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1 REVISÃO DE LITERATURA

2 DIÁLOGOS TEÓRICOS NA PESQUISA DE FORMAÇÃO DE

2.1 SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE SABERES E PRÁTICAS

2.1.3 Entre saberes e práticas

Frequentemente ouvimos dos alunos dos cursos de licenciatura, e também de professores formados, que o conhecimento produzido na universidade demora a chegar à escola. Constatações assim parecem desconsiderar a especificidade da escola. A sociologia do currículo, juntamente com a história da educação e a história das disciplinas escolares, tem-se debruçado na compreensão da escola, sobretudo na análise de seus aspectos internos.

A história das disciplinas escolares tenta identificar, tanto através das práticas de ensino utilizadas em sala de aula como através dos grandes objetivos que presidiram a construção das disciplinas, o núcleo duro que pode construir uma história renovada da educação. Ela abre, em todo caso, para tentar retomar uma metáfora aeronáutica, a “caixa preta” da escola, ao procurar compreender o que ocorre nesse espaço particular (JULIA, 2001, p. 12-13).

É nesse sentido que se busca compreender o processo educativo no cotidiano, a constituição dos currículos, a análise das práticas escolares, o processo de construção do saber escolar e do saber docente.

Julia (2001) recusava os estudos essencialmente externalistas, como a história das ideias pedagógicas, das instituições educativas e das populações escolares, que tomavam como fontes privilegiadas os textos legais, e propunha uma história das disciplinas escolares constituída a partir de uma ampliação das fontes tradicionais. A fala dos professores e dos alunos dos cursos de licenciatura referenciados pode estar contida nesses estudos externalistas aos quais se refere Julia (2001).

Nesse sentido, é importante destacar a questão das fontes, que emerge como problema, que Julia (2001) contornava, aludindo à capacidade de o historiador fazer “flecha com qualquer graveto”, lembrando o inusitado das surpresas dos arquivos, reveladas apenas a alguns que se deixavam sensibilizar por novos objetos, sabendo das dificuldades em relação às práticas escolares, uma vez que elas deixam poucos rastros. Por fim, Julia alerta-nos sobre a recontextualização das fontes, argumentando que a “[...] grande inércia que percebemos em nível global pode estar

acompanhada de mudanças muito pequenas que insensivelmente transformam o interior do sistema” (JULIA, 2001, p. 15).

Imerso nas questões relacionadas à constituição das disciplinas escolares, mas atuando na interseção com estudos sobre currículo, Forquin (1993) faz uma distinção entre cultura da escola (características de vida própria, tais como ritos, linguagem, imaginários, maneiras específicas de transgressão e construção de símbolos) e cultura escolar, que conceitua como

[...] conjunto dos conteúdos cognitivos e simbólicos que, selecionados, organizados, “normalizados”, “rotinizados” sob os efeitos dos imperativos de didatização, constituem habitualmente o objeto de uma transmissão deliberada no contexto das escolas (FORQUIN, 1993, p. 167).

Concomitantemente, Forquin (1993) discute o movimento que vai da seleção entre saberes aos elementos culturais, para torná-los efetivamente transmissíveis e assimiláveis num complexo trabalho de reorganização e reestruturação: a transposição didática. Para o autor, esse movimento constitui a

[...] emergência de configurações cognitivas específicas (saberes e modos de pensamento tipicamente escolares); estas configurações tendem a escapar do estatuto puramente funcional [...] para se constituir numa espécie de cultura escolar sui generis, dotada de dinâmica própria e capaz de sair dos limites da escola (FORQUIN, 1993, p. 17).

Discordamos do autor porque entendemos que o conceito de “transposição didática” é polêmico e questionável, entre outros motivos, seja por acentuar a hierarquização dos saberes, seja por reduzir o conhecimento escolar a relações de transposição de um saber acadêmico a um saber a ser ensinado. Mas o que podemos inferir da leitura de Forquin (1993) é que uma cultura escolar é capaz de definir-se como formadora de hábitos, demandando processos específicos de didatização, cultura que se cria e recria no interior do espaço escolar, orientando a ação pedagógica bem como as práticas escolares e a composição de saberes; como o próprio autor afirma, uma cultura escolar sui generis.

Nesse sentido, Chervel (1990, p. 184) argumenta que as disciplinas escolares são entidades epistemológicas relativamente autônomas no interior de uma cultura escolar afirmando: “Porque são criações espontâneas e originais do sistema escolar

é que as disciplinas merecem um interesse todo particular”. As pesquisas de Chervel (1990) questionam a concepção da escola como simples agente de transmissão de saberes elaborados fora dela. Percebem a escola como local de instrução e produção de saberes, no qual se confrontam diferentes forças e interesses. O objeto das disciplinas escolares são as produções próprias da escola. Se os conteúdos explícitos constituem o eixo central da disciplina ensinada, o exercício é a contrapartida quase indispensável. “A definição das finalidades reais da escola passa pela resposta à questão ‘por que a escola ensina o que ensina?’ e não pela indagação: o que a ‘escola deveria ensinar para satisfazer aos poderes públicos?’” (CHERVEL, 1990, p. 190).

Para Julia (2001, p. 10-11), a cultura escolar não pode ser compreendida sem a análise precisa de suas relações, conflituosas ou não, sem levar em consideração “[...] o conjunto das culturas que lhes são contemporâneas: cultura religiosa, cultura política, ou cultura popular”. O conceito de cultura escolar deve ser entendido como um conjunto de normas definidoras de “[...] conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar e como [...] um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos [...]” e a incorporação de comportamentos, normas e práticas às finalidades (religiosa, política e outras), que podem variar segundo as épocas, normas e práticas que não podem ser analisadas sem o corpo profissional dos agentes que são chamados a obedecer a essa ordem, a saber:

[...] os professores primários e os demais professores. [...] Mas, para além dos limites da escola, buscam em um sentido mais amplo modos de pensar e de agir no interior de nossas sociedades, que não percebem a aquisição de conhecimentos senão por intermédio de processos formais de escolarização (JULIA, 2001, p. 10-11).

Conforme Vidal (2005), apesar da proximidade entre os trabalhos de Chervel (1990) e Julia (2001) no que concerne à discussão em torno da constituição das disciplinas escolares e dos efeitos sociais da escolarização, sensíveis diferenças se apresentam na cultura escolar enunciada pelos pesquisadores. Chervel parece afirmá-la de maneira mais contundente como original e se interessa principalmente pela construção dos saberes escolares. Julia enfatiza a importância da análise das práticas escolares (VIDAL, 2005)

As pesquisas que têm investigado o conhecimento elaborado e mobilizado a ação dos professores possibilitaram o desenvolvimento de uma epistemologia da prática, como já vimos anteriormente. No bojo das discussões sobre a cultura escolar e da crítica ao modelo da racionalidade técnica (conforme já abordado) é que foi criada a categoria “saber docente”. Vimos também que os professores mobilizam diversos saberes em sua prática docente e concordamos com Saviani (1996) quando afirma que a mobilização desses saberes se relaciona à concepção de educação e de ensino, à qual acrescentamos a de história e a de museu. É sobre essas concepções que passamos a discorrer.