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2.1 – ENTREVISTA AO ORTOPEDISTA DR NUNO CRAVEIRO LOPES

No início da sua carreira, em 1985 no Hospital de Santana da Parede, ainda como interno é sugerido um desafio ao Dr. Nuno Craveiro Lopes: estudar uma doença mal estudada e que apesar de ser conhecida há alguns anos tinha ainda tão maus resultados.

Com o apoio do diretor do hospital começa a estudar a doença em coelhos sob o ponto de vista da origem da doença e quais os fatores que incidiam sobre a sua origem. Começa então a direcionar a sua prática clínica e laboratorial para o tratamento precoce e prevenção da doença de Perthes.

Os seus estudos acabaram por se comprovar como corretos e de um contributo precioso e inovador e como tal, esses estudos acabaram por ser reconhecidos em alguns países, tal como validar algumas das questões clínicas não respondidas por vários profissionais dedicados à compreensão da doença.

Os seus métodos expandem para os 5 continentes onde os seus artigos científicos são reconhecidos e premiados. Exceto em Portugal, onde há uma grande resistência e desconfiança perante as suas contribuições apesar do grande número de doentes tratados e seguidos (cerca de 300 casos, metade deles já com um follow up muito longo, capaz de mostrar resultados a longo prazo).

Já no Hospital Garcia da Orta, funda o núcleo de prevenção e tratamento precoce da doença de Perthes onde recebe doentes vindos dos Estados Unidos, América do Sul, Ásia, Médio Oriente e países nórdicos.

Tudo isto levou a um reconhecimento organizacional por parte da Sociedade Portuguesa de Ortopedia e Traumatologia, mas ainda não pessoal por parte dos colegas que fazem ortopedia infantil.

Esclarece que a doença surge entre os 3 e os 12 anos. Após os 13 anos é considerada necrose asséptica juvenil cujas sequelas são mais graves, os tratamentos mais prolongados e encontra-se associado a alterações metabólicas. Acrescenta que a

doença é mais frequente nos rapazes que nas raparigas, apesar de os resultados finais das raparigas terem um prognóstico mais reservado devido às diferenças na idade óssea dos géneros.

Pelos mais diversos motivos, com uma vida mais ou menos regrada, mesmo em situações sem a doença há certos fatores que levam a um desgaste da cabeça do fémur a partir de uma certa idade (por volta dos 60/80 anos de idade), uma doença que deforma a articulação proporciona as condições para antecipar esse desgaste da cabeça do fémur e inserção de prótese. Os fatores que levam a um aceleramento do desgaste da cabeça do fémur são fatores de carga durante a vida tais como uma profissão que exige carga, excesso de peso, vida sedentária que não tonifica a musculatura em que o processo de artrose é mais rápido e em vez de ser necessária prótese aos 80 anos, esta é antecipada para os 50 ou 60 anos de idade.

Nos casos da doença de LCP, esta necessidade de prótese vai depender do resultado final (ver o ponto I.1.6 sobre as classificações).

A questão das implicações físicas é apontada por alguns dos entrevistados, (nomeadamente, as entrevistadas nº 1, 3 e 7 – anexos XLVI, XLVIII e LII). A descrição dos mecanismos, classificações, etapas da doença e formas de tratamento vão em concordância com o exposto em I.1.4, I.1.5, I.1.6 e I.1.7 e são explicadas nas categorias B, C e D do anexo LVIII.

O sinal de alerta que despoleta o pedido de diagnóstico é a dor: a dor provocada pela fase inicial que precede a doença de Perthes. As crianças aparecem a coxear, com dores na coxa ou no joelho. Sendo a dor na coxa, virilha ou joelho, muitas vezes é feita uma radiografia ao joelho ou à coxa sem resultados além de “dores de crescimento” ou a sinovite (inflamação articular muito parecida com a fase inicial da doença de Perthes), prescreve-se a toma de benuron ou brufen e aguarda-se (o diagnóstico não é sempre imediato conforme se constata nos casos nº 1, 3, 4, 7, 8, 10, 11).

Segundo o Dr. Nuno a intervenção cirúrgica mais popular ente os colegas são as osteotomias. Sendo o médico com maior número de casos que assenta a sua carreira na investigação clínica, constata que as osteotomias são de resultado razoável em doentes até aos 8, 10 anos de idade com deformidade da cabeça do fémur de moderada a ligeira e apenas quando aplicadas numa fase muito precoce da doença, o que nem sempre acontece. Segundo o Dr. Nuno, também nos casos em que o grupo de amostra tem menos de 6 anos de idade com a doença ainda com pouca deformidade, a osteotomia não implica resultados concretos.

