• Nenhum resultado encontrado

3. A “MÍSTICA DESCONHECIDA” DO MST

3.5 Perspectivas para o estudo da força política da experiência religiosa nos

América Latina é marcado pela experiência religiosa. Esta faz parte da história, da cultura, do cotidiano latino-americano. Sua história é rica em diversidade cultural e traz as marcas incontestáveis da fé, de expressões religiosas, das religiões.

São evidências a diversidade de tradições religiosas - cristã (católica, protestante, evangélica), afrodescendentes (Candomblé, Umbanda), pré-colombianas (mapuche, quéchua, aimará, maia), nativas indígenas – e formas de expressão – privadas (cultos, ritos, símbolos, costumes, procissões, marchas, celebrações, rezas, formação) e públicas (igrejas, templos, terreiros, escolas, instituições, ONGs – ao longo da sua história - pré-colombiana, colonial, republicana, contemporânea.

Contra a concepção homogeneizante moderna América Latina nunca viveu situações de: secularização extrema, ateísmo, anarquismo antirreligioso. Neste sentido, tampouco viveu o que os pós-modernistas quiseram homogeneizar com o chamado “ressurgir da religião”. Afirmar o contrário é deturpar a história.

A matriz cultural religiosa, com indicamos anteriormente, é parte constitutiva da América Latina em todos os momentos da sua história. Inclusive podemos verificar, no auge das ideias socialistas no século XX, que intelectuais como o peruano José Carlos

Mariátegui, já incorporavam novos sentidos da experiência religiosa, da espiritualidade , alternativos à ordem religiosa instituída, para a fundação do socialismo na América Latina.(LÖWY, 2005)

Este contexto exige considerar uma série de questões-chave que possibilitem uma melhor compreensão da incidência da experiência religiosa na atuação política dos militantes e na vida dos movimentos sociais (Movimentos Sociais):

Qual a incidência da experiência religiosa - da Fé, Espiritualidade, Religião - nos MMS? Que papel teve e tem a experiência religiosa na irrupção dos Movimentos Sociais na América Latina? Qual a incidência da experiência religiosa na origem da militância dos/as fundadores/as e membros dos Movimentos Sociais? Qual o papel da experiência religiosa na vida dos militantes? Qual sua repercussão na vida dos Movimentos Sociais?

A influência da mentalidade moderna, colonial eurocêntrica, na produção latino- americana das ciências sociais (LANDER, 2005) é, certamente, uma dificuldade para a análise da experiência religiosa em sua incidência nas práticas sociais, particularmente as de caráter político. Nas correntes de estudo europeias e estadunidenses, existe a predisposição de excluir fé, religião, experiência religiosa, como forças possíveis de expressão política relevante. Em decorrência da categorização dicotômica da ciência moderna onde religião e política correspondem a âmbitos da realidade específicos e distintos, o conhecimento objetivo não tem como superar a separação epistemológica entre: fé e convicções políticas, prática religiosa e prática sociopolítica, mística e ideologia. Daí que a produção acadêmica sobre os Movimentos Sociais no Brasil, assim como no resto da AL, ainda esteja limitada por este condicionamento cultural colonial moderno, que impede a abordagem da incidência da expressão da fé e da experiência religiosa nos Movimentos Sociais e do potencial catalisador das suas lutas.

Interessante é destacar na pesquisa sobre a história dos Movimentos Sociais no Brasil a menção à Igreja Católica e a seus organismos de pastoral social como referenciais importantes na irrupção dos Movimentos Sociais, na sua constituição e na sua trajetória. É verdade que não faltaram estudos mostrando a função política da religião cristã, católica e protestante, nos tempos da ditadura militar. Porém, a abordagem dispensada, limitada pelos condicionamentos do saber moderno eurocêntrico, nunca permitiu a ingerência do que seria do âmbito da religião no âmbito da política. Com relação ao MST pesquisas diversas sobre a sua origem indicam a influencia da Teologia da Libertação, das CEBs de Bispos e de agentes de pastoral no

impulso inicial do movimento, todas estas consideradas como bases sobre as quais o MST foi construindo sua própria ideologia, embora sem vínculos orgânicos com elas.

No entanto, essas análises omitem e descartam qualquer possibilidade de estudo analítico sobre o valor específico da experiência religiosa, da espiritualidade e da mística nos Movimentos Sociais na vida de seus militantes e da sua força de significação sociopolítica.

