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2. ESPECIFICIDADE E POSSIBILIDADES DO CONHECIMENTO

2.2 Epistemologia da narrativa (auto)biográfica

2.2.1 Entrevista Narrativa Temática

religiosa diferenciada, em grande maioria católica e evangélica. Eles/as participam das atividades das suas tradições religiosas sob orientação de padres, religiosas, pastores. 5

É sintomático constatar a importância, vitalidade e riqueza das experiências de religiosidade e de espiritualidade nas lideranças, militantes e assentados/das do MST, objetos da pesquisa, como percebido anteriormente nos depoimentos de Margarida e Zé Lourenço.

Este conjunto de evidências mostra o inegável valor epistemológico da narrativa (auto)biográfica para nossa pesquisa, pelas possibilidades que oferece para o estudo dos movimentos sociais em aspectos pouco abordados e conhecidos como este da força emancipadora das experiências de espiritualidade e mística no MST.

2.2 Epistemologia Da Narrativa (Auto)Biográfica

2.2.1 Entrevista Narrativa Temática

O estudo das experiências de espiritualidade e de mística no MST apontou justamente a compreender as práticas sociais do movimento desde a perspectiva de (sentido de)vida dos/das seus/suas militantes. E isto é possível, na medida em que a entrevista pressupõe que a narração espontânea das experiências pessoais acontecidas na própria história de vida é resultado de sua interação social e por isso aproxima as realidades sociais concretamente vivenciadas num novo referencial de sentido.

É nesta perspectiva que a Entrevista Narrativa possibilitou também aproximarmos do aspecto processual nas formas e sentidos das experiências religiosas, de espiritualidade e de mística que acontecem no decorrer das trajetórias ou histórias de vida de militantes do MST, como o constatado a seguir:

Minha mãe não era católica de frequentar igreja, muito menos o meu pai, esse que foi lá pra casa quando eu tinha 2 anos de idade. Então, assim, dentro de casa a gente não tinha essa experiência que outras famílias tinham, de motivar os filhos pra ir à missa ou pra ir à catequese. Então esse tempo, pra mim, ele demorou. Porque eu só vou

5Seria de grande importância conhecer com exatidão o perfil religioso dos membros do MST e os

processos que apontam ao significado militante que adquire e/ou como se cultiva no MST. O fato é que nos diversos encontros com membros do MST, sejam elas pessoas adultas ou jovens, as experiências ou considerações religiosas estão presentes nas rodas de conversa.

iniciar ele, assim... e é uma busca muito sozinha porque não tinha ninguém da minha família que se interessasse por isso e tal. (DOROTHY)

Meus pais, meus avós, todos faziam parte dessa comunidade que trabalhava com Dom Fragoso. E sempre falava dessa história da teologia da libertação, das coisas mudar, do sonho... A mãe era catequista, era mãe que catequizava a gente, né. E falando, a mãe sempre falava no catecismo da libertação, dos sonhos, da reforma agrária. (MARIA DE ARAÚJO)

Eu lembro que a fé essa questão de aprender começou com minha mãe. Minha mãe tinha um sonho. Que nós bem pequenos assim a gente aprendesse a falar que nossas primeiras palavras fosse a saber as orações. Então ela nos ensinou as orações muito pequenos, né? E a gente cresceu e ela incentivava que a gente fosse na igreja. Né. Essa questão de... meu pai não era muito de ir muito de ir na missa. Mais se tinha missa a gente pedia para ir para missa porque a missa no campo, ela é uma atividade cultural, NE? É uma animação é tipo uma festa... Para a gente é uma festa.

