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CAPÍTULO 1 ALTERNATIVAS TEÓRICAS E O LOCK-IN TECNOLÓGICO

1.2 O Lock-in do Carbono e a Necessidade de Descarbonização

1.2.1 Entendendo a Sociedade do Hidrocarboneto

Segundo Unruh (2000), o problema climático que o ser humano enfrenta atualmente tem suas raízes no padrão de produção e consumo dominantes no sistema capitalista. A mudança climática tem sua origem – especialmente em países industrializados, mas cada vez mais também na periferia do sistema – na busca pela produção de bens e

serviços para suprir um determinado padrão de consumo, através de tecnologias e sistemas baseados em energia fóssil. As fontes primárias de energia que poluem o meio-ambiente através dos gases do efeito estufa estão presentes nos principais setores dos países desenvolvidos: transporte, eletricidade, indústria e construção. Esses setores, por sua vez, fazem frente às necessidades de consumo da sociedade através da locomoção, aquecimento, luz, abrigo, entre outros (UNRUH, 2000, 2002). A montagem da dependência da sociedade para com os combustíveis fósseis, especialmente o petróleo, tem raízes históricas profundas, ligadas a três grandes temas subjacentes: i) a ascensão e desenvolvimento do capitalismo e dos negócios modernos; ii) o petróleo como produto intimamente relacionado às estratégias nacionais, no poder e nas políticas globais (desenvolvimento, militar, segurança energética, etc.); iii) “sociedade do hidrocarboneto” ou “homem hidrocarboneto” criados a partir do motor de combustão interna, levando a sociedade industrial a depender de um novo combustível e gerando uma nova civilização (YERGIN, 2010, p. 13).

A maneira como a Primeira Revolução Industrial transformou a vida do homem ocidental não tem precedente. Em um intervalo de duas gerações, a revolução iniciada na Inglaterra no final do século XVIII mudou completamente a relação do ocidente com a sua sociedade, com o mundo e com o meio-ambiente. Profundas transformações tecnológicas inter-relacionadas foram realizadas como a substituição da habilidade humana pelas máquinas, das matérias-primas vegetais e/ou animais por minerais e, especialmente, das fontes animadas de energia – animais e homens – por fontes inanimadas que foram capazes de transformar calor em trabalho (PINTO JUNIOR et al., 2007). Essas mudanças-chave promovidas pela Revolução Industrial desencadearam uma reorganização do trabalho, da produção, do consumo e grande parte dessas transformações se deram mediante a capacidade de máquinas, como a máquina à vapor, em transformar calor em energia de forma rápida e intensa. O desenvolvimento da indústria mecanizada e a emergência de grandes fábricas só poderia ser possível mediante a presença de uma fonte de energia mais vigorosa, “independente” das intempéries da natureza e, de início, aparentemente ilimitada, e essa nova força foi encontrada no carvão mineral e altamente explorada até o século XX (LANDES, 2005).

Assim, a partir da Revolução Industrial, o progresso, o desenvolvimento econômico e o bem-estar social passaram a ser positivamente relacionados ao acesso à energia, sendo o contrário também verdadeiro. Com o ingresso do petróleo na matriz

energética mundial, essa dependência se tornou ainda maior e energia passou a ser origem de conflitos políticos ainda maiores.

O “óleo de pedra”, como era chamado o petróleo no início de sua exploração, é um velho conhecido do ser humano. Segundo Yergin (2010), há relatos da utilização do betume (um produto do petróleo) a.C. na região do Oriente Médio, relatos de conhecimentos árabes milenares sobre o refino do petróleo. Na história mais recente, o óleo era usado para fins medicinais entre povos indígenas norte-americanos e antes de dominar o mercado de iluminação em meados do século XVII, era usado de maneira rudimentar na Galícia e na Romênia para a fabricação de querosene.

A exploração e comercialização do petróleo para a fabricação do querosene nas terras norte-americanas, mais precisamente no Estado da Pensilvânia é considerado o momento de criação da indústria do petróleo norte-americano e posteriormente mundial. Segundo Yergin (2010), a necessidade de encontrar petróleo de forma abundante estava relacionada à necessidade crescente da industrialização e urbanização que exigia a presença de um iluminante e lubrificante mais acessível e mais seguro que a gordura animal e que o “óleo de carvão”.

