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2. ESPECIFICIDADE E POSSIBILIDADES DO CONHECIMENTO

2.4 Experiência Formadora: fonte do conhecimento (auto)biográfico

Experiência Formadora é categoria de análise relevante na nossa tese, porquanto permite compreender como este tipo de experiências constitui-se em fonte e mediação epistemológica (auto)biográfica e, também, em base de sustentação emancipadora das experiências de espiritualidade e de mística dos/das militantes do MST. Para sua compreensão, nos utilizamos das contribuições de Paulo Freire, Marie-Christine Josso e Jorge Larrosa.

Podemos considerar a Pedagogia da Esperança de Paulo Freire expressão do que definiria como fenomenologia da experiência formadora. Embora esse livro seja posterior na produção acadêmica de Freire, ele remete às “obras” primeiras e fundamentais das que decorreram, como seu desenvolvimento teórico, suas obras escritas mais conhecidas, entre as quais: Pedagogia do Oprimido(1988) e Pedagogia da Autonomia (2—6). O próprio subtítulo da obra: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido anuncia as narrativas de experiências formadoras que, como “obras” primeiras, escreveram o sentido maior que marcaria a vida e obra do ser humano, educador e cidadão Paulo Freire. Reencontro implica em releitura que implica em reflexão hermenêutica e que resulta numa práxis, isto é, numa compreensão teórica e prática do existir.

Nas palavras introdutórias do livro Freire apresenta assim o seu conteúdo:

Num primeiro momento, procuro analisar ou falar de tramas da infância, da mocidade, dos começos da maturidade em que a Pedagogia do Oprimido com que me reencontro neste livro era anunciada e foi tomando forma, primeiro, na oralidade, depois, graficamente.

Algumas dessas tramas terminaram por me trazer ao exílio a que chego com o corpo molhado de história, de marcas culturais, de lembranças, de sentimentos, de dúvidas, de sonhos rasgados, mas não desfeitos, de saudades de meu mundo, de meu céu, águas mornas do Atlântico, da

“língua errada do povo, língua certa do povo”. Cheguei ao exílio e à

memória que trazia no meu corpo de tantas tramas juntei a marca de novos fatos, novos saberes constituindo-se então em novas tramas. A Pedagogia do Oprimido emerge de tudo isso e falo dela, de como aprendi ao escrevê-la e até de como, ao primeiro falar dela, fui apreendendo a escrevê-la (FREIRE, 1997, p. 6).

As tramas a que alude Freire configuram os contextos de vida daquelas experiências marcantes que refletidas processual e sistematicamente tornaram-se formadoras e, consequentemente, lugares e canais de conhecimento das realidades que se lhe apresentavam e o desafiavam para melhor compreendê-las. Na Pedagogia da Esperança é possível observar que os enredos narrativos (auto)biográficos ali

apresentados foram elaborados com base a experiências formadoras que emergiram das tramas da existência em referência a fatos, casos, acontecimentos, situações, contextos, etc.

Na mesma percepção, Eggert comenta que “Ao observarmos as narrativas de Paulo Freire em seus livros veremos o quão importante são as histórias trazidas por meio de narrativas que dão vida e sentido a fatos” (EGGERT, 2009).

O próprio Freire compartilhava que:

Neste esforço de relembrar momentos de minha experiência que, necessariamente, não importa o tempo em que se deram, se constituíram com fontes das minhas reflexões teóricas, ao escrever a Pedagogia do Oprimido e continuariam hoje ao repensá-la, me parece oportuno referir-me a um caso exemplar que vivi nos anos 50. Experiência de que resultou um aprendizado de real importância para mim, para minha compreensão teórica da prática político-educativa, que, se progressista, não pode desconhecer, como tenho afirmado sempre, a leitura do mundo que vêm fazendo os grupos populares, expressa no seu discurso, na sua sintaxe, na sua semântica, nos seus sonhos e desejos. (FREIRE, 1992, p. 10)

Este tipo de experiência que se tornou um aprendizado significativo com implicações para o desenvolvimento da própria vida é o que Josso chama de experiências formadoras. Pois como afirma ela:

(...) para que uma experiência seja considerada formadora, é necessário falarmos sob o ângulo da aprendizagem; em outras palavras, essa experiência simboliza atitudes, comportamentos, pensamentos, saber- fazer, sentimentos que caracterizam uma subjetividade e identidades (JOSSO, 2004, p.47-48).

É o proceder de reflexão sobre o vivido que resulta num aprendizado da existência o que caracteriza a experiência formadora. O ato de narrar o refletido sobre a experiência é o que consolida a experiência formadora base do conhecimento (auto)biográfico.

Com Larrosa é importante observar o valor subjetivo da experiência em sua conhecida formulação:

A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça (LARROSA, 1995 p 21).

