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CAMINHOS ESCOLARES DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR: CONDIÇÕES E TRAJETÓRIAS

6. SOBRE OS TRAJETOS DE CONTRA TENDÊNCIA

Se a presença dos descendentes de imigrantes na escola tem sido muitas vezes analisada pelo prisma do insucesso e exclusão escolar, desde o final a década de 1980 que têm vindo a surgir pesquisas que se debruçam sobre os trajetos escolares de marcado sucesso de alguns grupos sociais anteriormente afastados da escola, ou pelo menos dos seus patamares mais prestigia- dos. Em Portugal essa é uma linha de pesquisa recente e aí vale a pena destacar os trabalhos de Costa e Lopes (2008), que cunham a designação “trajetos de contratendência” para dar conta dos percursos escolares em que, apesar de condições socioeconómicas adversas, os jovens desenvolvem trajetos longos e chegam ao ensino superior. Apesar da sua centralida- de, essa pesquisa, tal como outras pesquisas nacionais sobre trajetos “inesperados” (Teixeira, 2010; Carvalho et al., 2012), não se debruça sobre os trajetos de descendentes de imigrantes, como acontece no estudo de Roldão (2012, 2015) e de Évora (2013).

A nível internacional essa literatura, como já referido, terá tido o seu início na década de 1980, sendo que parte desses trabalhos se orientaram especificamente para a análise dos trajetos de descendentes de imigrantes, com inscrição nas classes populares, e que ingressaram no ensino superior (Zeroulou, 1988 e 1985; Laacher; 1990 e 2005; Gandara, 1995). Nos últimos anos, parece existir um interesse renovado na temática, tendo emergido trabalhos das equi- pas de Alejandro Portes e de autores próximos (Portes e Fernandez-Kelly, 2008; Zhou et al., 2008; Hao e Pong, 2008) centrados nas estratégias de integração familiares; e de Maurice Crul (Crul, 2013; Schnell, Keskiner e Crul, 2013) focando especialmente o contributo da confi- guração dos sistemas de ensino nacionais para a maior ou menor promoção dos trajetos de contra tendência. Outro sinal da atualidade do tema está patente no interesse recente da OECD (2011) nessa questão, com a publicação do relatório Against the Odds: Disadvantaged Stu-

dents Who Succeed in School (OECD, 2011)7.

Para além de dimensões analíticas como as desigualdades no acesso e orientação nos siste- mas educativos, em especial no ensino superior, as práticas e estratégias educativas das fa- mílias, os “trajetos improváveis” têm também sido olhados do ponto de vista da experiência pessoal desses jovens em

trajetos de “mobilidade educativa” que acarretam uma pluralização de referências e inserções sociais, mas também processos de “renegociação” interior e das relações com o seu meio de origem e grupos de pares (entre outros, Ogbu e Fordham, 1986; Granfield, 1991; Reay, Crozier e Clayton, 2009; Lee e Kramer, 2013).

Em termos gerais, as pesquisas sobre trajetos de contra tendência dão particular importância ao contexto familiar. Uma das abordagens remete para “vantagens relativas” das famílias dos jo- vens em trajetos de contra tendência. Pertencer às faixas mais estabilizadas e qualificadas das classes populares ou às camadas mais marginalizadas e menos qualificadas (sucessivamente sujeitas ao desemprego, subemprego, más condições de trabalho e pobreza) destas, significa quotidianos doméstico-familiares, capacidades de investimento, acompanhamento e projeção escolar por parte das famílias muito distintas (Queiroz, 1991; Lahire, 1995; Benavente et al 1987; Gandara, 1995; Laacher, 2005; Roldão, 2015).

Os percursos escolares de contra tendência estão por vezes associados a trajetórias de mobilidade descendente, em que na geração dos avós e nos seus países de origem, ou no percurso de vida passado dos progenitores, a família gozava de uma posição social relativamente mais favorável. Assim, apesar da sua condição socioeconómica atual, as disposições, estratégias, competências, os projetos escolares dessas famílias e dos seus descendentes são mais consonantes com o universo da escola, para além da maior proba- bilidade de na sua rede de sociabilidades e familiar alargada encontrarem maior suporte (capital social).

Nessas famílias encontra-se também muitas vezes formas de relação com a escrita, com a leitura e com o cálculo, experiências escolares e níveis de escolaridade dos progenitores mais propícios à produção do sucesso escolar (Lahire, 1995). São frequentes as pesquisas sobre trajetos de contra tendência que referem que os pais dos jovens em trajetos de contra tendên- cia são muitas vezes autodidatas, melómanos, leitores assíduos; indivíduos que em crianças desejaram realizar um percurso longo na escola, mas que viram o seu projeto rompido; os pais e os irmãos apresentam níveis de escolaridade mais elevados do que o padrão de escolaridade de muitas famílias das classes menos favorecidas.