Ainda não existem estudos sistemáticos sobre a incidência da experiência da fé, religiosidade, espiritualidade e mística nas trajetórias de vida e de luta dos/as militantes e a sua implicação nos Movimentos Sociais.29

A falta deste tipo de estudo, foi que instigou a levantar evidências empíricas e aproximações teóricas significativas que justificam a necessidade de uma pesquisa sistemática sobre o assunto, por enquanto delimitada à realidade brasileira.

Delimitação, aliás, justificável por três razões. A primeira é que no Brasil, a diferença de outros países da América Latina, a religião católica admite, não sem certos conflitos, relativos à tensão entre carisma e poder, 30 diversas tradições eclesiais de representação cristã: a romana e as denominadas de inculturação da fé. Entre estas últimas tradições são reconhecíveis: a religiosa popular, a afrodescendente e, com maior destaque, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), pelo seu protagonismo na história do Brasil contemporâneo. A segunda razão tem a ver com a ação pastoral da Igreja que orienta a uma clara diferenciação e relativa autonomia dos seus quadros de atuação. Basicamente, existem dois âmbitos de atuação pastoral: um voltado para as necessidades intra-eclesiais – sacramentos, formação da fé, movimentos cristãos -; o outro de projeção social, a serviço das necessidades das pessoas, com atenção especial aos setores populares. Deste modo constitui-se a chamada “pastoral social”, de atuação pública, da qual fazem parte, entre outras, a Pastoral Operária e a Comissão Pastoral da Terra, ambas conhecidas pelo seu protagonismo no cenário nacional no período da ditadura militar, e que desenvolvem um trabalho de base permanente de conscientização social, e de apoio a organizações populares, sob uma ótica cristã. A terceira razão é que no Brasil todas as igrejas de tradição protestante - entre as quais a luterana, metodista, presbiteriana, anglicana, com menos intensidade a batista –, e a Igreja Católica, assumiram há décadas uma atuação ecumênica de serviço às

29 Elucidativo acompanhar as histórias de vida de fundadores do MST, e suas experiências religiosas,

documentadas pelos jornalistas Scolese e Lima (2008).

necessidades de construção da democracia, da cidadania e dos direitos do povo brasileiro.

Nesta perspectiva apresentamos, a seguir, pistas acadêmicas sugestivas para o estudo sistemático da experiência religiosa nos movimentos sociais.

a) A vertente culturalista de abordagem dos Movimentos Sociais oferece sem dúvida um referencial pertinente para o aprofundamento do lugar e papel da experiência religiosa na vida dos militantes como na constituição e desenvolvimento de certos movimentos.

Um dos elementos constitutivos da cultura em geral, tipicamente a latino- americana, é a religião. Neste sentido, toda alusão à dimensão cultural e aos elementos da cultura nas construções identitárias dos Movimentos Sociais, devem pressupor o aspecto religioso no referencial cultural.

De outro lado, quando se enfatiza que “A construção democrática passa a incluir, sem dicotomias entre público e privado, a identidade que se fortalece, solidária e afetivamente, nos laços primários de idade, gênero, moradia e etnia.” (apud SPOSITO e FISCHER em MELUCCI, p.19) deveria também se indicar os laços de crença que unem e fortificam os atores sociais. Eis o desafio apontado por Melucci nas sociedades complexas no desvelar as “dimensões culturais dos conflitos e a ação inovadora dos Movimentos Sociais.” (MELUCCI, 2001) Deste modo, é necessário considerar, com especial atenção, como um dos elementos de referência cultural dos Movimentos Sociais a base de atuação pastoral das igrejas acima indicado, pela qual, podemos presumir, muitos militantes se socializaram e adquiriram inspiração para seu engajamento movimentista e público, porém em relação de autonomia e alteridade com essas igrejas e suas teologias.

