• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 COMO PROMOVER A EMERGÊNCIA DE ALTERNATIVAS DE BAIXO-CARBONO?

2.2 O Estado e o Sistema Nacional de Inovação

No século XIX, Alexander Hamilton nos EUA e Friedrich List na Alemanha reconheceram a importância da condução do Estado das estruturas necessárias ao desenvolvimento nacional por meio do desenvolvimento industrial e tecnológico. List (1986), ao buscar as possibilidades de desenvolvimento da Alemanha atrasada constatou que o processo de desenvolvimento requeria não só a proteção das empresas infantes, mas uma gama de políticas desenhadas e direcionadas para permitir ou acelerar a industrialização e o crescimento econômico, estrutura institucional que ele denominou de “sistema nacional de economia política”, um precursor do “sistema nacional de inovação”.

Por sistema nacional de inovação se entende “a rede de instituições nos setores público e privado cujas atividades e interações iniciam, importam, modificam e difundem novas tecnologias” (FREEMAN, 1995). Os três principais agentes que compões esse sistema são: 1) o Estado: que é responsável por desenhar e aplicar políticas públicas, especialmente de ciência e tecnologia; 2) as universidades e institutos de pesquisa: responsáveis por realizar pesquisas e criar conhecimento; 3) as empresas: que são responsáveis por realizar investimentos para transformar o conhecimento em produto.

Segundo Jacobsson e Johnson (2000) os sistemas nacionais de inovação têm como principais funções:

1) Criar e difundir “novo” conhecimento;

2) Guiar a direção do processo de demanda e oferta entre usuários e ofertantes das tecnologias, ou seja, influenciar a direção na qual os atores empregam seus recursos;

3) Ofertar recursos, incluindo capital, competências e outros;

4) Criar externalidades econômicas através da troca de informações, conhecimentos (aprendizado) e concepções;

5) Facilitar a formação de mercados.

Assim, esses três agentes e suas interações são fundamentais para realizar essas funções e para as diferentes composições dos diversos sistemas. Um sistema nacional de

inovação maduro é aquele capaz de produzir um ambiente favorável ao desenvolvimento e florescimento de inovações e para isso, o Estado tem um papel fundamental. O Estado reúne os recursos e a “paciência” necessária para permitir que atividades científicas de pesquisa e desenvolvimento – que envolvem longos períodos de pesquisa e se caracterizam por um processo de ‘tentativa e erro’ – tenham tempo suficiente para amadurecer e produzir conhecimento para a sociedade. Por isso, o papel das políticas públicas em apoiar o desenvolvimento científico é tão importante.

Dentro do sistema nacional de inovação, a relação Estado-empresa é importante porque o Estado deve garantir um ambiente macroeconômico favorável aos novos investimentos. Além disso, ele tem o papel essencial de risk-taker em novas atividades consideradas muito arriscadas e para as quais a iniciativa privada não estaria disposta a se inserir até o surgimento de expectativas mais favoráveis (MAZZUCATTO, 2011).

A história traz diversos elementos que confirmam a presença da mão-visível do Estado em situações de grandes interesses nacionais. Grande parte dos países desenvolvidos teve um Estado protagonista no desenvolvimento de sistemas nacionais capazes de superar barreiras tecnológicas aparentemente “inquebráveis”, com exemplos bastante significativos nos EUA, Alemanha e Japão, bem como nas experiências de industrialização recente dos países asiáticos.

Não se nega aqui a importância da iniciativa privada, ao contrário, acredita-se que é preciso haver uma forte interação público-privada para desenvolvimento de projetos tecnológicos, conjugando um sistema simbiótico de inovação em que o setor privado trabalhe com o Estado e reconheça sua importância, ao invés de um sistema parasitário no qual a iniciativa privada se aproveita dos benefícios do Estado e alimenta um discurso de repúdio ao mesmo (MAZZUCATTO, 2011).46

É preciso, portanto, reconhecer que a Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) empregado pelas empresas é uma parte importante das transformações tecnológicas, mas não é seu único determinante: o P&D empresarial está embebido em estruturas muito maiores determinadas pela configuração do sistema nacional de inovação do qual faz parte.

46 Mazzucato reafirma que é preciso saber qual a contribuição do setor privado e do setor público. Existe um

discurso dominante de que o setor público pode, no máximo, incentivar inovações que seriam realizadas somente pelo setor privado. Todavia, segundo a autora, essa visão ignora os inúmeros exemplos históricos em que o a força principal veio no Estado. A falta de entendimento desses fenômenos afeta as parcerias público-privadas que podem ocasionar uma relação parasitária entre o Estado e o setor privado tornando os sistemas de inovações menos eficientes (MAZZUCATO, 2011, p. 256).

