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Entende-se que um fato se trata de violência contra homossexuais (homofobia) quando a homossexualidade é um dos elementos de causalidade do ato perpetrado. Quando a condição de negro ou de mulher da vítima é também elemento de causalidade do ato violento, permite-se a classificação de, respectivamente, racismo e violência contra a mulher. Além disto, outras características deste tipo de crime relacionado à homossexualidade da vítima são perceptíveis e freqüentes. A grande maioria é assassinada dentro da própria residência, sem sinais de arrombamento, o que revela o consentimento da entrada do agressor. Outro dado também relevante é que, em grande parte dos casos, a vítima e o agressor mantém entre si um relacionamento homossexual. Sendo assim, é interessante verificar como a cobertura jornalística dos fatos relativos a este tipo de violência foi realizada, ou seja, sob quais perspectivas, quais aspectos foram enfatizados.

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Diante da análise de cada uma das reportagens coletadas, pode-se depreender que a cobertura realizada pelo jornal A Tarde, nos anos de 1999, 2001, 2002 e 2004, optou preponderantemente por enquadramentos que contribuem para dispersar aspectos que poderiam servir para se classificar o fato ocorrido como um caso de violência contra homossexuais. A maior parte das narrativas veiculadas neste jornal enfatizaram determinadas características e privilegiaram a produção de sentidos que não o da condição de homossexual da vítima como elemento de causalidade/motivação. Até mesmo quando a vítima era declaradamente homossexual ou quando o autor do crime afirmou não gostar de homossexuais, o enquadramento ressaltou outras características referentes ao crime que não a expressão da sexualidade em si.

Todavia, pode-se questionar de que forma se chegou à conclusão de que houve essa dispersão, se ela trabalharia justamente no sentido de diluir, na própria narrativa, elementos que possibilitariam a classificação do fato como um caso de violência contra homossexuais. Na verdade, verificou-se que algumas características que poderiam funcionar como indícios estavam presentes, mesmo que de maneira sutil: o relacionamento entre vítima e agressor; o assassinato tendo ocorrido dentro da própria residência e com o consentimento da vítima, declarações de fontes entrevistadas relatando que a vítima era homossexual, entre outros. Porém, todos estes aspectos não ganharam destaque na maioria das narrativas do A Tarde.

Sendo assim, para se empreender a análise, focou-se o olhar para quais aspectos eram privilegiados, ou seja, se mesmo mantendo, por exemplo, um relacionamento homossexual, a vítima e o agressor eram identificados e nomeados de tal forma que a relação existente não fosse enfatizada. A identificação da vítima pelo viés da sexualidade e do autor do crime pela profissão é um exemplo de como se posicionou os diferentes sujeitos envolvidos, distanciando-os. Quando a travesti é assassinado tem na sua expressão da sexualidade o destaque. Mas o agressor é reconhecido pela sua profissão, mesmo tendo praticado uma relação homoerótica com a travesti.

Portanto, poder-se-ia pensar que a identificação pelo viés da sexualidade citada acima seria uma espécie de direcionamento/ênfase para o componente da sexualidade como elemento motivador do crime, porém, isto não é feito no decorrer da maioria das narrativas. Este tipo de identificação aproximou-se muito mais de algo circunstancial. Além disto, o destaque dado, por exemplo, à palavra “travesti” no título de várias matérias parece muito mais tentativas para se atrair leitores e, quando se compara o uso de “travesti”(vítima) com “comerciante” (agressor), percebe-se que o primeiro já vem acompanhado implicitamente de possíveis significados, via de regra, pejorativos. Como afirma Orlandi (1999, p. 20), “as

palavras simples do nosso cotidiano já chegam até nós carregadas de sentidos que não sabemos como se constituíram e que no entanto significam em nós e para nós”.

