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3 ENERGIA EÓLICA E CONCRETIZAÇÃO DO PROJETO CONSTITUCIONAL

3.4 ENERGIA EÓLICA E SOBERANIA NACIONAL

A compreensão de soberania implica uma dualidade necessária entre as relações externas e internas de um país. Assumir a soberania como um princípio a ser preservado pela atuação estatal deve perpassar os aspectos da autonomia política, econômica, tecnológica, militar e ideológica, conforme visto no capítulo anterior.

No sentido da luta cotidiana pela conquista da soberania brasileira, Samuel Pinheiro Guimarães (2001, p. 10) afirma ser necessário eliminar as vulnerabilidades externas, que são justamente as fragilidades econômicas frente à ordem econômica internacional (que por sua vez podem ser agrupadas em dois aspectos complementares, porém distintos: a economia política e a economia financeira – monetarização), as fragilidades tecnológica, política, militar e ideológica. Para responder a essas demandas da construção soberana na política externa do Brasil, ele

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defende a implementação de uma “estratégia realista de inserção internacional do Brasil”, a qual se baseia em três grandes desafios: redução das disparidades sociais, eliminação das crônicas vulnerabilidades externas e realização acelerada de seu potencial.

A partir de uma rápida visão do horizonte da energia eólica no Brasil, percebe-se a possibilidade da energia eólica dialogar com a eliminação das crônicas vulnerabilidades externas com a redução das disparidades sociais e, sobretudo, com a realização acelerada de seu potencial. Nesse sentido, a energia eólica dialoga diretamente com dois aspectos da soberania: a soberania econômica e a soberania tecnológica. É o que se passa a investigar doravante.

No que diz respeito à externalidade da soberania, é preciso considerar que a exploração energética nacional é um vetor importante para a acumulação de poder na geopolítica mundial.

Entre os temas da agenda geopolítica mundial neste início do século XXI, a energia ocupa posição central. De um lado, as restrições na oferta de petróleo e o crescimento econômico intensivo em energia – com destaque para o desempenho extraordinário dos chamados países “emergentes”, particularmente, os asiáticos que pressionaram a demanda para cima, estimulando, apenas de forma tímida, o investimento em fontes energéticas alternativas. De outro lado, o consumo crescente de combustíveis fósseis – petróleo, carvão e gás natural, principais emissores dos gases causadores do efeito estufa – torna-se o centro das preocupações políticas com as mudanças climáticas.

Em seu conjunto, as transformações no panorama energético mundial vêm impactando a geopolítica, na medida em que contrapõem diferentes estratégias de inserção dos grandes consumidores (os Estados Unidos, a União Europeia e a China) (IPEA, 2010, p. 441). No atual estágio do sistema capitalista, com padrões de consumo homogêneos e crescentes a partir do centro para os países periféricos, a energia tende a ser cada vez mais um elemento de alto valor na geopolítica mundial. Ora, para atender ao crescimento da demanda de consumo, que passa pela verticalização do sistema produtivo instalando indústrias nos países cada vez mais periféricos, conforme visto no capítulo anterior, será necessário aumentar a produção e o consumo de energia no mundo. Porém, nem todos os países dispõem dos recursos naturais necessários para desenvolver sua própria energia.

Assim, a geração de energia em solo nacional tem sido uma preocupação presente em toda a história do desenvolvimento do Brasil.

O Brasil preocupou-se, desde o início de seu processo de industrialização, em amenizar a dependência da energia importada. Ao longo do século XX, em particular a partir da década de 1930, a estratégia energética teve como objetivo garantir suporte ao processo de desenvolvimento. Essa política instensificou-se com a criação do Petróleo Brasileiro S/A (Petrobrás), em outubro de 1953, pelo presidente Getúlio Vargas, resultado da

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histórica campanha popular “O petróleo é nosso”, que havia começado em 1946. Em seu primeiro momento, a Petrobrás privilegiou investimentos nas atividades de refino e distribuição, com o objetivo de respaldar a industrialização e a modernização do país. Por mais de um século, o Brasil foi importador líquido de petróleo. Nos momentos de choque de oferta, respondeu com investimentos em outras fontes de energia, notadamente hidroelétrica, e, em particular o alcóol, após o choque de 1973, com o Programa Nacional do Álcool (Proálcool) e, outras fontes como a energia nuclear e, com menos êxito, o carvão. O Brasil se destaca hoje no cenário internacional de energia como um país de matriz mais limpa, cuja emissão de dióxido de carbono encontra-se significativamente abaixo da médial mundial (IPEA, 2010, p. 442).

