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ENEM: sistema avaliativo condensador dos princípios da reforma educacional do

CAPÍTULO 2 – (RE) CONHECENDO O EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO

2.1 ENEM: sistema avaliativo condensador dos princípios da reforma educacional do

A cada ano, desde 1998, percebemos forte influência quer direta, ou indiretamente, do ENEM em nossas escolas. A cobertura da mídia também fortalece a repercussão que o exame vem tomando na vida dos estudantes egressos do ensino médio e daqueles que almejam o acesso ao ensino superior. O ENEM foi instituído em 1998 como "procedimento de avaliação do desempenho do aluno" (art. 1º da Portaria Ministerial nº. 438, de 28 de maio), atendendo ao artigo 9º, VI, da LDB, que define claramente o objetivo do processo nacional do rendimento escolar: "a definição de prioridades e a melhoria da qualidade do ensino". Instituído durante a gestão de Paulo Renato Souza, o ENEM foi concebido paralelamente à reforma do ensino médio, e compartilha, assim, dos mesmos princípios por ela estabelecidos. Princípios estes que se materializam na própria estrutura da prova.

O ENEM é realizado anualmente, com o objetivo fundamental de avaliar o desempenho do aluno ao término da escolaridade básica, “para aferir o desenvolvimento de competências fundamentais ao exercício pleno da cidadania” (BRASIL, 2002, p. 2). Considera-se possível, ainda, alcançar os seguintes objetivos específicos8:

a) Autoavaliação: oferecer uma referência para que cada estudante possa proceder a sua autoavaliação com vistas às suas escolhas futuras, tanto em relação ao mercado de trabalho quanto em relação à continuidade de estudos;

b) Seleção para o mercado de trabalho: estruturar uma avaliação da educação básica que sirva como modalidade alternativa ou complementar aos processos de seleção nos diferentes setores do mundo do trabalho;

8Objetivos Específicos do ENEM original: chamaremos de ENEM original o exame antes da reformulação em 2009.

c) Substituição aos vestibulares: estruturar uma avaliação da educação básica que sirva como modalidade alternativa ou complementar aos exames de acesso aos cursos profissionalizantes pós-médios e ao ensino superior.

Segundo o Relatório Pedagógico (BRASIL, 1998), a utilização dos resultados do ENEM nos processos de seleção das instituições de ensino superior foi a primeira modalidade social de uso do exame e, desde sua implantação, constitui-se no mais forte atrativo aos que a ele se submetem. Com o advento do PROUNI9, esta utilização social ampliou-se cada vez mais com resultados efetivos no sentido de proporcionar o ingresso de jovens no ensino superior. Afirma o documento que até então, a maioria destes jovens desistia de continuar os estudos tendo em vista a escassez de vagas em instituições públicas e à falta de condições de pagar uma faculdade particular.

De uma forma geral, o ENEM apresenta um construto teórico que fundamenta os critérios para a avaliação de competências e habilidades do aluno ao término da escolaridade básica. Aplicado aos concluintes e egressos do nível médio, a prova está dividida em duas faces: questões objetivas e redação. Seu diferencial em relação aos demais exames de larga escala realizados no Brasil se dá em termos metodológicos (relativos à elaboração da prova, sua correção e a existência da redação) e também no que se refere à sua utilização, pois oferece aos estudantes um “instrumento para Autoavaliação”. Pinto et al. (2003) apontam que o ENEM tem procurado apresentar uma descrição do seu construto teórico e dos critérios que fundamentam a correção das provas objetiva e de redação, fornecendo um boletim individual de resultados, que cada examinando recebe três a quatro meses após a realização do exame. Assim, pode utilizá-lo para autoavaliação, acesso ao mercado de trabalho ou alternativa de acesso à universidade.

No Documento Básico que busca esclarecer as características do ENEM temos que:

Para estruturar o exame, concebeu-se uma matriz com a indicação de competências e habilidades associadas aos conteúdos do ensino fundamental e médio que são próprias ao sujeito na fase de desenvolvimento cognitivo, correspondente ao término da escolaridade básica. Tem como referência a LDB, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), a Reforma do Ensino Médio, bem como os textos que sustentam sua organização curricular em Áreas de Conhecimento, e, ainda, as Matrizes Curriculares de Referência para o SAEB (BRASIL, 2002, p. 2).

9Adiante, ao destacarmos o “Novo ENEM”, voltaremos a escrever sobre o Prouni aprofundando a discussão sobre a relação entre o ENEM e o acesso às Universidades.

O INEP/MEC também tem disponibilizado para as escolas, professores e comunidade em geral um relatório pedagógico. Este é um documento que apresenta toda a estrutura e sistemática da prova, e também todas as questões resolvidas e comentadas, especificando quais as competências e habilidades avaliadas em cada questão. Além disso, informa o percentual de acertos e erros de cada questão10.