... Então, esse cultivo dessa religião mais assim, vamos dizer, dessa religiosidade mais tradicional eu tive. (MARGARIDA)

Deste modo foi possível observar que enquanto experiências religiosas familiares serviram de base para Margarida, Maria de Araújo e Zé Lourenço, no caso de Dorothy elas foram adquiridas fora do âmbito familiar e por ela mesma. Também interessa constatar que há diferenças nas experiências religiosas familiares. Nos casos de Maria de Araújo e Zé Lourenço, suas famílias estiveram ligadas à pregação libertadora da diocese liderada por Dom Fragoso, um dos bispos incentivadores da Teologia da Libertação e das Comunidades Eclesiais de Base no interior do Ceará. Já Margarida criou-se em meio a tradições religiosas populares autóctones, sem vínculos com o setor progressista da Igreja Católica. Curiosamente, todos/as eles/as conservam uma identificação existencial-cultural com formas de religiosidade tradicionais socialmente adquiridas, tais como: reza do terço, participação de missas, preze para satisfazer necessidades, benzer, batizar, etc. Concomitantemente, todos/as eles/as sujeitam a prática de religiosidade popular ao novo sentido que lhes proporciona as experiências emancipadoras de espiritualidade e de mística nas lutas do MST.

Eu faço é rezar, assim, pelo movimento. Eu rezo todos os dias, eu nunca esqueci essa coisa de rezar. Porque a vovó... no catecismo a gente tinha aprendido que tinha que rezar todo dia e eu rezo todo dia e eu sempre peço, quando o movimento tá com muita dificuldade, eu rezo pelo movimento, pela militância. Por a minha família é mais essa coisa de rezar e acreditar que tem um Deus mais forte que anima no que a gente faz,

que cuida d’a gente, dessa caminhada e que é por isso que a gente existe. (MARIA DE ARAÚJO)

Os relatos de vida proporcionados nas entrevistas foram valiosos para compreender melhor a expressão natural das experiências de espiritualidade e de mística. A espiritualidade manifesta-se veladamente nas atitudes, estilos de vida, opções existenciais. A mística acontece e desenvolve-se ao interior e no transcurso de uma história de vida, assumida em sua radicalidade. Os místicos são tais no acontecer de uma vida, de uma história. As pessoas não se fazem espirituais ou místicas, mas são tomadas por experiências místicas e por vivências de espiritualidade. A mística e a espiritualidade não são atos de vontade, mas ações afetivas, gratuitas, que acolhem um sentido de ser perante uma realidade transcendente que se impõe radicalmente.

Isto mostra que é no decorrer da história de vida da pessoa, em atitude consciencial sobre a mesma, pela prática da rememoração e reflexão, que a experiência espiritual e mística evidencia suas possibilidades formadoras na vida das pessoas. Como afirma Delory-Momberger:

Um aspecto essencial da linha de formação por meio das histórias de vida reside no reconhecimento – ao lado dos saberes formais e exteriores ao sujeito, visados pelas instituições escolar e universitária – dos saberes subjetivos e não formalizados que os indivíduos colocam em prática nas experiências de suas vidas, em suas relações sociais e em suas atividades profissionais.. Esses saberes internos possuem um papel primordial na maneira como os sujeitos investem nos espaços de aprendizagem, e sua conscientização permite definir novas relações com o saber e com a formação. (2006, p 361).

A espiritualidade e mística são a uma vez expressão e fonte dos “saberes internos” adquiridos pelos/as militantes na formação da sua identidade humana e militante. Não é por acaso que a primeira reflexão de Dorothy relativa ao que seja mística, quando inquerida sobre o que ela entende por tal, seja que:

[...] a primeira ideia que me veio é essa coisa do cultivo da memória. Porque a mística ela vê muito dessa coisa do cultivar, as histórias, as memórias dos lutadores. E o cultivar está ligado também a essa coisa da terra, porque nós como camponeses trabalhamos muito. Essa coisa do cultivo da semente, do cultivo do sonho. Então tem muito a ver também com essa coisa do resgate de lutas populares que aconteceram, a indignação frente à injustiça, por isso que ela gera. (DOROTHY)

É nesta perspectiva que a Entrevista Narrativa Temática adquiriu importância ímpar na pesquisa. A narrativa de vida como mediação para os conhecimentos e aprendizados dos saberes e práticas, que significam a própria vida, tornou possível o reconhecimento das fontes, desenvolvimento e implicações da experiência da espiritualidade e da mística na vida pessoal, familiar e social dos/das militantes do MST. Como bem ilustrou Josso em sua obra Experiências de Vida e Formação (2004), é a narrativa que traz a força de significação da própria vida, como reflexão em ato, de um passado que nos identifica e define e de um futuro que se quer para si no sentido adquirido no tempo presente.

