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4.2 Sujeito Passivo

4.2.1 Empregadas domésticas

Com relação às empregadas domésticas importante ressaltar que a doutrina diverge se estas estariam ou não abrigadas pela Lei Maria da Penha. Corrente doutrinária que defende a aplicação do referido diploma legal no caso de violência contra as domésticas utiliza-se do § 1º do artigo 5º da Lei.

Nesse sentido, como a relação entre patrão e empregada doméstica é muitas vezes de coabitação, caberia conforme esta corrente a aplicação da Lei Maria da Penha, embora as partes não possuam entre si relação familiar ou de afetividade. Esse foi o entendimento adotado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal:

CONFLITO DE COMPETÊNCIA. VARA CRIMINAL E JUÍZO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. EMPREGADA DOMÉSTICA. CUIDANDO-SE DE VIOLÊNCIA CONTRA EMPREGADA DOMÉSTICA, AINDA QUE NOS PRIMEIROS DIAS DE SEU TRABALHO NO ÂMBITO RESIDENCIAL DOS PATRÕES, CONFIGURA-SE A COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER, PREVISTA NO INCISO I DO ARTIGO 5º DA LEI Nº 11.340/2006, EXPRESSO EM PROTEGER INCLUSIVE AS MULHERES "SEM VÍNCULO FAMILIAR" E "ESPORADICAMENTE AGREGADAS". JULGADO COMPETENTE O JUÍZO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. (TJ-DF - CCP: 15611520088070000 DF 0001561-15.2008.807.0000, Relator: EDSON ALFREDO SMANIOTTO, Data de Julgamento: 15/12/2008, Câmara Criminal, Data de Publicação: 03/07/2009, DJ-e Pág. 34)

Por outro lado, conforme discorre Maria Berenice Dias (2010), este não seria o melhor entendimento. Considerando o espírito em que a Lei foi formada, esta visava combater em especial a violência contra a mulher dentro do seu próprio núcleo familiar, em que a vítima está especialmente vulnerável. As empregadas domésticas já estariam protegidas por legislação trabalhista própria, bem como pela CLT.

Tal entendimento revela-se mais preciso e de acordo com uma interpretação sistemática da Lei Maria da Penha. Em seu artigo 1º, declara suas intenções afirmando que seus objetivos alinham-se com as convenções assinadas pelo Brasil em combate a violência contra as mulheres ocorridas dentro de núcleos familiares e afetivos dos quais estas fazem parte.

Como as relações entre empregados e empregadores são meramente contratuais, torna-se inviável falar-se em aplicar medidas protetivas de urgência a favor de empregadas domésticas. Em casos de violência estas poderão utilizar-se das medidas já previstas em legislação própria, bem como do poder geral de cautela.

Somente admitir-se-ia aplicar a Lei Maria da Penha caso fosse comprovado que a relação entre as partes fosse além da mera obrigação contratual, possuindo entre si vínculo familiar ou afetivo.

4.2.2 Transexuais

Como já discutido acima, a mulher é o sujeito passivo na Lei Maria da Penha. Entretanto, necessário discutir o próprio conceito de mulher frente ao fenômeno da transexualidade.

Ocorre o transexualidade quando o indivíduo identifica-se com o gênero oposto àquele com o qual nasceu. Em outras palavras, trata-se de uma desconformidade psíquica entre o sexo biológico e o sexo psicológico.

Ao aplicarmos os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da liberdade sexual, torna-se imperativo, nesses casos, reconhecer a liberdade que o indivíduo possui sobre seu corpo e sobre sua sexualidade, livre para assumir a identidade de gênero que lhe pareça mais adequada.

Esse é, por sinal, o entendimento de nossos Tribunais, que não exigem, sequer, cirurgia de mudança de sexo, bastando a expressão da vontade do indivíduo:

RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. TRANSEXUAL QUE PRESERVA O FENÓTIPO MASCULINO. REQUERENTE QUE NÃO SE SUBMETEU À CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO, MAS QUE REQUER A MUDANÇA DE SEU NOME EM RAZÃO DE ADOTAR CARACTERÍSTICAS FEMININAS. POSSIBILIDADE. ADEQUAÇÃO AO SEXO PSICOLÓGICO. LAUDO PERICIAL QUE APONTOU TRANSEXUALISMO. Na hipótese dos autos, o autor pediu a retificação de seu registro civil para que possa adotar nome do gênero feminino, em razão de ser portador de transexualismo e ser reconhecido no meio social como mulher. Para conferir segurança e estabilidade às relações sociais, o nome é regido pelos princípios da imutabilidade e indisponibilidade, ainda que o seu detentor não o aprecie. Todavia, a imutabilidade do nome e dos apelidos de família não é mais tratada como regra absoluta. Tanto a lei, expressamente, como a doutrina buscando atender a outros interesses sociais mais relevantes, admitem sua alteração em algumas hipóteses. Os documentos juntados aos autos comprovam a manifestação do transexualismo e de todas as suas características, demonstrando que o requerente sofre inconciliável contrariedade pela identificação sexual masculina que tem hoje. O autor sempre agiu e se apresentou socialmente como mulher. Desde 1998 assumiu o nome de "Paula do Nascimento". Faz uso de hormônios femininos há mais de vinte e cinco anos e há vinte anos mantém união estável homoafetiva, reconhecida publicamente. Conforme laudo da perícia médico-legal realizada, a desconformidade psíquica entre o sexo biológico e o sexo psicológico decorre de transexualismo. O indivíduo tem seu sexo definido em seu registro civil com base na observação dos órgãos genitais externos, no momento do nascimento. No entanto, com o seu crescimento, podem ocorrer disparidades entre o sexo revelado e o sexo psicológico, ou seja, aquele que gostaria de ter e que entende como o que realmente deveria possuir. A cirurgia de transgenitalização não é requisito para a retificação de assento ante o seu caráter secundário. A cirurgia tem caráter complementar, visando a conformação das características e anatomia ao sexo psicológico. Portanto, tendo em vista que o sexo psicológico é aquele que dirige o comportamento social externo do indivíduo e considerando que o requerente se sente mulher sob o ponto de vista psíquico, procedendo como se do sexo feminino fosse perante a sociedade, não há qualquer motivo para se negar a pretendida alteração registral pleiteada. A sentença, portanto, merece ser reformada para determinar a retificação no assento de nascimento do apelante para que passe a constar como "Paula do Nascimento". Sentença reformada. Recurso provido. (TJ-SP - APL: 00139343120118260037 SP 0013934-31.2011.8.26.0037, Relator: Carlos Alberto Garbi, Data de Julgamento: 23/09/2014, 10ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 25/09/2014)

Conforme já alicerçado pela jurisprudência, o indivíduo tem a liberdade de decidir acerca de sua própria identidade sexual, cabendo ao poder público reconhecê-la e conferir-lhe tratamento legal em acordo com suas especificidades.

Considerando, portanto, a decisão do indivíduo em assumir o gênero feminino, deve a ele ser aplicadas os mesmos princípios e regras específicos para o gênero em questão. Ao aplicarmos isto à Lei Maria da Penha, notamos que o transexual poderá se enquadrar no seu conceito de mulher, assumindo o seu gênero psíquico.

Portanto, nos casos de violência doméstica e familiar, o transexual, ao assumir a identidade de mulher, torna-se titular dos direitos e garantias previstas na Lei Maria da Penha. Isto é reforçado ainda pelos artigos 2º e 5º deste diploma legal, que determinam que serão protegidos os direitos da mulher, independentemente de sua orientação sexual.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observa-se que todo o ordenamento jurídico está submetido ao império da Constituição, que impõe princípios que sustentam todo o sistema legal de uma nação. Portanto, inadmissível pensarmos aplicar determinada legislação sem antes a avaliarmos sob a ótica da Carta Maior.

A Lei Maria da Penha é um marco jurídico na concessão destes princípios, pois visa de sobremaneira garantir os direitos constitucionalmente assegurados das mulheres, protegendo-as de sofrer violência em virtude da discriminação de seu gênero.

Na qualidade de norma jurídica que tanto concede direitos como impõe obrigações, existe a necessidade de saber a quem realmente destina-se. Entretanto, a resposta para esta pergunta não pode ser restringida a uma mera análise fria dos dispositivos que a Lei nº 11.340/06. É preciso considerar esta legislação como parte de um todo, considerando o sistema de princípios e regras que o ordenamento jurídico nos traz, para auferir na prática em quais casos deve ser aplicada a norma.

Assim, tendo em vista as disposições constitucionais, as Convenções Internacionais ratificadas pelo Brasil, bem como o próprio histórico da Lei Maria da Penha, observa-se que sua abrangência é, sobretudo, inclusiva. Significa dizer que se propõe a combater a violência de gênero em suas mais diversas formas, independente de critérios como orientação sexual.

Para efeitos de incidência da lei Maria da Penha no caso concreto basta, portanto, a conjugação dos fatores discriminação contra o gênero feminino e âmbitos doméstico, familiar ou afetivo. É a partir desses dois elementos fundamentais que se extraem os sujeitos ativo e passivo no caso concreto.

Em respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana, isonomia material e da liberdade sexual, é vedado deixar de aplicar a ação positiva da lei sob o argumento de que devam ser estabelecidas diferenças de tratamento legal tendo em vista a orientação sexual ou o sexo biológico da mulher.

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