O exame, até 2008, era constituído por uma prova única contendo sessenta e três questões objetivas de múltipla escolha e uma proposta para redação. As questões objetivas e a redação destinavam-se a avaliar as competências e habilidades desenvolvidas pelos participantes ao longo da escolaridade básica, a partir de uma matriz de competências especialmente desenvolvida para estruturar o exame. Esta matriz tenta definir claramente os pressupostos e as características operacionais da prova. Segundo o Documento Básico:

A matriz foi construída por um grupo de profissionais da educação – especialistas em psicologia do desenvolvimento, pesquisadores e professores das diferentes áreas de conhecimento e especialistas em psicometria –, a partir de um projeto elaborado e coordenado pelo INEP. A concepção de conhecimento subjacente a essa matriz pressupõe colaboração, complementaridade e integração entre os conteúdos das diversas áreas do conhecimento presentes nas propostas curriculares das escolas brasileiras de ensino fundamental e médio e considera que conhecer é construir e reconstruir significados continuamente, mediante o estabelecimento de relações de múltipla natureza, individuais e sociais (BRASIL, 2002, p. 4).

O modelo desta matriz busca contemplar a indicação das competências e habilidades gerais próprias do aluno, na fase de desenvolvimento cognitivo correspondente ao término da escolaridade básica, associadas aos conteúdos do ensino fundamental e médio, e considera como referências norteadoras, o texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), os textos da Reforma do Ensino Médio e as Matrizes Curriculares de Referência para o SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica). Ela pressupõe ainda que:

[...] a competência de ler, compreender, interpretar e produzir textos, no sentido amplo do termo, não se desenvolve unicamente na aprendizagem da Língua Portuguesa, mas em todas as áreas e disciplinas que estruturam as atividades pedagógicas na escola. O aluno deve, portanto, demonstrar, concomitantemente, possuir instrumental de comunicação e expressão adequado tanto para a compreensão de um problema matemático quanto para a descrição de um processo físico, químico ou biológico e, mesmo, para a percepção das transformações de espaço/tempo da história, da geografia e da literatura (BRASIL, 2002, p. 5).

10 Na escola onde foi realizada nossa pesquisa, a equipe gestora afirmou não ter recebido este relatório nos últimos dois anos.

O construto de competências e habilidades que eram avaliadas na parte objetiva do ENEM, quando esta era composta por sessenta e três questões, encontra-se nos anexos 1 e 2. A parte objetiva da prova era então elaborada como um instrumento de medida vinculado a esta matriz de cinco competências e vinte e uma habilidades e, avaliava três vezes cada habilidade, gerando um conjunto de sessenta e três questões de múltipla escolha. A matriz do ENEM também supõe que a competência de ler, compreender, interpretar e produzir textos manifesta-se em todas as áreas e disciplinas que estruturam as atividades na escola. Na redação, portanto, o participante é avaliado enquanto “escritor do mundo ou produtor de um texto sobre a realidade” (PINTO, 2003, p. 269), com base nas mesmas cinco competências que estruturam a parte objetiva da prova.

Assim estava, portanto, organizada a avaliação do ENEM em torno de cinco qualificações gerais ou capacidades operativas articuladas, as competências. A verificação das competências se estabelecia, na parte objetiva da prova, enfeixando-se algumas das vinte e uma diferentes capacidades operativas mais específicas. Essas habilidades eram exercitadas ao tratar de situações-problema e apresentadas nas questões em contextos reais. Na parte relativa à redação, as competências eram verificadas atribuindo-se valores distintos aos diferentes aspectos da compreensão e da elaboração do texto. Enfim, era este o conjunto de habilidades e competências que constituía a matriz de descritores de avaliação do ENEM até 2008.

Na prática, até 2008, o desempenho do participante era avaliado nas duas partes da prova (objetiva e redação), valendo 100 pontos cada uma delas. Esse desempenho era qualificado de acordo com as premissas teóricas da matriz de competências “que se refere às possibilidades totais da cognição humana na fase de desenvolvimento próprio aos participantes do ENEM – jovens e adultos” (BRASIL, 2002, p. 8). Essa qualificação era expressa nas seguintes faixas de desempenho: insuficiente a regular, que corresponde às notas entre 0 a 40, inclusive; regular a bom, que corresponde às notas entre 40 a 70, inclusive; e de bom a excelente, que corresponde às notas entre 70 a 100. Os participantes do exame recebiam um boletim individual de resultados, que não eram divulgados por meio de publicação ou instrumentos similares. Porém, as instituições neles interessadas, estabelecimentos de ensino pós-médio e superior e instituições do mercado de trabalho, a eles teriam acesso desde que obtivessem a autorização do participante. As instituições de ensino pós-médio e superior que utilizam os resultados individuais do ENEM, como critério de seleção às suas vagas, encaminham formalmente ao MEC/INEP a sua solicitação.

