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ENSINO SECUNDÁRIO: DEMOCRATIZAÇÃO E DIFERENCIAÇÃO

CAMINHOS ESCOLARES DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR: CONDIÇÕES E TRAJETÓRIAS

3. ENSINO SECUNDÁRIO: DEMOCRATIZAÇÃO E DIFERENCIAÇÃO

O ensino secundário tem vindo a ganhar, nas últimas décadas, no contexto nacional e inter- nacional, uma centralidade reforçada. Se, por um lado, se assiste à massificação da procura, do acesso e da multiplicação dos diplomas neste nível de ensino, e ao seu estabelecimento progressivo como grau de escolaridade mínima obrigatória, por outro, paradoxalmente, parece dar-se o reforço das modalidades de seleção e distribuição hierarquizada dos alunos, reconfi- gurando desigualdades (Dubet e Duru-Bellat, 2000).

Os títulos escolares afirmaram-se progressivamente como base de empregabilidade, configu- rando uma procura inflacionista, associada à demanda de mobilidade social (Azevedo, 2000; Grácio, 1997) e a uma “incondicional conversão ao desígnio escolar” (Vieira, 2005: 526), no- meadamente entre as famílias com menos recursos e tradicionalmente mais distanciadas dos processos de escolarização avançados.

Ao nível europeu, este nível de ensino organiza-se através de uma diferenciação de percursos institucionais possíveis: a arquitetura dos sistemas pode classificar-se segundo a relação entre os diferentes perfis de oferta e o grau de equivalência entre as certificações finais, seguindo duas lógicas: os modelos bipartidos (diferentes percursos, diferentes certificações), ou com- preensivos (diferentes percursos, certificações equivalentes) (Mateus, 2000 e 2014). As vias não têm o mesmo valor social simbólico e os pontos de finalização conduzem a posições sociais diferenciadas, cruzando funções seletivas e funções promocionais, ou de mobilidade (Azevedo, 2000). Trata-se por isso não só de um contexto institucional para a expressão de competências e projetos individuais herdados ou elaborados, mas também de uma matriz ativa de distribuição social (Duru-Bellat, 2002).

As vias são também “diversificadas face às reais capacidades de ‘transportar’ os estudantes para o ensino superior” (Martins, 2012:59); e o seu efeito é visível, por exemplo, nas análises com- parativas sobre a proporção de alunos que chega ao ensino superior por “vias não tradicionais”, fenómeno que abrange cerca de um terço dos alunos inquiridos no Eurostudent na Suécia e em Espanha, colocando Portugal numa posição intermédia (8,9%) e apresentando vários países com valores muito marginais. Análises comparativas recentes indiciam uma progressiva predominância da opção pelo ensino profissional relativamente ao ensino geral (Martins, 2012).

Em países com sistemas de ensino secundário altamente diferenciados e hierarquizados (como a Alemanha, a Áustria ou a Holanda), o tipo de escola e de opções frequentadas (por escolha ou alocação) são determinantes das aspirações dos estudantes (Buchmann e Dalton, 2002). Mateju et al (2007), através de uma análise de dados estatísticos da OECD do domínio da educação, es- tabeleceram uma associação entre a estratificação, a especificidade vocacional, a permeabilidade e a abertura dos sistemas de ensino e as aspirações individuais de prosseguimento para o ensino superior. Os autores salientam que as variáveis individuais e de background social são ativadas diferenciadamente pelos diferentes perfis sistémicos e estruturais nacionais, demonstrando que a configuração do ensino secundário tem um impacto maior do que a configuração do ensino supe- rior na formulação das orientações dos alunos. Similarmente, Buchmann e Park (2009), a partir dos dados do PISA, examinaram o impacto da classe social nas orientações de futuro dos alunos em 5 sistemas educativos de elevada estratificação (Áustria, República Checa, Alemanha, Hungria e Holanda). A classe social revelou-se altamente preditiva da alocação escolar e do tipo de escola frequentada e este último fator condicionou fortemente as orientações dos alunos, conferindo às mesmas um realismo que pode ser visto ora como uma vantagem em termos de racionalidade e adequação ao mercado de trabalho, ora como um bloqueio ao desenvolvimento do potencial humano e um refreamento precoce dos destinos possíveis.

As orientações são ainda influenciadas pelo nível socioeconómico da escola e a sua média de sucesso (Frost, 2007). As escolas secundárias podem influenciar a ambição dos estudantes através do que comunicam sobre o que é importante e sobre o que os estudantes precisam de colocar em prática para realizar a transição para o ensino superior, estreitando ou ampliando as escolhas curriculares disponíveis. Podem articular-se e providenciar ampla informação sobre,

a integração no ensino superior e/ou sobre a integração no mercado de trabalho. O que as es- colas escolhem enfatizar e comunicar influencia os objetivos dos estudantes e as formas como estes os realizam (Schneider e Stevenson, 1999).