Diante deste cenário percebe-se que não apenas o petróleo é um elemento de alto valor e disputa na geopolítica mundial (sem dúvida, tem sido a principal fonte energética em disputa desde o século XX), mas também a produção energética como um todo. E, nesse sentido, a realização do potencial energético brasileiro com a exploração de todas as fontes disponíveis deve contribuir para o aumento do poder político do Brasil no sistema mundo. Assim, é estratégico explorar o potencial eólico brasileiro.

Entretanto, tendo em vista o referencial da soberania econômica, explorar o potencial eólico brasileiro pode estar relacionado com o aumento da soberania econômica brasileira ou não. Isso acontece porque a organização do mercado de insumos para energia eólica e, mais ainda, de toda a economia política energética para o setor eólico pode implicar em mais ou menos autonomia, a exemplo do caso da exploração do pré-sal brasileiro, uma novidade na política energética.

O Brasil, em seu processo de formação econômica, sempre oscilou entre duas grandes tendências e as descobertas do pré-sal podem conduzir o país tanto em uma, como em outra direção. Uma é a constituição de um sistema econômico nacional, autônomo, com os centros de decisão econômica internalizados e baseado na expansão do mercado interno, em um processo de desenvolvimento vinculado a reformas estruturais. A outra consiste no modelo dependente ou associado, com preponderância das empresas multinacionais e do sistema financeiro internacional, dependente financeira e tecnologicamente e vinculado às oscilações externas da economia mundial, [...] (BERCOVICI, 2011, p. 351).

Em que pese não ser objetivo uma análise detida sobre a relação entre a exploração de petróleo no Brasil e a soberania, é importante considerar que na exploração do pré-sal o novo regime jurídico de partilha confere mais soberania ao país do que o regime de concessão utilizado para as demais áreas de exploração de petróleo no país.

A primeira e mais urgente medida tomada pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva foi propor a mudança de modelo de contrato de exploração de petróleo então vigente no

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Brasil, por meio do Projeto de Lei nº 5.938/2009. Além deste projeto, foram encaminhados outros três projetos de lei ao Congresso Nacional buscando alterar a legislação petrolífera do país e propiciar melhores condições para o aproveitamento das jazidas do pré-sal: os Projetos de Lei nº 5.939/2009, que autorizavam a criação de uma empresa pública, gestora dos novos contratos de partilha da produção; nº 5.941/2009, que propunha a autorização para a União ceder onerosamente à Petrobrás, sem licitação, o exercício da pesquisa e lavra do petróleo e gás natural nas áreas não concedidas do pré-sal. Após uma série de debates intensos em todo o país e no Congresso Nacional, os projetos foram convertidos em lei no decorrer do ano de 2010 (BERCOVICI, 2011, p. 319).

Devido ao regime jurídico da energia eólica no Brasil ainda estar em fase de consolidação por ser um novo potencial em exploração, é possível admitir que a questão de responder mais ou menos à soberania (seja em seu aspecto econômico, seja em seu aspecto tecnológico) está em disputa na sociedade. Em que pese a Constituição de 1988 impor um projeto de superação do subdesenvolvimento que passa necessariamente pela soberania econômica e tecnológica no país, uma vez que ela é um dado da esfera do dever ser, por si só, não resolve todos os problemas, pois o lócus de realização dos preceitos constitucionais está na sociedade e estes devem ser garantidos pelo Estado. Assim, ao se fazer referência à “disputa na sociedade” sugere-se que essas preocupações com a construção de um regime jurídico soberano, para serem concretizadas, precisam ser parte dos objetivos políticos de um governo. Nesse caso, apenas o controle de constitucionalidade não teria força suficiente para construir um regime jurídico calcado na soberania econômica e tecnológica. Faz-se, então, necessário que o governo e o congresso nacional estejam pelo menos parcialmente convencidos da construção de uma economia política mais soberana. Uma que ensejaria um regime jurídico de energia eólica com mais aspectos favoráveis à construção da soberania.

O que se pretende considerar, aqui, é que o regime jurídico e, portanto, a política de energia eólica tal como está hoje possuem tanto aspectos que contribuem para a soberania econômica e tecnológica do país, como aspectos que a desfavorecem, não sendo esta uma construção linear.