O fato de as escolas poderem ter acesso ao boletim de resultados da escola tem gerado um espírito de competitividade entre elas, especialmente, no âmbito do setor privado das escolas de ensino médio. O rankiamento das escolas de todo o país e a ampla divulgação pela mídia atinge de forma direta alunos e professores, sujeitos geralmente responsabilizados pelo sucesso ou fracasso dos resultados da escola.

Para Silva (2003, p. 258), os exames ao final de um determinado percurso traduzem uma concepção tradicional de avaliação e de currículo, que manifesta a intenção de controle. Para as finalidades da reforma do ensino médio, o controle tende a se viabilizar sobre os “indivíduos convertidos em alvos das prescrições curriculares – alunos e professores”. Quanto aos alunos, seu desempenho mostraria a eficácia das proposições, ou a ausência dela. No caso desta segunda possibilidade, o controle deveria recair mais sobre os professores, que “falharam por não incorporarem com exatidão as proposições”.

Castro e Tiezzi (2005, p. 133) apontaram o ENEM como um poderoso instrumento indutor de mudanças, na medida em que “expressa no que é avaliado aquilo que deveria ter sido ensinado”. E destacam ainda, como já vimos no capítulo anterior, que as demandas que geraram a reforma do ensino médio, passando pela LDB de 1996, foram as exigências do mercado de trabalho, a expansão da oferta de vagas rumo à universalização do acesso e afirmam a relação direta entre as políticas de avaliação como o ENEM e a “ênfase em programas de formação continuada de professores” (CASTRO; TIEZZI, 2005, p. 130).

É possível assim inferir aqui que o INEP impõe ao ENEM a responsabilidade de oferecer uma referência para os professores sobre quais competências precisam ser desenvolvidas e como elas podem ser avaliadas. Esse parece ser um dos pontos centrais que justifica o esforço empreendido pelo INEP para a realização desse exame, justificando a relação direta que a reforma propõe entre a formação dos professores e o ENEM, ou seja, entre este exame e a necessidade de preparar os professores para atuarem na direção das demandas do ENEM. Na Revista do ENEM (2001, p. 12) encontramos a seguinte afirmação: “esse é o poder transformador do ENEM: quando você avalia dessa maneira, está dizendo que isso é que deveria ter sido ensinado. Esse é o grande poder pedagógico do ENEM e a grande ajuda que pode dar à reforma do ensino médio”.

Se como afirmam Castro e Tiezzi (2005), “o ENEM surge como um poderoso instrumento indutor de mudanças”, nos cabe entender qual a perspectiva dos professores neste processo e quais mudanças são induzidas no trabalho docente. Uma consequência pode ser observada no novo currículo para o ensino médio no estado de São Paulo, bem como no material didático utilizado atualmente na rede estadual paulista, pois ambos focalizam as

competências e habilidades a serem avaliadas no ENEM. A escola onde desenvolvemos nossa pesquisa apoiou sua proposta pedagógica nos conceitos sobre os quais discorremos no capítulo 1 (competências, habilidades, interdisciplinaridade e contextualização) e que permeiam o currículo paulista para o ensino médio.

Por este alcance variado do exame é que Lopes e López (2010) têm afirmado que:

[...] o ENEM, como um sistema avaliativo que condensa os princípios da reforma educacional do ensino médio brasileiro, se constitui como um dispositivo que entrelaça e interpenetra o processo de ensino-aprendizagem em múltiplos níveis, já que, a partir dele, são engendrados tanto resultados globais (relativos às redes de ensino), quanto locais (referentes às unidades locais) e individuais (relativos ao aluno). Igualmente, o ENEM participa do fortalecimento e da circulação dos princípios da reforma, pois, em seu entrelaçamento e em seu processo de negociação com os múltiplos contextos com os quais se relaciona, produz efeitos mais ou menos convergentes de adesão a seus princípios (LOPES; LÓPEZ, 2010, p. 104).

É neste sentido que consideramos o ENEM uma política pública. Na medida em que, sendo um sistema avaliativo, ele condensa os princípios da pretendida reforma educacional do ensino médio. E como uma política avaliativa de largo alcance que produz “efeitos mais ou menos convergentes de adesão a seus princípios”, “entrelaçando e interpenetrando o processo de ensino-aprendizagem” reforçamos aqui o pressuposto de que o ENEM seria capaz de induzir mudanças nas práticas docentes.