A diferenciação escolar expressa-se também nos processos de fechamento social dos grupos mais favorecidos e na marginalização de alguns grupos específicos e franjas mais instáveis das classes trabalhadoras, não obstante a existência de formas de diversificação inclusivas (Abrantes, 2010 e 2011; Seabra e outros, 2014). Essa progressiva estratificação das escolas em distintos “circuitos de escolarização” (Ball e outros, 1995), que vem ganhando contornos segregativos (Abrantes e Sebastião, 2010), representa “mundos à parte” entre e dentro das escolas (Quaresma et al., 2012).

O estatuto socioeconómico da família de origem ganha especial relevância nas análises sobre orientação no ensino secundário. A investigação mostra, de forma consistente, que este impacta nos níveis de educação secundários e avançados, marcando diferenças nos “modos, processos e pontos de engajamento com a educação e o mercado de trabalho” (Ball, Maguire e Macrae, 2000: 145). Trata-se de uma influência social incorporada progressivamente no valor escolar do aluno, refletida nas várias decisões escolares, e que se torna tanto mais forte quanto mais se avança na trajetória escolar (Duru-Bellat, 2003). A sua importância é reforçada em estudos como o de Van de Werfhorst (2002), realizado na Holanda, que encontrou diferenças consideráveis nas escolhas escolares segundo a classe social: os alunos das classes menos dotadas de recursos tendem a optar por vertentes de ensino vocacional e especializado (que o autor designa como “escolhas horizontais”), comprometendo desta forma as trajetórias de mobilidade social ascendente. Na transição para o ensino secundário, o aluno tem um passivo de experiência e avaliação que determina como se irá projetar nos percursos disponíveis institucionalmente. A orienta- ção é um processo mais complexo para os alunos com resultados médios ou fracos, onde a origem social, o sexo, entre outras variáveis, algumas delas escolares, como o “efeito escola”, “efeito turma”, a relação com os professores e as expetativas percecionadas nos mesmos, ou as ofertas disponíveis, vão ganhar um peso mais determinante, que se prolon- gará até ao ensino superior, e que neste assumirá novas configurações (Duru-Bellat, 2002).

As desigualdades de escolha tendem, de resto, a pesar mais quanto mais elevado for o nível de escolaridade em que ocorrem, já que as desigualdades de resultados são “incorporadas progressivamente num valor escolar que é depois um dos parâmetros objetivos essenciais da escolha” (idem: 188).

Independentemente das condições sociais e escolares vulneráveis e dos constrangimentos ao desenvolvimento da capacidade projetiva e de planeamento, os alunos são, na transição para o ensino secundário, orientados, alocados ou levados a optar por uma fileira específica. A opção (ou a alocação) pelas vias vocacionais, entre os alunos de origem estrangeira, é um facto veri- ficado amplamente na literatura internacional, que o designa sobretudo como um mecanismo de restrição da estrutura de oportunidades dos alunos provenientes de grupos minoritários, e de reforço da estratificação social. Considera-se que os tempos e modalidades de alocação e seleção podem ser particularmente penalizadoras para os alunos descendentes de imigrantes, já que estes podem precisar de mais tempo para se familiarizarem com a língua, as especifi- cidades institucionais e para revelar o seu potencial de alunos (Crul e Schneider, 2009; Kao e Thompson, 2003; Kirsten e Granato, 2007).

A opção por diferentes vias de ensino não se baseia apenas nas prestações escolares dos alu- nos. As probabilidades de jovens etnicamente diferenciados, ou de grupos sociais com baixos recursos, optarem por uma via profissionalizante ou menos prestigiada indica a existência de outro tipo de condicionantes. Estereótipos em relação às potencialidades de determinados grupos de alunos, a procura de um ingresso mais rápido no mundo do trabalho, a falta de identificação com o sistema escolar, pressões por parte das famílias mais dotadas de recursos para o ingresso dos seus filhos nas fileiras mais qualificadas, entre outros, formam um quadro complexo e pouco linear face às capacidades reconhecidas nos processos escolares. A orien- tação escolar tende, por isso, a ser interpretada como um espaço de itinerários construído institucionalmente, passível de ser percorrido de modo desigual de acordo com os recursos escolares e socioculturais dos alunos (Mateus, 2002).

O nível de estratificação dos sistemas de ensino e os seus tempos e modalidades de transi- ção afetam, em particular, os alunos descendentes de imigrantes. Os contextos de integração

(sobretudo institucionais) ajudam ou bloqueiam os percursos dos jovens descendentes. Crul e equipa dão como exemplo o caso dos turcos de segunda geração, cujo insucesso escolar na Alemanha é explicado através do background económico e as diferenças culturais. No entanto, quando o mesmo grupo é observado em diferentes cidades europeias, os níveis de sucesso escolar apresentam níveis de variação significativos (por exemplo, apenas 3% chegam ao ensi- no superior na Alemanha, por comparação com os 40% que o fazem na Suécia e em França), salientando a importância do contexto institucional (Crul e Schneider, 2010).

