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Houve muitas críticas à esta distinção de Berkeley pelos especialistas:

No documento O Solipsismo de Evaldo Coutinho (páginas 66-69)

resolução da distinção ontológica da ficção e da realidade de modo à indistingui-las, ou melhor, reconduzindo a dualidade das imaginárias à composição de uma unidade maior, que é a unidade das imaginárias. Não como Berkeley que daí argumenta pela existência de um Autor da natureza, isto é um espírito infinito que imprime na mente humana as idéias dos sentidos externos. Além disso, são efetivamente indistinguíveis uma visão ideal de uma empírica, o sonho e a vigília são indiscerníveis, a própria experiência empírica é ladeada pelos territórios da ausência, que são completados, em seus interstícios, pelo poder da imaginação, em outras palavras, a própria experiência de realidades é composta com a experiência de idealidades, “a imaginária é una” e se distingue apenas por “convenção”, não se distinguem realmente:

Às vezes, alguns desses desempenhos ressumam tanta importância em minha sensibilidade que os tenho por nivelados a outros que a visão física me oferece. Do ângulo facial em que me coloco para positivar o meu poder existenciador, não vejo por que diferençar os conspectos cênicos da objetividade e os conspectos cênicos da imaginação; a óptica é una, ela abrange os dados que a realidade lhe distribui, mas, ao fazê-lo, todos se convertem ao sentido fisionômico de dependência ao meu existir, tal e qual sucede com os desempenhos de minha imaginativa. (COUTINHO, 1976, p. 30)

Ou por outra:

Valho-me, constantemente, da indistinção entre o fictício e o real, à maneira da luz que não escolhe os atendidos por sua claridade. Comparo-me ao estrado onde todas as peças da dramaturgia podem apresentar-se, visto que tenho de comum com ele a circunstância de se conterem em mim os cometimentos de toda ordem, com o complemento de que os sucessos sobrevindos pertencem ao rol de minha existencialidade, no qual se capitulam os espectadores desses cometimentos. (COUTINHO, 1987, p.

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O segundo problema está contido na relação existenciador-existenciamento, se ser conhecido é ser existenciado, qual o estatuto ontológico dos seres desconhecidos por mim? Primeiramente, ser ignorado ou desconhecido, pode ter três sentidos: seres que ainda não vieram à existência, “idealizações quanto ao futuro”; seres que existem, mas ainda não chegaram ao meu conhecimento, “desertos de atenção”; e os seres impossíveis de serem existenciados, que tem contradição na essência (ou definição), e sua existência consistiria num absurdo ou ilogicidade, como por exemplo, é o caso do “ponto intestemunhável”, isto é, a visão do próprio féretro ou a visão dos entes póstumos. Esta questão Evaldo Coutinho soluciona facilmente com um argumento de lógica inclusiva: o repertório do existenciador

absoluto é o continente de todos os seres possíveis e efetivos, existenciador das empiricidades ou das meras idealizações. “As empiricidades e as ideações se submetem ao curto prazo de minha vida” (COUTINHO, 1987b, p. 5). Na ordem fisionôm ica são chamados de seres inexistenciados os seres do futuro ou os seres desconhecidos por mim, estes são alegorias “virgens de desempenho”, e que em mim são, de direito, mera imaginação caso, de fato, eu volte a atenção sobre eles. No entanto, só existem em possibilidade em virtude da pessoal existência do existenciador absoluto, são existenciados por ausência.

O terceiro item é uma consequência. A universalização máxima do conceito de morrer na morte de outrem implica que o eu pessoal é desexistenciado toda vez que alguém morre algures, seja um conhecido (presente) ou um desconhecido (ausente), do mesmo modo como, na minha morte, na morte absoluta, morrem todas as pessoas, e não somente as efetivamente existenciadas, mas as potencialmente existenciadas (inexistenciadas), que existem em virtualização. A única diferença de ser desexistenciado do repertório de um existenciador falecido conhecido meu de um desconhecido é que a primeira cena carrega o nome da tristeza e a segunda da indiferença, mas ontologicamente é a mesma coisa. De modo que há um acúmulo de mortes em número imponderável compondo a existencialidade de cada existenciador; é o tema da “densidade funérea” e do “morrer lentamente e várias vezes” .

A teoria da criação de Evaldo Coutinho é tão importante como a teoria do conhecimento ou visão, porquanto, por definição, para o existenciador conhecer é o mesmo que criar. O ser humano é essencialmente um existenciador, e por isso, muito mais do que uma entidade pensante: “o indivíduo humano é mais do que a consciência de si próprio e das relações que mantém com os elementos externos: cada vulto humano é essencialmente demiúrgico” (COUTINHO, 1976, p. 17). Para o existenciador pensar o existente é o mesmo que criá-lo. O problema é o significado de “criação” . Evaldo Coutinho emprega imagens múltiplas para definir o conceito de criação, quase sempre atribuindo-lhe qualidades divinas. Há passagens em que a criação é comparada à criação do demiurgo, principalmente em O Lugar de Todos os Lugares, mas há outras passagens em que é comparada à do Deus da Bíblia, exclusivamente em A Artisticidade do Ser. Há mesmo trechos em que a imagem do Deus hebraico-cristão e do demiurgo aparecem no mesmo parágrafo, combinadas, subentendendo-se uma sobreposição de metáforas e significados (COUTINHO, 1987, p. 170). Grande parte da complicação que cerca este assunto certamente deriva do fato de que as duas divindades são distintas precisamente quanto à noção de criação. A primeira criação representando uma creatio ex nihilo, a segunda uma poiésis. Seriam as duas metáforas contraditórias, fornecendo assim um conceito inconsistente ou escorregadio de criação? Deve­ se dar mais peso a uma imagem do que a outra para manter a coerência?39 Nossa argumentação se inclina a interpretar a criação admitindo ambas as descrições, através da superposição das metáforas numa espécie de cruzamento livre das tradições hebraica e grega.

Desse ponto de vista, o ato de criação pode ser decomposto em dois planos distintos, mas conectados: a criação no plano gnosiológico e a criação no plano ontológico, este último nível subordinando o primeiro e fornecendo sua coerência. O plano gnosiológico é representado pela criação do demiurgo, se trata da criação de uma alegoria ou símbolo, a imaginária concedendo nome às faces. O plano ontológico é representado pela criação do Deus hebraico-cristão, se trata da origem absoluta do próprio repertório, que é o continente das faces, nomes, alegorias e símbolos, e da própria imaginária, seria algo como e a causação e conservação da essência e existência do universo a partir do nada. Entendendo Deus e o

39 É possível explicar a preferências dos comentadores, em especial de Nelson Saldanha, ao solipsismo como

No documento O Solipsismo de Evaldo Coutinho (páginas 66-69)