É fato que o carvão já tinha proporcionado uma profunda transformação na matriz energética da sociedade industrial no século XX, entretanto, seu uso ocasionava diversos inconvenientes que dificilmente possibilitariam sua difusão da mesma forma que o petróleo faria posteriormente.20 O petróleo ganhou mercado em meados do século XIX com a descoberta de grandes jazidas no nordeste dos Estados Unidos momento em que houve a difusão do óleo de querosene para lampiões para a iluminação, um produto de seu refino. O preço do querosene desbancou os concorrentes e se tornou dominante no mercado do norte americano tendo sido favorecido também pela Guerra Civil (1861-1865) que cessou o transporte de um concorrente bastante acessível, o canfeno.

O potencial de disponibilidade do petróleo levaria milhares de aventureiros a se direcionaram especialmente para o Estado da Pensilvânia, mas dentre eles se destacaria John D. Rockfeller, o nome mais importante da indústria petroleira. Com seu plano de monopolizar o mercado desde seus fornecedores até a comercialização em um contexto histórico bastante favorável de criação de mercado com a abertura do oeste americano, Rockfeller foi um dos pioneiros da grande empresa moderna,

20 Yergin (2010) afirma que além da poluição extrema causada pela queima de carvão que impossibilitava a vida

nas cidades, o carvão era fonte de grandes problemas sindicais, sua extração era dificultosa e sua potencialidade energética muito inferior ao petróleo.

a Standard Oil [como veio a se chamar a grande empresa exploradora e refinadora de petróleo após se tornar uma sociedade por ações], pretendendo ter a hegemonia e o total controle sobre o comércio mundial de petróleo, evoluiu para uma empresa global complexa que levava iluminação barata [...] para os lugares mais remotos da terra. (YERGIN, 2010, p. 37).

O grande salto de Rockfeller, com a ajuda de seu sócio Henry Flagler, foi substituir o antigo sistema de distribuição da indústria por sistema vertical próprio que permitiu economias de escala gigantescas para a empresa. Em 1879, a Standard Oil controlava 90% da capacidade de refino dos EUA, e também tinha sob seu controle os oleodutos e os sistemas de coleta, além das ferrovias que faziam o transporte. A sua grandiosidade e seus instrumentos suspeitos levantaram a ira dos demais produtores, população americana e do governo; Rockfeller e a Standand Oil foram alvo de diversos processos judiciais, especialmente pela administração de Theodore Roosevelt que promoveu uma verdadeira “caça aos trustes”, o que sucumbiu no desmembramento da empresa em 1911 (YERGIN, 2010).21

O final do século XIX e início do século XX trariam consigo uma grande perda, mas a abertura da maior oportunidade para a indústria petrolífera: o advento da eletricidade tomaria completamente o lugar do querosene no mercado de iluminação, mas o motor à combustão interna daria a essa indústria uma nova e grande oportunidade.

No início deste novo século, a eletricidade virou o paradigma da iluminação nos Estado Unidos e na Europa, muito mais prático e seguro que o óleo a querosene. A indústria petroleira via seu principal mercado consumidor sendo “roubado” pela invenção de Thomas Edison. À época, a gasolina era um subproduto do petróleo bastante inferior sem valor de mercado, além disso, o motor a combustão interna estava muito longe de concorrer com demais alternativas de propulsão automotiva, era um meio de transporte barulhento, nocivo e não muito confiável. Segundo Mowery e Rosenberg (2005), em 1900 os automóveis movidos à gasolina eram bastante inferiores em números do que os carros elétricos e movidos à vapor nos EUA. Todavia, já em 1905 se tornava a tecnologia dominante. Essa dominância no país possibilitaria sua dominância mundial posteriormente.