A partir desses elementos, é interessante elencar alguns exemplos históricos da importância de um sistema nacional de inovação para a superação de barreiras tecnológicas e institucionais.

Os Estados Unidos têm uma história marcada pela presença de um Estado líder de projetos de desenvolvimento, desempenhando um papel preponderante no desenvolvimento nacional tecnológico, desde a doação de terras para empresas privadas, construção de rodovias até suporte financeiro à pesquisa agrícola no século XX, mobilização de recursos ao desenvolvimento e auxílio à indústria aeronáutica, espacial, entre outras. A P&D pública estadunidense foi ainda responsável pelo financiamento da ciência pura, da indústria farmacêutica e mais recentemente da nanotecnologia, biotecnologia e energia limpa (MAZZUCATO, 2011).

Mowery e Rosemberg (2005) destacam as mudanças estruturais do sistema de P&D americano que possibilitaram a institucionalização da inovação no país no século XX. Os desenvolvimentos em várias áreas do conhecimento são atribuídos à rápida exploração das firmas norte-americanas da “invenção da arte de inventar”, mas também aos papéis fundamentais da indústria, do governo e das universidades como financiadoras e realizadoras do P&D.

Os autores ressaltam que o papel das despesas federais nos períodos de guerra e fora deles, alocando recursos e pesquisa através de suas agências e departamentos, foi de extrema importância. O governo americano promoveu, pós II Guerra Mundial, massivos investimentos públicos em instituições públicas de ensino superior. De 1953 a 1996, a pesquisa básica realizada por universidades e centros de P&D financiados pelo governo saiu de um terço para 61% do total (MOWERY; ROSEMBERG, 2005, p. 43).

Um dos grandes exemplos recentes da importância do Estado norte-americano na formação do sistema nacional de inovação é o Silicon Valley, que se beneficiou do surgimento da internet, desenvolvida pelo Departamento de Defesa americano (ARPANET) no período da guerra-fria. O conjunto de gastos federais incentivaram parcerias universidade-indústria e serviram de demanda para um conjunto de novas tecnologias.47

47 Mazzucato (2011) expõe quatro grandes iniciativas de ação do Estado como empreendedor inovador nos Estados Unidos: DARPA (Agência de Projetos de Pesquisas Avançadas), que além de financiar a ciência básica, direciona recursos para áreas específicas, cria novas oportunidades, intermedia a relação entre agentes públicos e privados e facilita a comercialização de tecnologias desenvolvidas. Essa agência teve papel fundamental na indústria de informática nos anos 1960 e 1970; SBIR (Programa de Pesquisa para Inovação em Pequenas Empresas), um decreto de 1982 que exigia que as agências do governo que auferiam de grandes recursos para pesquisa, destinassem uma parte desses recursos para apoio à pequenas empresas; a Orphan Drug Iniciative (1983), que incluía incentivos fiscais, subsídios clínicos e também em Pesquisa e Desenvolvimento, bem como

Dos grandes exemplos que temos da atuação do Estado podemos citar também o caso japonês como um dos mais impressionantes do século XX. Vários estudiosos atribuem o sucesso de desenvolvimento japonês a três pilares: ao Ministério da Indústria e Comércio Internacional (MICI), à academia e ao P&D empresarial (CHANG, 2013; EVANS, 2004 FREEMAN, 1995). O sucesso do Japão em meados do século XX não está somente ligado à quantidade impressionante de P&D empregado pelas empresas e centros de pesquisa japoneses,48 mas à orientação desse P&D dada pelo Estado caracterizando um sistema nacional de inovação voltado para o desenvolvimento de setores importantes, como a microeletrônica.

Segundo Freeman (1995), um exemplo de que fatores institucionais influenciam inovação, sua difusão e ganhos de produtividade tanto quanto o montante de P&D (ou mais) vem da comparação dos sistemas nacionais de inovação japonês e soviético nos anos 1970. Enquanto a relação de Despesas Internas Brutas em P&D em relação a Produto Interno Bruto (PIB) soviético era de 4% (nível considerado bastante alto), essa relação para o Japão era de 2,5%. Isso não garantia à União Soviética um crescimento tecnológico sustentável no longo- prazo. Essa diferença seria explicada, segundo o autor, por fatores institucionais como: direcionamento da P&D pelo Estado; nível de integração desse P&D com a produção e importação de tecnologia no nível da firma; relações entre os produtores e usuários das tecnologias, bem como das empresas subcontratadas; do grau de incentivo para as firmas inovarem, não só tecnologicamente, mas em gerenciamento e em pessoal e a experiência proveniente da competição em mercados internacionais.