Mas o ‘núcleo duro’ das pesquisas sobre esses trajetos escolares nas classes populares explo- ra principalmente as margens de autonomia relativa das famílias face à estrutura de classes, designadamente do ponto de vista das estratégias e estilos educativos das famílias. Aqui podemos distinguir analiticamente duas linhas. Alguns autores sublinham que esses trajetos estão estreitamente associados ao acionamento, por parte das famílias, de estratégias de forte investimento (participação regular nas reuniões escolares; apoio no trabalho escolar; interven- ção direta nas escolhas escolares; investimento em aditivos escolares; controlo das rotinas quotidianas e das sociabilidades, etc.), e muito focadas no plano escolar (Teixeira, 2010; Clark, 1983; Évora, 2013). Noutras pesquisas, sem deixar de ser reconhecido o papel dos pais na construção dos referidos trajetos, são sublinhadas práticas educativas difusas, muitas vezes periféricas ao domínio estritamente escolar (por exemplo, o controlo sistemático e rigoroso sobre as sociabilidades e tempos de lazer dos descendentes pode não visar especificamente o investimento escolar, mas a formação moral mais lata desses jovens; a transmissão de uma ética da perseverança e esforço pode não dirigir-se especial ou especificamente ao projeto es- colar), mas que têm um impacto importante a esse nível (entre outros, Laacher, 1990 e 2005; Gándara, 1995; Lahire, 1995; Viana 2000 e 2005; Silva e Teixeira, 2008).

Mas é preciso não desgarrar a análise destes casos ‘singulares’ de dinâmicas macroestruturais de longo alcance, quer no plano económico produtivo, onde o conhecimento e a tecnologia são pilares do desenvolvimento e modernização económica das sociedades contemporâneas; quer na esfera educativa, onde se assiste a uma considerável expansão e massificação dos sistemas educativos. Isto é sobretudo importante porque nos permite ligar a “excecionalidade” desses casos a uma dinâmica social de fundo que é a progressiva recomposição social dos patamares mais avançados da escola. Portanto, os jovens em trajetos de contra tendência remetem, pelo menos em parte, para o que se tem designado “novos alunos”, muitas vezes com percursos escolares menos lineares e com uma relação “paradoxal” face à escola (Dubet, 1991; Dubet e Martuccelli, 1996; Erlich, 2004).

Como fica evidente na pesquisa de Roldão (2015), assim como noutras que propõem tipologias para o entendimento desses trajetos (Laurens, 1992; Terrail, 1990), não parece existir uma cha- ve única para a explicação desses trajetos, estes podem ter causas como as que temos vindo

a sumariar, e sobretudo combinações de causas muito distintas. Para além disso, os próprios trajetos de contra tendência são distintos do ponto de vista escolar (linearidade do percursos; prestígio das inserções escolares; nível de performance escolar; tipo de projeto escolar) e isso deve ser trazido para a análise.

Roldão (2015) identifica, a partir da análise de 20 entrevistas biográficas, cinco perfis de trajetos de contra tendência de jovens afrodescendentes. Por um lado, os perfis de maior li- nearidade, associados a condições materiais e de partida relativamente mais favoráveis, assim como a estratégias familiares mais focadas na escola: i) “projetos de evitamento da exclusão”, ii) “projetos de reascensão social” e iii) “socialização inicial de dupla-referenciação”.

Por outro, os perfis de maior descontinuidade do percurso escolar, marcados pela reconstru- ção em idade mais avançada do projeto escolar. Estes percursos tendem a estar associados a condições materiais de grande precariedade e, pelas maiores dificuldades de acompa- nhamento por parte dos pais. Estes percursos são, de certa forma, mais dependentes da escola (da relação com os professores; do tipo de turmas e escolas onde são colocados; dos projetos e ofertas educativas) e de outros contextos sociais (contextos de trabalho; con- textos associativos) para a construção do seu percurso: iv) “rutura biográfica e reconstrução ‘desencantada’ do projeto escolar” e v) “contextos de reconstrução tardia de um sentido para a vida na escola”.

A capacidade de agenciamento dos jovens em trajetos de contra tendência é evidente nessa pesquisa, nuns casos desde tenra idade e ligada a um trabalho intenso de ajustamento às exi- gências da escola; noutros casos essa capacidade sobressai mais tardiamente e remete para uma reconstrução dos projetos de futuro e retorno à escola já em idade mais avançada. Contu- do, esse “potencial agencial” só opera em termos efetivos quando se combinam determinadas condições que escapam muitas vezes “à vontade” dos indivíduos.

Noções como a de resiliência, que por vezes são associadas a estes trajetos, devem ser usadas com cautela no debate sobre as desigualdades sociais na escola, sob pena de evapo- ração da dimensão desigualdade e conflito de poder entre grupos sociais distintos. Não me-

nosprezando as “qualidades” pessoais necessárias à construção destes trajetos, é necessário considerar criticamente o conceito de resiliência: i) pela arbitrariedade que tem implícita (o que é ou quem define o que é socialmente aceitável ou positivo?); pela hierarquização que sugere (entre aqueles que perante a adversidade “sucumbem” e os que as “superam”) e “na- turalização”/ “psicologização” das desigualdades (que é uma forma poderosa de legitimação, das desigualdades).

8 Um desses marcos é a instituição, a partir da década de 40 do século XX, de casas para estudantes provenientes das colónias portu- guesas que culminou com a sua fusão, em 1944 e por iniciativa estatal, na Casa dos Estudantes do Império (com delegações em Lisboa, Coimbra e Porto) (Castelo, 1997; Fa- ria, 2009). Esse espaço seria encerrado em 1955 por serem consideradas subversivas

CAPÍTULO 2.

O LUGAR DA EDUCAÇÃO E DO ENSINO SUPERIOR