Vários fatores pareciam estar a favor do automóvel de combustão interna. Um dos principais era a presença abundante de petróleo barato e o significativo aprendizado no refino,

21 Em 1911, após uma intensa batalha judicial em que a Suprema Corte Americana decidira pela dissolução da

Standard Oil, a empresa foi dividida em várias companhias. A principal delas era a Exxon, que correspondia a

antiga Standard Oil of New Jersey, a segunda maior a Mobil Oil que correspondia a antiga Standard Oil of New

York e a terceira a Chevron que era a antiga Standard Oil of California, entre outras que continuaram dominando

transporte e comercialização dos derivados do petróleo auferido pelas empresas no Nordeste americano. A indústria petroleira soube aproveitar a abertura de novas portas enquanto a porta da iluminação se fechava, estimulando uma transformação da imagem do automóvel à gasolina.22

Além da disponibilidade facilitada de combustível, outros fatores fundamentais influenciaram o sucesso da nova tecnologia. Na segunda metade do século XIX, os EUA desenvolveram uma densa produção de maquinaria especializada no trato com metais. A produção de máquinas e ferramentas metálicas era essencial para o desenvolvimento de outras indústrias importantes como a maquinaria têxtil, equipamentos ferroviários, armas de fogo, equipamentos agrícolas, máquinas de costura e bicicletas. A demanda crescente de tais produtos industriais, especialmente de bicicletas permitiu o aprimoramento dos processos e produtos e permitiu que o país se destacasse na produção de baixo custo de produtos finais padronizados. A bicicleta, inclusive, que sofreu quedas drásticas com a ascensão da indústria automobilística, teve uma contribuição maior do que somente o refino de insumos, mas “emprestou” seus profissionais a nova indústria e, literalmente abriu caminho para os carros através da infraestrutura deixada pela demanda dos ciclistas por pavimentação (MOWERY; ROSEMBERG, 2005, p. 65).

Outro fator fundamental para a dominância do motor à combustão interna movido à gasolina foi o melhoramento drástico dos métodos de sua produção. Henry Ford introduziu à indústria automobilística um sistema de produção em massa pautado na planificação da produção e fragmentação do trabalho, o modelo “fordista” que dominaria o sistema de produção capitalista no segundo pós-guerra, sendo aplicado para uma grande gama de produtos.

Essa “nova tecnologia de produção” permitiu uma linha de produção mais rápida e mais precisa que a dos concorrentes e em 1908, um carro relativamente barato foi lançado por Ford no mercado e se tornaria um novo bem de consumo durável das massas: o Modelo T. Os EUA se tornaram rapidamente os maiores produtores mundiais de automóveis e pós a I Guerra Mundial o modelo fordista de produção foi aplicado a novos bens de consumo da indústria elétrica americana – motores, máquinas de lavar, geladeiras, telefones, rádios – produtos que revolucionaram o estilo de vida americano (MOWERY; ROSEMBERG, 2005).

22 A falta da confiabilidade no carro propelido à gasolina foi paulatinamente sendo combatido. Yergin (2010)

afirma que o marco para o fim do questionamento a esses veículos foi o terremoto de São Francisco em 1906. Nesse episódio, 200 carros particulares foram solicitados e ajudaram no socorro e assistência das vítimas, abastecidos por 15 mil galões de gasolina doados pela Standard Oil.

Por último e não menos importante, o automóvel se converteu em um símbolo de

status, “o símbolo da idade moderna” segundo Yergin (2010) e foi fundamental para a

construção do American way of life, vendido para o resto do mundo no pós-guerra como o novo ideal de vida da sociedade.

O motor a combustão interna não se limitou somente ao meio de transporte individual, mas a tecnologia também possibilitou que caminhões, ônibus e outros veículos comerciais e equipamentos agrícolas se tornassem acessíveis, bem como possibilitou o surgimento de aviões para fins comerciais (MOWERY; ROSEMBERG, 2005).

Cabe ressaltar ainda que a indústria do petróleo não revolucionou somente o meio de transporte, mas no pós-guerra foi responsável por uma profunda mudança tecnológica na indústria de produtos químicos. A indústria petroquímica conduziu o desenvolvimento de novos produtos e processos a partir do processamento de produtos químicos baseados em petróleo, destacando-se a produção de plástico que passou a substituir materiais tradicionais (MOWERY; ROSEMBERG, 2005).