Entre os elementos positivos para a soberania econômica está a necessidade do cumprimento do índice de nacionalização de 60% exigido para os empreendimentos do PROINFA, elemento que induz a instalação de uma indústria de insumos para energia eólica no país, conforme supramencionado nas seções 3.1.1 e 3.3.. A política de financiamento para energia eólica do BNDES também é um elemento positivo, pois tem como critério de liberação de crédito

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a comprovação de um índice de nacionalização de 60% ou a obediência ao Processo Produtivo Básico – PPB, quando aplicável. Há, ainda, um cadastro de fabricantes do BNDES em que as indústrias, para se tornarem beneficiárias de crédito, se cadastram assumindo o compromisso de fornecer insumos para energia eólica que cumpram com os índices de nacionalização exigidos. Atualmente pertencem a esse cadastro a Alstom, IMPSA, Gamesa, GE, Siemens, Vestas, Wobben e WEG46 (BNDES, 2011).

Já o sistema de leilões inaugurado pelo novo marco regulatório da energia elétrica, supramencionado na seção 3.1.1, é ambíguo no que diz respeito a sua contribuição para a construção da soberania econômica brasileira. Por um lado, os leilões têm contribuído significativamente para o aumento da competitividade da energia eólica, o que leva ao crescimento da economia nacional, conforme supramencionado na seção 3.3. E uma economia forte, oriunda de setores estratégicos, contribui para o acúmulo de poder geopolítico. Por outro lado, o sistema de leilões praticamente torna uma exclusividade o critério da modicidade tarifária, o que atrai grandes empresas internacionais por terem melhores condições de disputar o preço final. Assim, opta-se basicamente pela instalação dessas empresas no país, fato que é fundamental para a consolidação desse mercado interno, porém abre uma brecha para a reafirmação da dependência econômica externa. Entende-se que atrair empresas internacionais não configura por si só um impedimento para a soberania econômica. Contudo, a falta de uma economia política autônoma, que imponha contrapartidas para a instalação dessas empresas de fortalecer a economia regional e, sobretudo no sentido da transferência de tecnologia, sem dúvida mitiga a soberania econômica e necessariamente leva à não soberania tecnológica.

O Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, CGEE, (2012, p. 29-35) já apresenta como crítica ao sistema de leilões o fato de dificultar a criação de novas tecnologias nacionais e a transferência de tecnologia, haja vista que a primeira iniciativa das empresas internacionais é fornecer insumos de estoque para consolidar-se no mercado e só então instalar-se no país. E, com vistas à disputa dos leilões, o investimento em novas tecnologias fica mitigado pelo objetivo da redução de custos necessários para conseguir se posicionar nos leilões. Assim, o CGEE (2012),

46 Em 2012 o BNDES suspendeu o cadastro de seis fabricantes de aerogeradores (VESTAS, SUZLON, ACCIONA,

FURHLANDER, CLIPPER e SIEMENS) por não atenderem ao índice de nacionalização necessário para o Finame, destas a VESTAS e SIEMENS conseguira recuperar o cadastro. Essa medida, responde aos imperativos da soberania, mas por outro lado diminui a concorrência, pois o impacto foi tão grave para as empresas que perderam o financiamento FINAME que diminuiu a oferta de equipamentos no Brasil (MELO, 2013, p. 130).

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na sua publicação “Análises e percepções para o desenvolvimento de uma política de CT&I no fomento da energia eólica no Brasil”, apresenta a preocupação com o futuro do mercado de energia eólica nacional, destacando “a necessidade de pesquisas voltadas para avaliação dos riscos econômicos da atração dos investimentos internacionais para o Brasil, uma vez que a instalação de empresas estrangeiras no país pode inibir o desenvolvimento de empresas nacionais” (2012, p. 63).

A partir da análise desse aspecto do sistema de leilões para o mercado de insumos de energia eólica no país, é possível assumir que o regime jurídico que rege a energia eólica no país atualmente (sistema de leilões) não responde aos imperativos da soberania tecnológica, aspecto fundamental da compreensão de soberania e que é fruto da brecha aberta por deficiência na soberania econômica.

Percebe-se que a realização do potencial eólico brasileiro sob os imperativos da soberania nacional não se dá de maneira linear. Existem contradições no regime jurídico que hora contribuem com a soberania econômica e tecnológica, hora desfavorecem esses dois aspectos da soberania. Esse cenário demonstra apenas que diante do grande potencial eólico brasileiro torna- se fundamental realizar ajustes no regime jurídico do país para aproximá-lo mais do projeto constitucional de superação do subdesenvolvimento. Tais medidas serão analisadas no capítulo 5.