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1. VIDAS QUE SE CRUZAM

2.1 Entre a arte e o artesanato

A engenhosidade do artesão encontrou um meio termo entre o tecido desfiado e o bordado, utilizando-o como base de apoio para formar o esqueleto da peça. O bordado, diferentemente do crivo, não desconfigura o tecido, utiliza este espaço como meio base para a criação dos desenhos. Ao longo dos tempos a renda tomou formas e desenhos diferentes, chegando a sofrer forte bginfluência do

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A renda Irlandesa de Divina Pastora, no Estado de Sergipe recebeu o título de Patrimônio Imaterial e está escrito no Livro das Artes de Fazer do IPHAN. Processo nº 01 450.001501/2007-52 em 28/01/2009

movimento renascentista do século XVI, que foram enriquecidos por desenhos propostos por artistas da renascença, como Frederico Vinciolo e Cesare Vincellio.

O renascimento ou renascença foi um movimento artístico, científico que aconteceu entre os séculos XV e XVI na península itálica, favorecido pelo acúmulo de capital auferido, através das conquistas marítimas que alargou as possibilidades comerciais, através do contato com outros povos. O comércio de especiarias e de produtos têxteis entre os povos do Oriente fortaleceu a economia local e fez surgir uma rica classe de mercadores, especialmente nas cidades de Veneza, Florença e Gênova. Muitos comerciantes europeus fizeram riquezas e acumularam fortunas, fato que possibilitou o financiamento da produção artística de pintores, escultores, músicos, arquitetos e escritores.

Os financiadores, também conhecidos como mecenas, passaram a dar proteção aos artistas e intelectuais, financiando suas obras. Estas obras artísticas eram marcadas pelo estilo greco-romano, buscando valorizar o homem em sua plenitude, como a inteligência, o conhecimento e o dom artístico. Cultivava o ideal de perfeição, da harmonia e do equilíbrio, através da simetria e da proporção das imagens. A razão e a natureza também passaram a ser valorizados como elementos destas novas práticas, através da observação e do experimento. Era um novo mundo que estava se abrindo, despertando o interesse por obras que representassem o poder e a genialidade humana, através de trabalhos artísticos em pinturas e esculturas; na construção de palácios e de templos religiosos, etc.

No entanto a genialidade artística era considerada uma dádiva natural do sexo masculino. Os trabalhos artísticos que mereceram destaque no renascimento eram eminentemente masculinos, embora algumas mulheres das classes mais altas tivessem acesso à educação erudita e chagassem também a produzir algumas obras, estas, no entanto, não chegavam a ter destaque. Mulheres que ousassem realizar trabalhos fora das atribuições, compreendidas como típicas do sexo feminino eram consideradas anormais. Ao homem era concedido o dom de criar obras artísticas originais, sendo reservado às mulheres gerir os destinos da casa e educar os filhos. No entanto, algumas mulheres casadas com artistas ou filhas de ricos senhores conseguiam ter uma formação erudita. O nome de Isabella

Catenea55 Parasole, casada com xilogravurista, Leonardo Norsini, é citado como autora do catálogo de padrões para trabalhos de rendas, “Teatro dele Nobili et Virtuose Donne” de 1597. Segundo Delimeau (1984), havia mais mulheres cultas no século XVI, do que em qualquer outra época anterior.

Vários testemunhos asseguram-nos que uma elite feminina tinha agora acesso à cultura, o que não deixava de espantar um velho jurista italiano do século XV: “Nunca pensei que as ruas de Florença estivessem tão ao corrente da filosofia moral e natural, da lógica e da retórica” (DELUMEAU, 1984: 368-369).

Embora saibamos que em algumas sociedades o homem tenha desenvolvido atividades correlatas àquelas praticadas pelas rendeiras, o que se observa é que até bem recentemente, no Brasil, esta era uma atividade eminentemente feminina, até mesmo na tarefa de fazer os desenhos. O papel da mulher era confeccionar os bordados, tecer as rendas e ornar os tecidos. Eram atividades físicas e repetitivas e sendo por isso mesmo, vistas como atividades indicadas para o sexo feminino. Ao homem, era reservada a tarefa de desenvolver os padrões utilizando apuradas técnicas inspiradas no movimento renascentistas, que seria posteriormente copiado pelas mulheres. É certamente, em razão da vinculação com o renascimento que este tipo de renda passou a ser denominada de Renascença.