Vários autores destacam também o papel relevante das políticas públicas na transformação de economias de industrialização recente (EIR’s) – Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong Kong – moldando o processo de progresso tecnológico desses países. De maneira geral eles contaram com amplos incentivos do governo como proteção de indústrias específicas e direcionamento de investimentos. Especialmente em relação à Coréia do Sul, o governo foi responsável por grande parte das decisões de investimento, pelo controle de mercado e proteção que favoreceram firmas estratégicas, deixando “os preços relativos no

direitos de comercialização para medicamentos desenvolvidos para o tratamento de doenças raras; por fim, a

Nanotechnology Iniciative, criada no final da década de 1990, foi uma atuação de várias agências

governamentais para a dinamização o que se esperava ser a grande revolução tecnológica após a internet, a nanotecnologia.

48 Segundo Freeman (1995), o salto em P&D dado pelo Japão em relação aos EUA foi bastante significativo. Em

1970, o Japão ultrapassou os EUA em despesas industriais em P&D como proporção do produto industrial civil líquido, e o total de despesas internas em P&D japonês em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) ultrapassou o dos EUA em 1980.

lugar errado”, política que possibilitou o desenvolvimento tecnológico do país (CHANG, 2013; KIM; NELSON, 2005 AMSDEN, 1989).

O papel do Estado, especialmente no que tange à inovação, tem se mostrado muito mais importante do que querem os economistas, políticos e especialistas advogados do livre-mercado. A história apresenta em muitos momentos um “Estado empreendedor”, que assume a etapa de alto risco e incerteza dos novos investimentos, anteriormente inclusive à ação da iniciativa privada. As áreas de mais alto risco, intensivas em tecnologia e capital, são tipicamente evitadas pela iniciativa privada – especialmente em suas etapas mais iniciais de desenvolvimento – sendo necessário o financiamento e a visão de longo prazo do setor público (MAZZUCATTO, 2011).

O tipo de Estado presente nos exemplos apresentados de rompimento de barreiras tecnológicas, especialmente no século XX, é denominado pelos autores citados de “Estado Desenvolvimentista”, nomenclatura responsável há décadas por muitos debates e controvérsias e cujo entendimento e definição passam pela necessidade latente de atualização às demandas sociais e econômicas contemporâneas.49 O termo “Estado Desenvolvimentista” não é só usado para denominar o tipo de Estado presente na industrialização dos países centrais, mas especialmente para indicar o “mecanismo essencial” que reúne as políticas necessárias para a superação do subdesenvolvimento na periferia do sistema (FONSECA, 2014, p. 4). Outra nomenclatura mais contemporânea e mais voltada à inovação é o “Estado Empreendedor” cunhado por Mazzucato (2011), utilizado pela autora para caracterizar um tipo de Estado que não somente tem a disposição de liderar iniciativas de alto risco (como a transição energética), mas que mantém o apoio a tecnologias novas e transitórias até que a indústria apossa “amadurecer” e competir com as tecnologias existentes (como os combustíveis fósseis).

O Estado desenvolvimentista ou empreendedor deve ser capaz, em linhas gerais, de i) coordenar a ação dos agentes privados para viabilizar financiamento e permitir a realização de investimentos; ii) deve ter “visão de futuro” ou uma “estratégia de desenvolvimento nacional”; iii) deve construir instituições com intuito de promover um ambiente favorável ao desenvolvimento e sua manutenção através de “veículos institucionais” e iv) deve saber administrar conflitos que estão na essência do processo de desenvolvimento por sempre envolver ganhadores e perdedores (CHANG, 1999).

Mais especificamente, segundo Fonseca (2014), um possível núcleo comum das diversas definições de “desenvolvimentismo” ou de um “Estado desenvolvimentista” passa pela existência de um projeto nacional, pela intervenção consciente e deliberada do Estado com o intuito de atingir esse projeto nacional e pela industrialização como caminho para acelerar esse processo por meio do aumento da produtividade e difusão do progresso técnico.

O presente trabalho empresta desse núcleo comum especialmente as duas primeiras características e requalifica a terceira. Acredita-se que, assim como o desenho de um projeto nacional bem delineado conduzido pela intervenção do Estado foi fundamental para promover as transformações produtivas e/ou tecnológicas necessárias para a promoção do desenvolvimento em economias avançadas, a promoção de um desenvolvimento sustentável que é um “desenvolvimento que satisfaz as necessidades da geração corrente sem comprometer a capacidade das futuras gerações a fazer o mesmo” (WCED, 1987, p. 47) exigirá essas condições. Exigirá porque o desenvolvimento sustentável, que tem como condição sine qua non a descarbonização da economia, tem pela frente grandes barreiras construídas pela queima de combustíveis fósseis; barreiras perpetuadas pelos retornos crescentes envolvidos com essas atividades e que não desaparecerão no tempo necessário pelas mãos do business as usual. É preciso, portanto, a intervenção do Estado não somente guiando investimentos em direção à descarbonização, mas promovendo um “plano nacional” em que esse objetivo faça parte de um projeto de desenvolvimento econômico.