A Entrevista Narrativa Temática possibilitou compreender duas coisas. Primeiro: que as histórias pessoais de experiências de espiritualidade e mística contêm e expressam contextos históricos e sociais abrangentes em referência aos quais se desenvolvem no MST. Segundo: que as narrativas produzidas pelos indivíduos são também constitutivas de fenômenos sócio históricos específicos, nos quais as biografias se enraízam.6

Na experiência dos militantes do MST, esta possibilidade cognitiva tornou-se evidente, por exemplo, nas narrativas a respeito do episódio do chamado “cerco da Bezerra”, acontecido em 1997, que colocou em confronto o MST e o ex-governador Tasso Jereissati. Fato histórico de inegável caracterização política que na narrativa da militante Dorothy adquire um novo sentido, fruto de uma experiência de transcendência, quando revela que na sua participação no “cerco da Bezerra”: “eu vivi uma experiência mística muito forte naquela ocupação”. É importante conferir a força da narrativa registrada no Apêndice B.

Nessa longa narrativa, percebe-se a função hermenêutica do enredo. Afinal uma narrativa (auto)biográfica é uma interpretação de experiências significativas ocorridas

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numa determinada história de vida. A análise da narrativa não deixa dúvidas. O enredo foi construído num movimento que vai da compreensão das dificuldades e empecilhos que impediam um resultado favorável, à luta empreendida pelo movimento sobre demandas ao governo Tasso, passando pelo clímax da enumeração dos sérios problemas que previam uma eventual desmobilização da luta, e, por tanto, uma derrota para o movimento, até desembocar no triunfo glorioso do movimento na satisfação das suas reivindicações. O enredo é conduzido pela experiência mística vivenciada por Dorothy que oferece o sentido maior à narrativa, a sua essência.

A Entrevista Narrativa Temática - enquanto forma semelhante à concepção de Jovchelovitch & Bauer - oferece basicamente uma sequência de episódios (dimensão cronológica) e um enredo (dimensão não cronológica) que, articulando a ordem e a conexão desses episódios entre si, mostra o sentido interpretativo das experiências vividas pelos/as seus/as autores/as. Nesta estrutura metódica, o enredo constitui a essência da narrativa.

O enredo é crucial para a constituição de uma estrutura da narrativa. É através do enredo que as unidades individuais (ou pequenas histórias dentro de uma história maior) adquirem sentido na narrativa. Por isso a narrativa não é apenas uma listagem de acontecimentos, mas uma tentativa de ligá-los, tanto no tempo, como no sentido... É o enredo que dá coerência e sentido à narrativa, bem como fornece o contexto em que nós entendemos cada um dos acontecimentos, atores, descrições, objetos, moralidade e relações que geralmente constituem a história. (JOVCHELOVITCH & BAUER, 2002 p. 92).

Para nossa pesquisa, o enredo abre passagem para a releitura interpretativa da história de vida, em sua multiplicidade de experiências, à luz do que existencialmente passaram a significar as experiências de espiritualidade e de mística na vida dos/das militantes.

O fundamental é que a Entrevista Narrativa Temática, concebida para auxiliar na compreensão de determinadas realidades a partir de experiências de significado (auto)biográfico, apresentou-se como o caminho metodológico idôneo para a aproximação vivencial, “transparente” da espiritualidade e da mística no MST.