Apesar de ter alcançado seu apogeu no período do renascimento, de ter embarcado no espirito renovador e de utilizar padrões criados por renomados artistas da renascença, a renda não é considerada, pela maioria dos estudiosos como arte na mesma categoria das obras realizadas por: pintores, poetas, escultores, arquitetos, etc., a esta categoria, costuma-se denominar de “arte maior” às outras, como as de ourives, costureiras, rendeiras e artesão em geral, costuma- se chamar de “arte menor” apesar do nível de especialização, do esmero, da beleza e da qualidade empreendida aos artigos produzidos por estes profissionais.

Para Mário de Andrade, o artesanato seria uma das fases mais importantes da produção artística, é quando o artista apresenta seus caprichos e sua individualidade. Ele diz, ainda, que para ser um artista completo era preciso conhecer os processos, as exigências, os segredos dos materiais que se vai trabalhar. No entender de Andrade, o verdadeiro artista é também um bom artesão.

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Ilustração nº 09. Desenho propostos por Isabella Catenea Parasole. Parasole. Musterbuch fur Stickereien und Spitzen Von Elisabetta Parasole. Edição Alemã de 1916.

“O artesanato é uma parte da técnica da arte, a mais desprezada, infelizmente, mas a técnica da arte não se resume no artesanato. O artesanato é a parte técnica que se pode ensinar”. Andrade fez estas ponderações no artigo, o Artista e o Artesão, apresentado na aula inaugural dos cursos de Filosofia e História da Arte, do Instituto de Artes, no Rio de Janeiro, em 1938, destacando a importância do artesão na produção artística. Ao utilizar a técnica pessoal na criação de seus objetos, o artesão imprime a sua marca. A sua habilidade pessoal aliada ao esmero e acuidade faz desse artesão um profissional criador de obras raras e é esta distinção que atribui a sua obra, valor artístico, saindo do anonimato para aparecer na categoria de obra de arte.

Por volta do século XV, a burguesia passou a adotar um modo de vida mais refinado e a usar roupas que sobrepujasse a das classes populares, apesar de transitar entre os dois universos. Suas vestes procuravam marcar esta diferença e estar em consonância com o poder e a gloria que eles queriam representar. Para marcar a diferença entre o popular e o erudito. O grotesco, o riso solto e a picardia, analisados por Bakhitin (1999) indicam que essa era possivelmente a marca das classes populares, além da falta de bens matérias e da dificuldade de acesso aos bens considerados de valor artístico. As classes populares, no máximo, tinham acesso a roupas simples e a possuir bens de uso prático, no entanto, em ocasiões especiais, o pobre vestia a sua melhor roupa para participar de eventos. Temos que: “basta muito pouco para vestir um lazaro [pobre], exceto nos feriados; então ele, de fato, se enfeita espalhafatosamente, com casaco rendado e meias de cores brilhantes; suas fivelas são de um tamanho enorme” (BURKE 2006:207). O luxo, representando a exuberância era exclusivo da elite dominante.

O jeito de se vestir, o modo de porta-se na sociedade, a sensibilidade artística, a erudição e a riqueza são elementos que marcam a distinção entre os grupos sociais do renascimento, contudo, os grupos inferiores, também chamados de classes populares, vistos como, não polido, iletrado, despossuído de bens materiais, morador de regiões periféricas ou rurais, depois da tentativa de reforma da cultura popular no século XVI, só teriam emergido do anonimato no século XVIII e início do século XIX, quando então foram redescobertos e postos em oposição à elite, chamada de classe dominante. O popular é, portanto, uma categoria nomeada

e significada pelo outro. Através da diferença, as classes populares são nomeadas e significadas pelos grupos hegemônicos, que usam a marca da diferença para justificar sua posição social.

O artesão criador de peças comuns encontra-se inserido na categoria popular, mas o artesão, criador de obras raras, de apurada sensibilidade e de beleza incomum, quando descoberto, é logo alçado à categoria das classes superiores, aquela em que os artistas são vistos como pessoas privilegiadas, possuidoras de habilidades artísticas de inspiração divina. Contudo, o artista popular quando produz uma obra que chega a agradar às classes superiores ou ele transitou pelo universo das classes superiores ou foi este seguimento que circulou pelas hostes inferiores. Para Peter Burke, “As classes superiores na Europa moderna podem ser descritas como ‘biculturais’ no sentido de que participam plenamente da cultura popular, além de ter uma cultura própria que as pessoas comuns não partilhavam” (BURKE, 2006:238).