As técnicas mais utilizadas pelo Dr. Nuno incluem a tunelização epifisiária como forma de prevenção e tratamento precoce. E nos casos com pior prognóstico o Dr. Nuno aplica a técnica das artrodiastases ou as distracções articulares com fixador externo que é um tipo de cirurgia que começou a ser utilizado há cerca de 10 anos atrás com bons resultados (ver caso nº4 Anexo XLIX).

Relativamente à parte da recuperação, geralmente são incluídas 4 atividades: os chamados Perthes Exercises feitos em casa pelos cuidadores 2 a 3 vezes por dia, depois há o apoio da fisioterapia e as atividades extraordinárias que passam pela natação de forma livre e indiscriminada, hipoterapia uma ou duas vezes por semana e bicicleta que também pode ser estática.

Relativamente aos trâmites habituais, o Dr. Nuno esclarece que quando tem em consulta uma criança diagnosticada com LCP, marca a cirurgia de prevenção e tratamento precoce de forma imediata, entretanto, é muito importante que a criança permaneça em repouso absoluto e total de forma a minimizar qualquer deformidade e impedir a ocorrência de novos episódios de isquémias. Para que a cabeça do fémur permaneça protegida, são utilizados uns calções de abdução. Geralmente, dois ou três dias após a cirurgia, estas crianças fazem vida normal, o único contingente é a ida ao recreio para evitar atividades de impacto como corrida, salto ou as brincadeiras normais para as crianças.

Quando a criança chega já numa fase mais avançada, o prognóstico é mais complexo, e a cabeça femoral começa a sair do encaixe (dando origem à chamada anca em charneira por se parecer com o formato da cela de um cavalo), nessa altura, conforme explicado em cima, o procedimento habitual inclui a artrodiastase com o fixador externo.

No caso do fixador externo, a criança precisa de uma ou duas semanas a recuperar em casa, passa a andar de canadianas e a partir do momento em que domina a marcha em canadianas pode frequentar a escola com o fixador colocado, tendo naturalmente todos os cuidados. Geralmente o fixador externo fica colocado cerca de 4 a 5 meses. Depois desses 4 a 5 meses retira o fixador externo e coloca o calção de abdução e começa com os exercícios indicados (Perthes exercises, natação, hipoterapia e bicicleta).

Quer o processo de tunelização cuja recuperação pode rondar os 4 a 5 meses ou o fixador externo que pode demorar até cerca de um ano de tratamento, além de acarretarem melhores resultados na recuperação da doença, reduzem também o tempo

de história natural da doença (HND) em vez dos 4 ou 5 anos que seria o tempo expectável.

Procedimento muito distinto tem grande parte dos colegas cujo procedimento assenta principalmente na postura “wait and see” com recurso a utilização prolongada de cadeira de rodas, com períodos de acamação para fazer descarga com tração e no período final da HND passam a utilizar canadianas o que não é em todos os casos garantia de bons resultados.

Relativamente aos cuidadores, o feedback é muito positivo com famílias muito colaborantes, interessadas sob o ponto de vista de tratamentos e informação, resilientes e capazes dos mais diversos sacrifícios para proporcionar os melhores tratamentos possíveis a estas crianças. Normalmente os cuidados implicam a inteira disponibilidade de pelo menos um dos pais e o Dr. Nuno fica sensibilizado com a dedicação que vê nas famílias, inclusivamente nas famílias mais carenciadas. Mas esta colaboração, infelizmente reduz-se às famílias que se deparam com uma certa resistência institucional em articular esforços no sentido do bem-estar da criança diagnosticada ou das famílias.

No que concerne aos impactos sociais no meio escolar, o Dr. Nuno acredita que muitas crianças passem por algumas situações menos evidentes de dificuldades sociais, pessoais ou psicológicas apesar de reconhecer também que na maior parte das vezes há uma sensibilização por parte do corpo docente em proteger e acompanhar estas crianças. Acrescenta que seria muito útil um projeto de sensibilização para a doença junto da comunidade escolar.

Durante a entrevista, foram abordados outros assuntos igualmente importantes que se prendem com as dificuldades vividas no SNS.

Segundo o Dr. Nuno, as barreiras na administração e os cortes orçamentais são um grande bloqueio a um atendimento de qualidade, ao qual se junta o êxodo de médicos com maior experiência do serviço público para o privado uma vez que o serviço público não oferece condições competitivas ou de desenvolvimento de carreira interessantes para os profissionais de saúde que se esbarram com dificuldades de ordem administrativa e cortes que afetam não só a qualidade do serviço como o desempenho dos médicos com maior formação ou os recursos humanos disponíveis nos hospitais públicos.