Ainda é preciso qualificar que esse desenvolvimento sustentável que está sendo considerado não está de acordo com o padrão de desenvolvimento correntemente presente nas economias avançadas e muitas vezes vislumbrado pelos países em desenvolvimento. Esse padrão de desenvolvimento atual foi construído e continua sendo sob o uso intensivo de combustíveis fósseis e é preciso lembrar que as experiências consideradas “desenvolvimentistas” não se preocuparam muito com um desenvolvimento sustentável no sentido ambiental. Por isso, a terceira característica, “a industrialização” precisa ser requalificada (questão discutida na seção 2.3). Assim, entender o papel do Estado na transição energética para a descarbonização passa também por rediscutir qual o desenvolvimento desejado.

Debater qual é a forma de desenvolvimento desejável, todavia, não é o objetivo principal desse trabalho, mas é impossível não sinalizar algumas discussões presentes. Como afirmado, em 1972, Meadows et al. apresentavam ao mundo um trabalho projetivo, The

padrão de crescimento corrente. Segundo esse trabalho, a escassez de recursos naturais e a degradação do meio ambiente seriam os principais limitadores do crescimento econômico e os avanços tecnológicos não seriam capazes de frear as pressões ambientais decorrentes da ação humana (CORAZZA, 2005). Esse trabalho deu origem à uma polarização do debate entre otimistas e pessimistas tecnológicos.

Limits to Growth trouxe à tona a discussão acerca do meio ambiente, mas sofreu,

é claro, várias críticas à construção de seu modelo dado que a principal conclusão era a necessidade de crescimento zero. Na época, a discussão foi muito direcionada pelas respostas dos pesquisadores da Science Policy Research Unit (SPRU) especialmente representada por Christofher Freeman que frisavam a possibilidade de escolhas inteligentes para evitar o cenário catastrófico do modelo de Meadows et al. através do avanço tecnológico. O modelo do MIT suscitou, como discutido, críticas de pensadores latino-americanos como Herrera et al. (1976) que apontavam que as hipóteses do modelo World 3 tinham consequências muito graves para os países em desenvolvimento, dado que sua análise não considerava que o principal problema da humanidade era a presença de distúrbios sociopolíticos que levavam a distribuição desigual do poder entre e dentro das nações, prejudicando especialmente parcela mais pobre da população e não os limites de recursos

Em 1973, em meio ao alvoroço do debate ambientalista, Furtado (1974) também deu sua contribuição, afirmando em O mito do desenvolvimento econômico que o desenvolvimento econômico nos moldes dos países avançados não podia ser uma realidade para os países do Terceiro Mundo e que a generalização desse padrão, como supunha a equipe do MIT era fisicamente impossível. Mais preocupado em discutir o subdesenvolvimento do que a questão ambiental, Furtado apresenta uma de suas mais interessantes teses: o desenvolvimento econômico é um mito, pois existe um limite de recursos naturais não renováveis que impede que a população da periferia do mundo tenha o mesmo padrão produtivo e de consumo do centro. Esse limite físico real impediria que catástrofes ambientais – como as previstas em Limits to Growth – acontecessem.

A partir da tese de Furtado, podem-se fazer duas constatações principais: i) a afirmação de Furtado quanto à impossibilidade do desenvolvimento nos moldes das economias avançadas para todo o resto do globo continua sendo uma verdade e ii) não só o esse modelo de desenvolvimento não é possível para todos, como as evidências hoje presentes demonstram que esse padrão não será mais possível como um todo, como já apresentado anteriormente.

Mediante essas conclusões, entender como possibilitar a melhora dos padrões de vida os países menos desenvolvidos aliando a questão ambiental é um grande desafio.

A resposta não é facilmente encontrada e parece ser mais difícil de ser respondida do que nos anos 1970. Saes e Miyamoto (2012) afirmam que a polarização presente nos 1970 entre otimistas e pessimistas tecnológicos se apresenta hoje menor do que antes, isso porque há a percepção de que as que as questões são muito mais complexas do que ambos os grupos imaginavam. As divergências entre a SPRU e o MIT continuam, mas os pesquisadores de Sussex tem cada vez mais percebido a necessidade do aprofundamento das questões ambientais e de um novo paradigma que os solucione e os pesquisadores do MIT têm admitido que se posicionar contra ou a favor do crescimento econômico não é uma postura suficiente para evitar a catástrofe que seus modelos preveem, já que a complexidade da questão exige soluções mais elaboradas e as desigualdades substanciais entre os países do globo não permitem que somente o controle de índices de crescimento ou eficiência possam ser apresentados como resposta.

2.3 O Sistema de Inovação Sustentável e o Sistema Político de Transição Energética