das outras pessoas? É possível atribuir poderes existenciadores à outras subjetividades? Como é possível demonstrar a existência de outra pessoa, seguindo os critérios da ordem fisionômica? Elas possuem um repertório privado? Os outros existenciadores dependem da existencialidade do existenciador absoluto?

Em primeiro lugar, é preciso levar em conta a imanência dos conteúdos de consciência à própria consciência, isto é, a privacidade do pensamento. Este fato impede a demonstração direta da existência das outras pessoas enquanto existenciadores. O que define um existenciador é o porte da visão existenciadora, então só se poderia demonstrar a existência de uma visão existenciadora em outrem, isto é, atribuir-lhe poderes existenciadores, no caso de ser possível ver através da visão deste outrem, o que é absurdo, desde que o olhar é regido pelo princípio da unidade visual e cada flagrante é intransferível. Se é absurdo ver pelo outro, ao invés do outro, não é possível saber se o outro vê realmente, portanto se existe ou não independente de mim enquanto um existenciador e não somente como existenciamento. Deste ponto surgem dois caminhos para seguir explorando a questão: considerar as outras pessoas sob o ponto de vista de serem existenciamentos e, de outra parte, de serem elas também existenciadoras.

Quanto às outras pessoas serem consideradas existenciadoras, seja em sentido real ou hipotético. A dúvida sobre o conteúdo mental das outras pessoas não é tão importante para a ordem fisionôm ica como é na discussão dos zumbis filosóficos. Isso se deve ao fato de que o solipsismo de Evaldo Coutinho não é fundado no ceticismo. Não se trata de duvidar que as outras pessoas não possuam qualidades subjetivas, idéias, sensações, e em última instância uma mente. Evaldo Coutinho não questiona que as outras pessoas também possuam experiência subjetiva e predicados psicológicos. Posto que existam os múltiplos repertórios das outas pessoas, cada um destes repertórios, ainda que não possam ser vistos diretamente pelo eu pessoal, não deixam de ser uma criação do eu pessoal e dependem de sua existência para serem existenciadas, novamente, aplica-se a lógica da inclusão, “o repertório de todos os repertórios” . Não é tão importante negar que as outras pessoas sejam também existenciadores, o importante é afirmar que o eu pessoal é o existenciador único e absoluto, existenciador dos existenciadores múltiplos e relativos. Em sentido estrito, os outros existenciadores pertencem a existencialidade do eu pessoal e morrerão na morte deste.

Mas como é possível criar o repertório alheio, se o conteúdo mental é privado e exclusivo do detentor do singular repertório? De duas maneiras, primeiro, testemunhar por meio das identificações fisionômicas, e segundo, criar o repertório de outrem em índice de possibilidade.

Quanto às identificações fisionômicas, durante os cinco livros de A Ordem Fisionômica, há diversas oportunidades em que Evaldo Coutinho disserta sobre os “exercícios da visão” . Um deles é a prática sistemática da simulação do conteúdo mental de uma outra pessoa, para repetir em índice de realidade aquilo que de outra maneira só poderia ser imaginado em índice de possibilidade: o exercício de experimentar diretamente o repertório de uma outra pessoa, e com isso, se tornar aquela pessoa. Isso recebe o nome de identificações fisionômicas, que acontecem sob diversas modalidades. A arquitetura é a arte mais favorável das identificações por favorecer a repetição e padronização da conduta das pessoas que penetram o recinto. Assim podemos nos identificar fisionomicamente de um ponto de vista subjetivo e objetivo à outrem quando contemplamos, por exemplo, de um mesmo belvedere a mesma paisagem sob a mesma qualidade de comoção que outrem. Isso é especialmente sugestivo quando durante um ritual (um julgamento, uma missa, uma formatura) repetem-se os gestos e funções de outrem, o repetidor identificando-se fisionomicamente a outrem que já desempenhou aqueles gestos. Assim, por exemplo, quando um sacerdote sobe ao púlpito de determinada nave durante a liturgia está repetindo gestos e funções de sacerdotes ancestrais, e neste ato, se identificando fisionomicamente aos sacerdotes do pretérito ambos quanto à conduta objetiva e subjetiva. Mas isso não passa de um “exercício”, uma simulação, e a identificação não pode ser completa, desde que, no fundo, cada experiência é única e irrepetível:

O sentido da visão, considerado prerrogativa de todos os meus semelhantes, faculta-me a identidade entre mim e as demais pessoas, desde que o meu olhar e os olhares alheios incidam no mesmo alvo, na mesma paisagem, conforme dissertei em mais de um capítulo de minha obra. Estabelece-se na sociedade humana a oportunidade, não pressentida nem sentida, de se atentar para a conjuntura identificadora, quando os figurantes ocupam, defronte da efígie ou do panorama em causa, o mesmo posto de contemplação. Todavia, então ocorre uma das mais amoráveis comunhões que a visibilidade propina entre belvederes: a comunhão em que se tornam idênticos os visualizadores. (COUTINHO, 1987, p. 60)

Quanto à criação do repertório de outrem em índice de possibilidade, fica a questão: como é possível cria-lo se é impossível conhecê-lo? A distinção entre conhecimento por presença e conhecimento por ausência pode resolver essa questão. O repertório alheio não pode ser experimentado por outro existenciador por presença, mas apenas pelo mero fato de ser subentendido ou imaginado, já faz parte do repertório de outro existenciador, que o conhece por ausência, e então este repertório, a rigor, intestemunhável, passa a existir em

índice de possibilidade. Mesmo permanecendo ocultos, formam parte da existencialidade do existenciador único e absoluto:

Assim, ao escrever A Ordem Fisionômica, experimentava, também em índice de escorço, o atributo de constituir-me o demiurgo em exclusividade, o criativo trabalho de compor a obra confundindo-se com o criativo poder de proporcionar existenciamento a todas as imaginárias e nominações; pois que, nada se exclui de meu repertório, nem mesmo os ocultos repertórios dos demais humanos, os quais, sob a feição de possíveis, se destinam a perecer em meu perecimento. (COUTINHO, 1976, p. 134)

Como conclusão, o pluralismo de substâncias, a existência de uma multiplicidade de existenciadores na ordem fisionôm ica embora não seja real (apenas hipotética), ela aparece na obra como uma imagem hipotética, ou seja, sob o condicional “se” . Mas e “se” os outros também fossem existenciadores? “Se” os outros fossem existenciadores, dar-se-ia a conjuntura da cintilação cósmica, ou seja, a conjuntura de cada nascimento e cada morte representar uma incessante criação e destruição do universo:

O absoluto estaria no eu de cada um. Então eu cheguei a uma imagem que me agrada, eu confesso: a cintilação cósmica. O Ser, o universo, não é algo fixado, permanente, eterno; o Ser é qualquer coisa que ora nasce, ora morre. Cada pessoa que nasce, cada consciência humana que surge, o universo nasce também; cada pessoa que morre, o universo morre com ela. Assim se dá uma cintilação do Ser, que ora se acende, ora se apaga. (COUTINHO, 2001, p. 35)

Se qualquer outro indivíduo pode contar com idêntica prerrogativa, tem-se que a natureza é algo que, não se alterando por essa conjuntura, nasce a cada momento em que uma faculdade de conhecer se franqueia, e morre a cada instante em que alguém perece por sua vez. A generalização de tal circunstância se afigura como sortílega paisagem, as personalidades humanas reunindo a si uma categoria que, entretanto, elas não percebem: a de, congregadas, comporem o concerto do ser e do não-ser do universo. (COUTINHO, 1976, p. 17, grifo nosso)

Dando consequência a noção de que todos os seres pensantes são existenciadores em sentido real, surge o conceito de comunidade óptica, que tem desdobramentos bastante curiosos, como a idéia de morrer na morte de outremA6. Toda vez que testemunho uma outra pessoa, ipso fa c to , estou criando-a, existenciando-a. Porém, o mesmo é verdadeiro para a contraparte, ao existenciar outrem, estou simultaneamente sendo existenciado por este outrem, e assim me integrando no repertório particular deste outrem, sob a modalidade de apreensão

No documento O Solipsismo de Evaldo Coutinho (páginas 86-89)