No século XX, o petróleo foi determinante para as vitórias e as derrotas das duas Guerras Mundiais e ainda é central em conflitos contemporâneos; foi pilar principal da urbanização; esteve no centro do modo de produção capitalista do pós-guerra, na reconstrução dos países europeus e nas tentativas de emancipação produtiva e tecnológica da periferia. E mais do que isso, criou um novo estilo de vida, uma nova era chamada por Yergin de a “Era do Hidrocarboneto”.

A tabela 1 exemplifica um pouco esse movimento histórico que estamos descrevendo. É possível observar que a emissão de 𝐶𝑂2 no século XX já estava bastante interligada aos altos e baixos momentos econômicos e políticos. Em 1935, com a grande crise de 1930, apresenta-se uma queda de 2% na emissão de 𝐶𝑂2 global, com grande recuperação no entre guerras (26%) e nova queda em 1945 (-17%) como consequência do fim da II Guerra Mundial que diminuiu a demanda por combustíveis em gás, líquidos e sólidos quando comparados com o ano de 1943 de plena guerra. Também, é possível perceber o alto crescimento das emissões totais (40%) de 1950 em relação a 1945 e a manutenção de um expressivo crescimento até a década de 1960. Esse momento é marcado pela recuperação do pós-guerra e pelo desenvolvimento dos países europeus a convite dos Estados Unidos, na vigência da Guerra-fria que teve como grande aliado o preço extremamente baixo do petróleo. É o período de “exportação” do padrão fordista americano para o resto do mundo e representa

a inflexão nos padrões de produção e consumo mundiais que deram origem à “Sociedade do Hidrocarboneto”.

Muitos governos incentivavam sua utilização para atingir a pujança no crescimento econômico, bem como atingir os objetivos sociais e ambientais [...] todo país exportador queria vender volumes cada vez maiores de seu petróleo a fim de obter rendimentos cada vez mais altos [...] Todos os números – produção, reservas e consumo – apontavam para uma só realidade: escalas cada vez mais altas” (YERGIN, 2010, p. 611).

Tabela 1-Evolução da emissão de CO2 global, 1920 -1965

Milhões de toneladas

Anos Total Gás Líquidos Sólidos Produção de

cimento Outros 1920 932 11 78 843 - - 1925 975 17 116 842 - - 1930 1.053 28 152 862 10 - 1935 1.027 30 176 811 9 - 1940 1.299 42 229 1.017 11 - 1943 (1) 1.391 50 239 1.092 10 - 1945 1.160 59 275 820 7 - 1950 1.630 97 423 1.070 18 23 1955 2.042 150 625 1.208 30 31 1960 2.569 227 849 1.410 43 39 1965 3.130 337 1.219 1.460 59 55

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do Carbon Dioxide Information Analysis Center (CDIAC). (1) Este ano foi adicionado para demonstrar melhor os efeitos da guerra sobre a emissão de CO2.

O petróleo representava uma “batalha” que envolvia poder e vaidade entre os países. O consumo de energia mundial triplicou de 1949 a 1972 – período no qual o consumo de petróleo contribuiu com a maior parte, quintuplicando sua participação relativa. O rápido crescimento no pós-guerra estimulado pelos EUA se alimentou do petróleo e o petróleo dele. A vida do homem contemporâneo foi totalmente permeada pela sua produção.

Ele [o petróleo] é o sangue vital das comunidades suburbanas. É (junto com o gás natural) o componente fundamental da fertilização da qual depende a agricultura; possibilita o transporte de alimentos para as megacidades do mundo, totalmente não autossuficientes. Também fornece os plásticos e os elementos químicos, que são tijolos e a argamassa da civilização contemporânea, uma civilização que desmoronaria caso os poços de petróleo secassem subitamente (YERGIN, 2010, p. 15).

A complexidade do lock-in do carbono se dá, portanto, porque o petróleo é o “sangue vital” da sociedade contemporânea. É importante ressaltar o fato do modo de vida pautado no consumo intensivo em combustíveis fósseis ser uma construção. Mediante a necessidade latente da redução dos gases do efeito-estufa, entender que o modo de vida contemporâneo é uma construção e não algo natural abre caminhos para a sua transformação. Ao mesmo tempo, traz à análise a dificuldade em pensar a descarbonização além dos fatores técnicos, visto que a “Sociedade do Hidrocarboneto” está totalmente ligada a mecanismos de poder difíceis de serem rompidos.