Mas essa distinção era possivelmente muito mais forte nos séculos XV e XVI, Canclini (2008: 242) assinala, que determinadas obras eram consideradas artísticas, porque atendiam aos interesses e ao gosto da burguesia. O valor daquelas obras estava no seu caráter “espiritual” valorizado pelo belo em detrimento do uso prático e da forma predominando sobre a função; da arte desinteressada. Na hierarquia das artes, a escultura, a música, a poesia, a pintura e a arquitetura eram consideradas artes maiores, eram obras únicas, que exigiam apuro técnico e dedicação, diferentemente do artesanato, que era uma “arte menor”, caseira, produzida em série onde o uso prático prevalecia sobre o belo.

Ao conceber-se a arte como movimento simbólico desinteressado, um conjunto de bens “espirituais” nos quais a forma predomina sobre a função e o belo sobre o útil, o artesanato aparece como o outro, o reino dos objetos que nunca poderiam dissociar-se de seu sentido pratico (CANCLINI, 2008: 242).

Colocado desta forma, o artesanato, objeto próprio das classes populares, jamais poderia alcançar o status de obra de arte. Canclini (2008), no entanto ressalta que a arte não está condicionada só ao belo e a aplicação da técnica em uma dada região por grupo de indivíduos letrados. Ele entende no entanto, que não há distinção entre arte culta e arte popular, uma vez que este é um valor subjetivo. A arte está presente da pré-história até os dias atuais, e geograficamente está em todos os lugares onde existir pessoas e em qualquer estágio de desenvolvimento

cultural. Para Argan (1994: 13), monumentos, ou mesmo, uma cidade inteira, pode ser considerada obras de arte, incluindo os edifícios, públicos ou privados; ruas, praças, pontes, estátuas, parques, gravuras estampadas nas páginas de um livro, pedras preciosas, moedas, etc. Não existe uma fórmula, que possamos usar para definirmos o que é arte. Nem mesmo as técnicas usadas na produção podem ser usadas para qualificar uma obra artística, uma vez que nenhuma técnica é capaz de só produzir obras de arte. Define-se o que é arte, pelo valor que lhe é atribuído. Ou seja, para definir-se o que é arte depende-se unicamente do juízo de valor. Argan diz que “As formas valem como significantes somente na medida em que uma consciência lhes colhe o significado: Uma obra é uma obra de arte apenas na medida em que a consciência que a recebe a julga como tal” (ARGAN: 1994: 14) e diz ainda, que esta valoração não é estática, ela pode mudar ao longo do tempo, o que era considerado hoje, de grande valor artístico, poderá não ser amanhã.

Para Canclini (2008), foram os folcloristas e antropólogos, os principais reivindicadores do valor artístico da produção cultural indígena, enquanto que os historiadores da arte mostravam-se dispostos em destacar o valor artístico da produção cultural dos grupos subalternos, apontando a existência de mérito nas coleções que não estavam expostas em museus. Ele considerou que foi a partir deste reconhecimento, que algumas obras feitas por artistas populares foram aceitas em museus e galerias. “Demonstrou-se que nas cerâmicas, nos tecidos e retábulos populares é possível encontrar tanta criatividade formal, geração de significados originais e ocasional autonomia com respeito ás funções prática quanto à arte culta” (CANCLINI, 2008: 245).

Vimos anteriormente, que o movimento renascentista nasceu na península itálica espalhando-se posteriormente para outros países da Europa, foi financiada pela Igreja e por ricos comerciantes radicados nos centros urbanos. Mas o gosto refinado e polido da burguesia e sua admiração por obras consideradas artísticas pareciam deixar a elite burguesa cada vez mais distante das camadas populares. Contudo, as rendas, apesar de apresentarem padrões inspirados no movimento renascentista não eram admitidas na categoria das artes maiores, mas fazia parte do grupo das artes menores nas quais os artesãos estavam inseridos; que sua ascensão ocorre quando os grupos superiores atribuem valor artístico e passa a usar e ou colecionar as obras produzidas por estes artistas.

Neste sentido, pode-se dizer que a elite renascentista mantinha contatos com as classes inferiores, apesar do distanciamento entre elas. Burke e Bakhitin admitem existir livre trânsito ou circularidade cultural da elite dominante no terreno das classes populares, contudo o luxo no renascimento era visto como excludente, não havia luxo onde não houvesse esplendor, e estes eram mais significativos quando eram apresentados no ambiente próprio das classes superiores, como os palácios e salões de festas, ou seja, no ambiente onde a chamada “sociedade de corte", transitava, como estudado por Elias (2001). Lembramos, no entanto, que estes valores não são estáticos, mudam com o passar dos tempos. Hoje é já possível encontrar coleções de peças rendadas usadas por nobres e pela alta burguesia, opositora do antigo regime, expostas em museus da Europa.