É óbvio que não se pode determinar com precisão que a causa do crime ocorrido (ou de qualquer ato hostil semelhante) foi exclusivamente o fato de a vítima ser homossexual, mas observa-se que este é um aspecto pouco explorado ou até mesmo nem sequer é abordado, mesmo em casos em que a vítima e o agressor mantinham um relacionamento, o que evidenciaria a condição de homossexual da vítima. Geralmente, o foco repousou sobre outra(s) característica(s) que não a condição de homossexual da vítima. Sendo assim, pode-se afirmar, com base na análise do discurso jornalístico presente nas matérias, que a cobertura realizada pelo A Tarde, no período abarcado por esta pesquisa, funcionou como uma espécie de dispersão dos elementos que poderiam enfatizar os crimes ocorridos como violência contra homossexuais.

No entanto, há algumas narrativas, onde o assassinato ocorrido é associado a crimes em que as vítimas eram homossexuais. A associação é feita geralmente com os índices apresentados pelo GGB acerca de assassinatos de homossexuais, no mesmo período em que o crime foi cometido. Mas mesmo assim, as narrativas seguem outros rumos, chegando a enfatizar suspeitas ou dando ao fato um caráter de violência comum, em que a homossexualidade é apenas mais uma característica.

Outro fator que merece ser ressaltado é que em algumas das reportagens analisadas não se afirma/nomeia diretamente a homossexualidade da vítima. É interessante observar como essa característica é, por vezes, sugerida de forma sutil. São apontados determinados indícios como a “visita de rapazes”, a “participação em manifestações promovidas pelo Grupo Gay da Bahia”, entre outras. Quando a fonte entrevistada traz à tona a homossexualidade da vítima, é comum o uso de conectivos como “no entanto”, “apesar” e “porém”, estabelecendo relações de contradição. Somente em uma das matérias analisadas é sugerido diretamente que o fato ocorrido seria mais um caso de violência contra homossexuais.

Um dos principais aspectos que ganharam destaque nas matérias analisadas é a classificação do crime como sendo “latrocínio”, ou seja, um homicídio com objetivo de roubo. Nesse sentido, privilegia-se a intenção de roubar pertences da vítima, como se tivesse sido a única razão do crime perpetrado. Há um exemplo em que já no subtítulo da matéria enquadra-se o fato como “latrocínio”, não deixando dúvidas que a razão do crime era justamente roubar. Até as suspeitas de latrocínio são tratadas com destaque, mesmo em matérias onde não se tem informações para elucidar o caso.

Sendo assim, verificou-se que a cobertura jornalística do A Tarde privilegiou preponderantemente outros elementos/características, que não a condição de homossexual da vítima. No entanto, a análise das matérias veiculadas no Tribuna da Bahia permitiu constatar uma maior quantidade de enquadramentos que privilegiaram aspectos que relacionam os assassinatos ocorridos com a condição de homossexual da vítima. Neste veículo, este aspecto teve destaque muito maior. Já na reportagem analisada do Correio da Bahia, pôde-se dizer somente que se enfatiza, assim como no A Tarde, outros aspectos que não a condição de homossexual da vítima como elemento de causalidade. Na única reportagem analisada do

Correio, por exemplo, foi dado destaque à suspeita de crime de vingança.

O poder de nomear algo, ou melhor, de classificar o outro ou um determinado fato (enquadrando-o e enfatizando sentidos) perpassa justamente pela linguagem. Ressaltar determinados aspectos que não permitem a categorização do crime ocorrido como um crime de teor homofóbico ou dispersar essa característica contribui em grande medida para que não se leve em consideração que a condição de homossexual da vítima e a existência da homofobia são alguns dos principais elementos de causalidade das atitudes de hostilidade, podendo culminar em assassinatos. Nesse sentido, verifica-se que o discurso jornalístico, ao reconstruir o fato e transformá-lo em notícia, assume importante papel, visto que o resultado de sua prática (a notícia) pode evidenciar determinados aspectos, em detrimento de muitos outros possíveis. Todavia, ressalta-se ainda que não se quer dizer com isso que o jornalismo escolha deliberadamente como um fato deverá ser noticiado e que tenha controle dos sentidos que serão construídos. No discurso jornalístico, a produção de sentido é resultado de uma série de fatores internos e externos, tais como espaço para a publicação, fontes entrevistadas, linha editorial do jornal, entre muitos outros, que podem e de fato interferem neste tipo de construção.