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Quando chegamos num ponto se está aquém e além de algum outro.

Ao chegar naquele grupo de pesquisa em funcionamento, a recém-entrada-pesquisadora só pôde ‘pegar o bonde andando’...

Interrogada sobre isto - numa reunião da pesquisa em que um outro professor, um fora, vem ouvir os trabalhadores incessantes deste bonde, porque estavam todos a experimentar a gama inexata daquilo que o viver e o compor, enquanto também tarefa de produzir conhecimento, impõe e angustia – a pesquisadora desajeitada assume a expressão popular de sua terra natal, mas inclui na tal sabedoria, que aponta o mundo em passagem constante, o seu antigo encontro com a literatura: sim, trata-se de pegar o bonde, mas “um bonde chamado desejo.”11

Chegar é nunca encontrar o ponto exato. É

perceber um movimento de passagens

subterrâneas, cheio de canais e caminhos, pistas, desvios. Chegar, portanto, não pode indicar produto pronto, achado, sequer fabricado. Chegar

11 “Um bonde chamado desejo”, como foi traduzida para o português, é uma peça teatral de 1947,

escrita pelo dramaturgo norte-americano Tennessee Williams, pela qual ele recebeu o Prêmio Pulitzer em 1947. O que nos incita a fazer menção ao inspirado título, não se restringe à trama contada neste romance, nem tampouco as caracterizações de seus personagens. Mas sim, a indicação com a qual nos brinda a peça, do desejo como força, que coloca em movimento tanto a composição, quanto a dispersão.

Modernidade é coisa antiga. Nós somos a contemporaneidade dos milênios. SAINTE-BEUVE, Charles- Augustin. Disponível em: http://loucuracontagiosa.blogsp

ot.com.br/2011/10/essa- tempestade.html. Acesso em:

é verbo infinitivo. É pôr em causa o mover-se, o movente. O que se pode com ele, por ele, é ensaiar processos...

Na memória se produz mais do que o registro dos fatos. A memória produz interpolações. Os fatos não são puros. São construções.

A memória assaltada da pesquisadora amalgama cenas.

Aqueles, todos ali. Sentados no vão de um dos antigos departamentos daquele Cemuni – Célula Modular Universitária. Primeiro dia do semestre, mais um. Corre uma apresentação. Cada um tem a chance de situar-se, ou de tentar, pelo menos. Após longo período de férias, o bonde parece alterado em sua velocidade. Muitos cumprimentos somam-se ao festejo do encontro e da formalidade, do retorno às atividades.

“Pró-jetos” são apresentados. Contudo, o jorro interpõe-se. O que é visceral numa pesquisa? Seus encontros com as outras obras? Suas geografias? Suas pausas ofegantes?

Há um indizível em toda experiência. Que só pode ser, quiçá, testemunhado. Há um limbo em todo encontro. Algo que desliza.

Assim, foi também que em outro encontro a pesquisadora moveu-se por fendas.

O grupo de pesquisa reunido no PFIST/UFES, já há muitos anos, desenvolvia trabalhos relativos à interseção entre saúde, trabalho e educação. Centrando o campo empírico da pesquisa guarda-chuva, nos últimos anos, ao município de Serra/Es, remontava por quais estratégias prosseguiriam com o então Fórum Cosate – o Fórum constituído por integrantes da pesquisa com trabalhadores da Serra que discutiu como engendrar na Educação uma experiência de análise do trabalho, por meio da Comissão de Saúde do Trabalhador da Educação (Cosate), em prol da produção de saúde.

O Fórum das Cosates surge em 2012, como resultante desta série de percursos e encontros, e estende-se em atividade até a presente data, congregando diversos segmentos da rede municipal de Educação Básica de Serra/ES. O Fórum partilha do entendimento de que a saúde do trabalhador constitui um ponto imprescindível na discussão acerca da qualidade da educação pública, como situa Zamboni e outros (2013). Constituiu-se com o objetivo de implementar Comissões de Saúde do Trabalhador da Educação (Cosates) no município de Serra, Espírito Santo (ES), a partir da articulação de várias instituições, a saber: Programa de Formação e Investigação em Saúde e Trabalho (PFIST), Centro de Referência em Saúde do Trabalhador do Espírito Santo (CEREST-ES), Ministério Público do Espírito Santo (MP-ES), Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Espírito Santo (SINDIUPES), Conselho Municipal de Educação do município da Serra, Fundação Jorge Duprat e Figueiredo (FUNDACENTRO), Divisão de Medicina e Segurança do Trabalho da Prefeitura Municipal de Serra (DMST-Serra), profissionais de escolas municipais de Serra e de outros órgãos vinculados à Secretaria Municipal de Educação de Serra (SEDU-Serra).