A diferença da vivência do que acontece, do que se passa, do que toca no cotidiano e devir da vida, a experiência implica uma atitude de conscienciação sobre o sentido do que rodeia e constitui o entorno da existência. Daqui o aspecto singular, pessoal da experiência. A vivência pode ser comum, mas a experiência é algo pessoal, intransferível. Esta é a possibilidade da experiência tornar-se formadora: quando ela suscita um processo de reflexão sobre as mesmas que resulta em: aprendizagens significativas de conhecimentos, saberes e competências; processos de mudança qualitativa; projetos; produção de vida e o sentido maior da mesma (JOSSO, 2010, p. 50-77).

Podemos afirmar que se a dinâmica da narrativa (auto)biográfica aponta a uma experiência formadora e se toda experiência formadora é reflexão de uma práxis (isto é, de uma teoria compreensiva do cotidiano e de uma prática de comportamento habitual da realidade vivida), a narrativa de si traz consigo a chave-pedagógica para a compreensão dos processos de formação, conhecimento e aprendizagem na vida das pessoas. Daqui a pertinência de Eggert chamar a atenção da “pedagogia da experiência formadora” (2008, p. 3) que subjaz à narrativa desses processos e que tem poder de configuração sobre o que fazer com a aquisição desses conhecimentos e aprendizagens. Pedagogia esta, conforme Eggert, que normalmente acontece na “invisibilidade da produção do conhecimento realizado no cotidiano” que precisaria ser mais bem observado e compreendido. (ibid.)

Assim entendem-se os conhecimentos sintéticos a que conduz a epistemológica (auto)biográfica - a respeito da incidência da experiência formadora nesses processos – que encontramos nos estudos de Eggert, Boaventura do Santos, Brandão e Paulo Freire quando declaram, respectivamente: “Quem pesquisa, se pesquisa” (EGGERT, 2009, p. 3), “Todo conhecimento é autoconhecimento” (SANTOS, 2002 p 17), “Reescrever a História através da própria história” (BRANDÃO, 1983, p. 10), “fazendo pesquisa, educo e estou me educando” (FREIRE, 1983, p. 36).

São estas considerações teóricas a respeito da experiência formadora que aproximam da fenomenologia das experiências de espiritualidade e de mística no MST e da sua pedagogia (trans)formadora.

Espiritualidade e mística, enquanto frutos de experiências são, em sua dinâmica interna, experiências formadoras. Espiritualidade e mística apontam a tomadas de

decisão que comprometem o rumo da existência das pessoas, o que demanda sempre uma atitude de contínua reflexão, de voltar-se sobre si.

Embora possam existir experiências de espiritualidade “inautênticas” – no linguajar de Wilber (2007) - o dinamismo existencial de quem as vivencia encaminha sempre à radicalidade do sentido do existir e, neste sentido, a sua qualidade existencial transformadora. A militância é, também, expressão e resultado de experiências formadoras. O que há de comum neste conjunto de experiências é o comprometimento existencial que demandam da pessoa, característica esta de toda experiência formadora.

Na experiência militante e, concomitantemente, na construção da militância, este comprometimento existencial explicita-se em aspectos que lhe são característicos, entre os quais: capacidade de entrega, responsável e compromissado por uma causa, luta, projeto, empreendimento, de valoração social; sentido de pertença a uma coletividade, não necessariamente de incorporação a um partido ou a uma organização; transformação da própria vida numa prática a serviço da luta e da mobilização social assumida onde os projetos e estilos de vida pessoais adaptam-se às necessidades coletivas da luta; prática progressiva de articulação e envolvimento, nessa luta, dos setores sociais implicados; perspectiva de atuação de longo prazo alimentada por ideais revolucionários de natureza utópica.

Nas experiências de espiritualidade e de mística, enquanto vivências radicais da dimensão transcendente do existir ficam perceptíveis as incidências práticas da experiência de Transcendência – em qualquer das suas expressões tematizadas: sagrado, Deus, mistério, energia maior; etc. – na vida das pessoas, com poder de ressignificação das suas vidas com relação a elas mesmas, ao seu entorno social, ao meio ambiente, ao cosmos, e com força capaz de motivar novas atitudes e comportamentos.

A partir das experiências de espiritualidade e de mística dos militantes do MST, lideranças e assentados, compreende-se a relevância da experiência formadora na afirmação da militância. Entendida esta no sentido práxico de um permanente vir-a-ser exigido pela sua qualidade de comprometimento existencial com a luta, projeto, causa do MST, a militância remete necessariamente a um aprender-a-ser gerado, construído e desenvolvido na superação permanente das tensões provenientes da luta pela sobrevivência e da afirmação de novos sentidos de vida, experimentados no acontecer da trajetória de vida dos/das seus/suas militantes.

3. A “MÍSTICA DESCONHECIDA” DO MST7