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Para contar aos professores e demais trabalhadores sobre “uma aposta”... encontramos uma grande escola. Três andares. Cinza, predominante. Algumas cores. Rampas. Escadarias. Rumores. Fatigados corpos cansados.

Era num cair da noite. Troca de turnos. Pegaríamos vidas que passam. Falaríamos sobre um convite distinto, inédito: compor, aquela escola, uma experiência-cosate. A escola foi definida, em outro espaço, em outra reunião, em momento “anterior”, com muito debate, que ela seria Projeto- piloto. Que curioso! Elegemos, em outro locus, a escola como Projeto-piloto das Cosates. Aquela que encontrávamos ali, agora, diante de nossos olhos, parecia muito mais opaca.

Fomos recebidos pela Direção. A certa altura, uma impressão: seria “a escola da Direção” a que definiu-se como Projeto-piloto? Teriam, as vidas que passam, querido ouvir aquela aposta da qual falávamos? Teriam debatido calorosamente sobre o convite a se fazer naquela noite?

(Com)vocamos.14

Dissemos o que nos havia levado a construir tudo aquilo. A sustentar tamanha aposta.

Nos olhares, desviantes, constatávamos uma esteira: conversar é difícil demais, às vezes. Apagar as luzes e continuar sós, embora doloroso, pode ser saída danosa, mas pungente. Por que ficamos tão sós? Tentamos produzir outra voz. A voz é

14 A ideia de que o verbo convocar possa remeter-se a articulações com a vocação e com a luta

(convoca a ação) opera-se na perspectiva de que “criar e fazer criar ganham tonalidades fortes de luta”

(CAIAFA, 2000, p. 59) e de que quando dizemos da aposta numa linguagem poética na composição do que contamos e escrituramos, estamos a indicar conexões a “outros fluxos – sociais, éticos e políticos – indissociáveis dos fluxos da escritura. Certamente não se trata de uma arte engajada no sentido mais comum, partidária, que tomaria o social como objeto. O engajamento aqui é a relação com todos esses fluxos [...] Num sentido forte, a criação começa quando há resistência” (CAIAFA, 2000, p.59).

poderosa, embora nem sempre. Alguns olhares se esticaram em nossa perspectiva. Algumas vozes ressoaram. O convite estava posto.

Foi então que a diretora, que parecia sustentar aquele edifício cinza falou: “Aqui nesta escola, passamos por um assassinato. Um vigilante, há uns cinco anos, foi morto dentro da escola. E, depois disso, muitos processos, inquéritos, mas nem uma pergunta sobre como ficamos. Sabe, que recentemente, é que consegui conversar sobre o acontecimento com uma colega do trabalho. Meu Deus! Como ficamos caladas tanto tempo. E quando falamos disso, era como se tivesse acabado de acontecer. Choramos as duas. Foi muito importante”.

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Os fatos não se remontam, não se revivem da mesma forma. A memória é que é viva. Esta é interpolável. Ela é infinita. Viva e revivível. Recobre os fatos e os transformam em matéria densa, atual, derivada.

“Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois” (BENJAMIN, apud GAGNEBIN, 2014, p. 167).

Habitada por palavras, por incidências, por capítulos inteiros, esta consciência é um corredor com um olho na ponta, vendo passar bichos e sons, um desfile monótono de letras de tango, versos soltos e pedacinhos de rostos e cadernos de notas. Há versos que me caminham por todos os lados, vão-se por um tempo e voltam com mais entusiasmo. São coisas presentes que é necessário levar na mão, na aba do chapéu, na divisão menor da carteira de notas, misturadas com selos e fotos de identidade; são como o animalzinho de Michaux que comia as fechaduras; convém leva-las à mão e de vez em quando deixar que comam alguma coisa, mesmo que sejam as palavras de que são formadas. Desde a noite passada sou percorrido por um verso de Patrick Waldberg: Parc le coeur

cloué sur une ruíne

(“Pelo coração pregado em uma ruína”). CORTÁZAR, 1984, p.116

Às vezes achar um silêncio que converse torna-se necessário na escrevência que não cessa de jorrar-se. É, pois, que a dor e a história, podem ser transmutadas em palavra literária.

É bom que a história seja transmutada em literatura. Principalmente, a história-dor. Assim, ela segue podendo ser ouvida. Testemunhada. Como as palavras de Primo Levi que transformaram os campos de concentração e a experiência da destituição da vida em palavra sóbria, dura, firme, em verso triste, em memória ávida, em ato contra o esquecimento, “como se de repente, um perfume”.

Palavra derramada sobre a noite violentada, sobre a vida nua e adoecida, sobre as recusas e imperativos de morte.

Algo que costure um dizer que não se feche. Que rompa a vontade de sentido único. Uma palavra desenraizada da pragmática, da domesticação. Que fure a “palavra de ordem”. Palavra que fure palavra. A experiência não cabe nas palavras.

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Didi-Huberman (2011) retomando contribuições benjaminianas, afirma que a figura do cronista deseja mostrar que nada está perdido para a história. Ao considerar que a proposição de tempo, mostrada por Benjamin, realça uma temporalidade

O grande cansaço da existência talvez seja apenas esse enorme mal que causamos a nós mesmos com o fim de nos mantermos razoáveis por vinte, quarenta anos, ou mais, ao invés de sermos simplesmente, profundamente, nós mesmos, isto é, imundos, atrozes, absurdos. CÉLINE, apud CORTÁZAR, 1984, p.121.

passante, que como o lampejo, cruza o céu como uma bola de fogo e que,

paradoxalmente, cria uma imagem, um instante de imobilidade, que poderá constituir- se como índice para a história, Didi-Huberman (2011) afirma que aquilo que cai, não

necessariamente desaparece. Pois, o acontecimento indica uma persistência das

coisas decaídas, ou, uma sobrevivência.

Por isso no seu belo ensaio “A sobrevivência dos vaga-lumes”, o autor refere-se a leitura que Agamben (2005) em “Infância e História” realiza do programa benjaminiano, fazendo-lhe um contraponto, pois afirma que a experiência em destruição, não se trata de uma destruição efetuada, mas algo que pode demonstrar mais um pretérito imperfeito. Ou seja, a história cria impressões indestrutíveis, momentos inestimáveis, que sobrevivem, explodindo em surpresas e erguendo a queda à dignidade.

O que nos faz lembrar do “preferiria não” do escrevente de Melville. Uma imagem da qual não consegue o chefe livrar-se, fazendo-o virar o próprio narrador da história.

Isso coloca-nos diante da sobrevivência das imagens, como demonstração de sua imanência fundamental:

Nem seu nada, nem sua plenitude, nem sua origem antes de toda memória, nem seu horizonte após toda a catástrofe. Mas sua própria ressurgência, seu recurso de desejo e de experiência no próprio vazio de nossas decisões mais imediatas, de nossa vida mais cotidiana (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 128).

Faz-nos empenhar “palavras vaga-lumes” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 131), como um narrador pobre, com alguma autoridade moribunda.