Na Europa, os arranjos institucionais, mais do que as características étnico nacionais, têm revelado um papel decisivo na promoção ou refreamento da integração escolar e profissional destes jovens (Crul e Schneider, 2009). A grande variação nos tempos, procedimentos e rigidez dos mecanismos de seleção é considerada um dos mais importantes mecanismos explica- tivos dos resultados escolares dos descendentes de imigrantes, ao lado da idade em que a educação começa, o número de horas presenciais de contacto com os professores durante a escolaridade obrigatória, o perfil de apoio e assistência disponível para os alunos de origem migrante dentro e fora da escola e, de modo menos central, os programas de apoio linguístico. As consequências dos mecanismos de seleção serão tanto mais fortes quanto mais precoces (Crul e Vermeulen, 2003).

Nos EUA, com um sistema educativo mais compreensivo, a grande maioria dos estudantes mantém-se em escolas onde poderão, hipoteticamente, transitar para o superior. No entanto, as escolas diferenciam-se muito de acordo com a sua localização, recursos e qualidade; tal como na oferta curricular. Fatores residenciais e de financiamento da educação têm, por isso, grande importância. Ao contrário do que acontece no contexto norte-americano, no espaço europeu o financiamento é maioritariamente (embora não exclusivamente) centralizado e existem progra- mas específicos de compensação quando nos públicos se encontram alunos descendentes ou de classes sociais menos providas de recursos (como é o caso dos TEIP em Portugal, ou das ZEP em França) (Holdaway, Crul e Roberts, 2009).

O nível socioeconómico da escola e o grau de segregação étnica têm sido tidos em conta na explicação das aspirações escolares dos alunos de origem imigrante, com dois padrões

2 Este fenómeno é também designado como the big-fish-little-pond effect (Frost, 2007): estudantes de nível académico comparável têm autoconceitos e expetativas mais baixas em escolas mais competitivas do que em escolas menos competitivas (Portes e Ma- cLeod, 1999).

de resultados contraditórios: as aspirações elevam-se quando os alunos frequentam escolas maioritariamente de estatuto socioeconómico elevado, mas também no caso de escolas com elevada concentração de população diferenciada etnicamente. Goldsmith (2004), por exemplo, defende, no contexto norte-americano, que a frequência de escolas com elevada proporção de alunos afro-americanos e latinos eleva o nível de aspiração porque facilita a comparação com alunos de resultados mais baixos e não promove o confronto com informação mais factual sobre as exigências para o prosseguimento de estudos superiores. Wells (2010) concluiu por seu turno que os descendentes são menos afetados pela composição social da escola: têm, em escolas com nível socioeconómico baixo, expetativas mais elevadas do que os seus pares. Tam- bém Frost (2007) demonstrou que os estudantes “negros” inseridos em escolas com elevada concentração de minorias étnicas e raciais têm expetativas mais elevadas do que em escolas com elevados níveis de sucesso.2

Por outro lado, a condição imigrante obstaculiza o acesso à informação e o desconhecimento do sistema de ensino limita o apoio parental. As famílias variam enormemente em termos da informação possuída sobre como prosseguir para as diferentes opções e os recursos para as realizar (Kasinitz e outros, 2008). Como afirma Perlmann (2005), os alunos de famílias imigran- tes tentam, muitas vezes, subir uma escada de mobilidade educacional intergeracional onde faltam os degraus do meio.

Numa pesquisa sobre orientações de futuro, escolares e profissionais, dos jovens filhos de imigrantes, alunos do 9.º ano de escolaridade, na transição para o ensino secundário, Mateus (2014) identifica, a partir da caracterização das condições objetivas e subjetivas de experiên- cia na família e na escola, uma tipologia de diversidade de modos de projeção no futuro. Nes- ta, os alunos com origem nos PALOP posicionam-se sobretudo em situação de vulnerabilidade: i) projetos ascendentes, coerentes, não planificados, ii) ascendentes difusos, e iii) difusos em situação de desvantagem. Nestes perfis, a indefinição das orientações de futuro não se confunde com experimentalismo e aproxima-se mais de um certo bloqueamento da capacidade imaginativa, de- corrente de condições sociais desiguais, assinalando um risco acrescido.

A relação entre a falta de informação e os problemas de segregação residencial ten- dem a agudizar-se mutuamente, potenciando situações em que “quem mais necessita de uma escola forte acaba inserido numa escola mais fraca” (Kasinitz et al, 2008: 157). As famílias com capacidade de escolha limitada desenvolvem frequentemente estratégias para evitar os efeitos dos ambientes de bairros vulneráveis: inscrever os seus descendentes em escolas fora da área residencial, pagar uma escola privada, ou mesmo enviá-los para os seus países de origem para que possam completar a escolarização, no que os autores designam como uma transnacionalização das soluções. A origem etnicamente diferenciada, quando associada a uma condição social vulnerável, agudiza as condições de navegação, seleção e alocação dentro das (desiguais) ofertas existentes na arquitetura dos sistemas de ensino.