Os profissionais da área da ortopedia infantil acabam por iniciar a sua carreira na oferta pública de saúde enquanto não ganham experiência para trabalhar simultânea

ou exclusivamente no serviço particular cujas condições são mais interessantes do ponto de vista profissional. Por outro lado, a doença não acarreta desafio profissional suficiente, além de se apresentar em número reduzido.

Sem condições de progressão ou subsistência, a fuga de médicos do público para o privado é uma realidade que põe em causa a qualidade dos serviços, principalmente nos hospitais periféricos que se encontram longe dos centros urbanos e que não oferecem condições competitivas a estes profissionais.

Estas dificuldades são ainda mais evidentes no caso da ortopedia infantil, especialmente nos casos da doença de Legg-Calvé-Perthes, onde, além dos constrangimentos nacionais na saúde e já referidos pelo Dr. Nuno, inclui-se ainda, muita resistência à aplicação de novas técnicas, desconhecimento e evoluções pouco significativas, caraterística da doença de Legg-Calvé-Perthes.

O Dr. Nuno refere-se mesmo à ortopedia infantil como a “parente pobre da ortopedia” por não trazer benefícios económicos para os profissionais que, em inicio de carreira procuram aprofundar os seus conhecimentos em técnicas como a utilização de implantes, próteses ou materiais solicitados pelas companhias de seguro que são quem tem poder económico atualmente.

Assim, os profissionais acabam por privilegiar a ortopedia de adultos como as próteses de joelhos ou de ancas que são técnicas com maior procura no mercado em contraponto à ortopedia pediátrica que não implica ganhos, não coloca próteses, implantes e como tal, não representa interesse para a maior parte dos profissionais de ortopedia.

Além desta situação, relativamente às diferenças de atendimento entre a oferta pública e privada de saúde, o Dr. Nuno refere que além da consulta ser mais atempada na oferta privada de saúde, também o acesso a alguns exames é facilitado, o acolhimento do doente e dos pais é diferente, há menos pessoas, a consulta é mais rápida, os exames são mais rápidos mas depois na parte que diz respeito aos tratamentos, os procedimentos são iguais aos procedimentos utilizados na oferta pública de saúde uma vez que muitos dos profissionais continuam a utilizar técnicas dos anos 60.

Nos casos de doentes referenciados pela oferta pública cuja especialidade não é garantida pelo hospital da área de residência, os doentes são encaminhados para o Hospital de referência. A lei “impedia” que doentes de uma área de residência fossem tratados por outro hospital que não o hospital de referência (Hospital Dona Estefânia),

esta situação acabou por ser colmatada com a entrada em vigor do decreto-Lei 44/2017 de 20 de abril.

Perante todo o exposto, acredita-se que há ainda muito trabalho por desenvolver dentro da DLCP em vários aspetos, deste o apoio a crianças, cuidadores e famílias, os acessos a cuidados de saúde, proporcionar condições competitivas de carreira ao corpo clínico, interesse, desenvolvimento e propagação de novas técnicas que já são utilizadas em todo o mundo, serem também reconhecidas como fundamentais em Portugal, a continuidade do trabalho de investigação, a generalização de técnicas que comprovadamente apresentam benefícios, apostar na prevenção, igualdades nos acessos à saúde, seria importante também assistir a alterações na forma de relacionamento entre doentes, famílias, equipas médicas, com uma proximidade que comece pela colaboração e boa vontade. Tal como pela utilização de ferramentas já disponíveis a todos como telefone, redes sociais, email etc. para facilitar o acesso da saúde a todos.

O advento da internet veio aproximar as pessoas, facilitar as comunicações tal como acelerar a divulgação de novas técnicas e o Dr. Nuno é da opinião que essa ferramenta deve ser utilizada para facilitar a vida de todos.

Por outro lado, o advento veio também acelerar a partilha de utilização de novas técnicas e da sua parte é prática comum a disponibilização de artigos científicos de forma gratuita de forma a incentivar a partilha de desenvolvimentos.

Acrescenta-se ainda, à semelhança do que já acontece em outros países, a necessidade de associativismo entre doentes, pais, médicos e equipas para dar alguma representatividade à doença, promover a sensibilização sobre a doença e o seu tratamento.

Serão então anos muito interessantes em termos de desenvolvimento e investigação da doença, novas técnicas, novos avanços terapêuticos farmacológicos e novas maneiras de abordar a doença na esperança de propagação de técnicas já reconhecidas no estrangeiro a serem utilizadas em Portugal tanto no público como no privado e se possível, acessíveis a todos.