Basta lembrar, a modo de arquivo documental, que nos quadros administrativos do primeiro governo do presidente Lula, em 2002, e na atuação política nacional recente, estavam outrora membros das CEBs e da pastoral social da Igreja Católica, posteriormente militantes de organismos sindicais e Movimentos Sociais. 31

31

Em artigo publicado no jornal Correio Braziliense, Frei Betto escreveu: “Contemplo a Esplanada dos Ministérios. Ali está a ministra Marina Silva, seringueira, analfabeta até os 14 anos, militante das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) do Acre. [...] Ao lado, Benedita da Silva, ministra da Assistência e Promoção Social, líder comunitária no morro Chapéu Mangueira, atrás do nosso convento dominicano do Leme, no Rio. Conhecia-a casada com Bola, participante do Movimento Fé e Política. José Fritsch, ministro da Pesca, integrante das CEBs de Chapecó, é discípulo de dom José Gomes.

"No monolito preto do Banco Central, reencontro Henrique Meirelles, militante da JEC (Juventude Estudantil Católica) de Anápolis, movimento do qual fui dirigente nacional nos anos 60. [...] No

b) A análise crítica que Ana Maria Doimo faz das vertentes interpretativas a respeito da natureza, possibilidades, e eficácia das práticas dos chamados “novos movimentos”, oferece outros elementos a considerar. (DOIMO, 1995, p.49-50)

A discussão dos modelos teóricos que tencionam os polos autonomia- institucionalização, quando confrontados com as formas de participação para a constituição e desenvolvimentos dos movimentos, menos pautados por relacionamentos de classe e mais orientados ao crescimento e ampliação das funções do Estado sobre a sociedade, mostram-se insuficientes para a compreensão da natureza e das projeções desses movimentos. A “marca comum desses novos impulsos participativos encontra- se na verdade, na ação direta.” A sua novidade reside “no fato de se originarem fora da esfera produtiva e dos canais convencionais de mediação política, em espaços fortemente marcados por carências referidas ao vertiginoso crescimento e crise do Estado capitalista.” Isto implica, por tanto, “em questionar os movimentos de ação direta como parte do fenômeno da socialização da política, isto é, como parte de um processo que, fertilizou o repertório participacionista, ampliando o surgimento de novos formatos de participação política...” (DOIMO, 1995, p.50)

Para nossa análise interessa indagar sobre os mecanismos cotidianos que direta ou indiretamente gravitaram para o impulso na participação política de base e para o surgimento desses movimentos. Mais ainda, se considerarmos o fato que, a partir da década dos anos de 1980 com a chegada da esquerda política ao poder, com as expectativas de satisfação das grandes demandas dos movimentos sociais, o trabalho de

ministério de Minas e Energia está Dilma Roussef, minha vizinha de rua na infância, companheira de cárcere no Presídio Tiradentes, em São Paulo, nos anos 70. José Graziano, à frente do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome, também foi meu companheiro de JEC, responsável pela coordenação estadual em São Paulo [...].

"Olívio Dutra, ministro das Cidades, militante da Pastoral Operária. [...] Dentro do Palácio do Planalto, a viagem ao passado me traz de volta José Dirceu, líder estudantil que se escondeu em nosso convento de São Paulo, nos anos 60 [...].

"O gabinete pessoal do presidente da República é comandado por meu parceiro de Pastoral Operária, Gilberto Carvalho, que foi dirigente nacional do movimento Místico. [...] À frente da Secretaria de Imprensa está Ricardo Kotscho, com quem fundei Grupos de Oração, ativos há 23 anos. Ao lado de minha sala está o gabinete presidencial [...] agora, na Esplanada dos Ministérios, somos uma comunidade responsável pelo governo do Brasil”. (Correio Braziliense, 23-1-03)

“Pouco depois, Lula ainda nomeou outros nomes ligados à esquerda católica, como o ex-membro da CPT (Comissão Pastoral da Terra) para Presidente do INCRA, Marcelo Resende, que chega a usar “na mão

esquerda um anel escuro feito de tucum, palmeira típica da região Norte do País. É um ornamento que [...] é usado por padres, freiras e leigos vinculados à ala progressista da Igreja Católica. Destina-se sobretudo

conscientização política dos setores populares deixou de ser uma prioridade dos quadros políticos institucionais.