O primeiro encontro do Fórum naquele começo de ano, para a retomada das discussões sobre o Projeto de Lei sobre as Cosates, elaborado ao longo de dois anos anteriores, precisava ganhar novos rumos.

De forma atípica e modulada pelas surpresas e encaminhamentos de cada encontro do Fórum Cosate, produziu-se uma proposta de Projeto de Lei a ser apresentada aos órgãos competentes, instituindo as Comissões de Saúde do Trabalhador da Educação (Cosates) no município de Serra. O processo adotado foi o de construir uma Lei com a participação dos sujeitos que operam diretamente nesse campo, em conformidade com o princípio ético-político de exercer uma política pública formulada com e não

para os trabalhadores; definida como efeito de um desejo e ação coletivos

(BENEVIDES; PASSOS, 2005). Esse Projeto de Lei é aprovado na Câmara Municipal de Serra em 2016, como se verá mais adiante e passa a ser a Lei 4513/16 que institui as Comissões de Saúde do Trabalhador da Educação, cujo momento atual é o aguardo de sua regulamentação pelo Poder Municipal.

Elaborado e revisto por muitas mãos, começava a traçar nova incursão no desejo daqueles que o esquentavam e davam vida a ele: experimentar o Projeto de Lei em um caráter piloto de experimentação, num empreendimento que fomentasse a discussão sobre saúde, trabalho e educação e não separasse nossas capacidades de agir, pensar e sentir. Que não se esgotasse em formas prévias e modelares de táticas discursivas repetidas e práticas duras de engessamento e captura do vivo. Não se queria produzir uma comissão aos moldes de outras tantas que já funcionam nas áreas que entrecruzamos por desejo de ligatura.

Uma preocupação com a proposta de experimentação foi a de apontar a viabilidade de tal projeto e analisar os efeitos produzidos. Optou-se, assim, pela realização de uma “experiência piloto” em duas escolas municipais da rede, tendo em vista, inclusive, que não se conhecem registros de outras Comissões de Saúde em local de trabalho no âmbito da Educação Básica no Brasil. “Experiência-cosate”, portanto, refere-se aqui às Comissões de Saúde do Trabalhador da Educação (Cosates) no município de Serra/ES implementadas de setembro a dezembro de 2014. Tal “experiência piloto” empreendeu um conjunto de ações articuladas no ano de 2014 e autorizadas pela Secretaria Municipal de Educação de Serra (SEDU-Serra), que oportunizou disponibilidade de carga horária de quatro horas semanais aos profissionais que compuseram tais Cosates, no período estipulado – de setembro a dezembro do citado ano – para o desenvolvimento das atividades da comissão, como será discutido adiante.

Primeira reunião do Fórum para a pesquisadora recém-chegada. Seguida reunião entre muitas outras para aqueles que já no meio estavam a mais tempo, juntos, naquele espaço-dimensão.

Registra-se no diário de campo: “Estranhamento da própria experiência. Possibilidade de diferir”. O gesto deixa o rastro do que resta.

Há um risco de que a vontade de saber esterilize o pensamento, ao tentar tudo explicitar quanto aos processos de pesquisa. De pretender dizer do exercício de diferir-se em vez de realizá-lo. De enveredar pela defesa totalizadora do saber pretendido como universal.

Só pode haver experiência, conexão, relação com o mundo, no sentido de uma partilha do sensível, se houver espaços de dissenso, de irrupção, lacunas, saltos, solavancos, sem que estes sejam sentidos como buracos negros, morte crua ou nua violência.

Seria preciso apressar sentidos de limiares, passagens, revezamentos, nonsenses.

Apostar em algo que insurja, subverta. Mortes enigmáticas que produzissem solos para o acontecimento. A insurreição de um cotidiano molecular, em ebulição, murmurante. Algo que traga o brilho estrelar da tensão. As chispas.

Desde que a palavra é viva, ela torna-se transmissível.

A grossura da política nos indica o trabalho de fazer-nos como um caminhar por produção de dissenso e controvérsia.

Se pensar é transfigurar-se na potência de criação, o exercício de atenção é o de presentificar o instante.