Deste modo, podemos questionar em que medida a atuação permanente da pastoral social das igrejas nos setores populares, especialmente a católica, passou a ser nesse tempo um referencial na formação “política” e “espiritualidade” de base dos futuros militantes dos movimentos populares. Participação provavelmente sob inspiração da reflexão militante da fé, como sistematizada pela Teologia da Libertação, a partir da experiência de engajamento de cristãos e cristãs nas lutas pela satisfação das demandas populares. Reflexão construída a partir de uma hermenêutica libertadora da Bíblia em cujos conteúdos essenciais destacam-se: a pertença cidadã ao Povo de Deus na luta histórica pela sua libertação contra os reinos opressores; o protagonismo profético e messiânico do povo guiado e fortalecido por Javé, o Deus da Libertação dos pobres e oprimidos; a construção histórica do Reino de Deus, da “Terra que mana leite e mel”, a partir da fundação de novos princípios de relacionamento social alicerçados na justiça, na solidariedade, no bem-estar comum, tendo como modelos a prática libertadora de Jesus de Nazaré, o Messias crucificado, e as práticas sociais das primeiras comunidades cristãs. Reflexão essa que também contribuiu para a recuperação da Tradição Libertadora da Igreja dos pobres na AL e, com esta, para a legitimação, na ordem da fé, de uma tradição de luta que se atualiza nos novos protagonistas da história presente.

Embora, possa parecer uma reflexão um tanto mecânica entre reflexão e ação política, essas considerações nos alertam à necessidade de compreender melhor os mecanismos cotidianos e representações sociais e culturais que inspiraram e abriram caminhos para a participação política de base e posteriormente à militância nos movimentos sociais e populares.

c) A pesquisa inovadora de Gabriel Feltran (2005) sobre a prática política nos movimentos sociais da periferia de São Paulo é importantíssima porque oferece elementos que reforçam o que estamos analisando.

Na análise da trajetória do Movimento de Favelas o autor observa que o seu diferencial, com relação a outros movimentos, é o trabalho de base que, desde o início das lutas, teve a participação de lideranças religiosas e comunitárias. Segundo Feltran, foi graças a um campo discursivo público, em que concepções diversas de mundo circulavam e se elaboravam, originado nas interações entre distintos atores sociais como sindicatos, igreja progressista e o PT emergente, decorrência das lutas

microscópicas iniciadas pelas rezas e pelas reuniões lideradas por um padre (Patrick), o que levou estas lutas a se unirem a outras lutas, com milhares de pessoas e assim ganhar estatura política. Feltran é enfático em afirmar que o Movimento de Favelas foi ganhando adesões significativas, não por apelo do Pe. Patrick mas “porque havia, naquele momento, um campo discursivo público que permitia que, em muitos casos, surgissem lideranças religiosas, sindicais, intelectuais, comunitária s, ligadas à educação Popular...” Campo discursivo, aliás, elaborado em torno destas lideranças e que refletia convergência de interesses no que se debatia em casa, fábricas, escolas, sindicatos, igrejas, etc. (FELTRAN, p. 327)

A partir desta análise podemos perguntar em que medida a reflexão militante da Fé cristã, elaborada e sistematizada pela Teologia da Libertação - incentivada pelos agentes de pastoral inseridos nas favelas -, a vivência cotidiana nas CEBs - como lugar de encontro fraterno e de conscientização das lutas de libertação do povo da periferia -, a leitura libertadora da Bíblia – realizada semanalmente, nos círculos bíblicos espalhados nos bairros populares -, o posicionamento profético de agentes de pastoral – bispos (como Dom Paulo Evaristo Arns), padres, religiosos/as, leigos/as – em defesa dos/das trabalhadores/as, dos/das pobres e marginalizados/das da sociedade, incidiram no engajamento político popular e na participação em lutas que deram origem a movimentos sociais?

d) A pesquisa e o debate que Cecília Paoli (1995) trouxe sobre a legitimidade política dos “novos movimentos sociais” é interessante a nosso estudo pelo apelo que traz à necessidade de firmar novas óticas de aproximação sob o risco de ignorar ou menosprezar sua importância para a construção da cidadania, dos direitos e da democracia. Esse novo olhar deveria entender esses movimentos pelo que realmente são e significam, e não pela sua adequação com determinadas teorias interpretativas a seu respeito, para então indagar sobre suas possibilidades democráticas a partir de duas questões centrais:

Quem são esses atores e como se pode qualificá-los de “sujeitos

políticos”; e, considerando-se que suas mobilizações não vêm de

partidos, sindicatos, burocracias executivas e governos (ou seja, não há organização política clássica), que forma de expressão coletiva é esta que consegui, com eficácia simbólica insuspeitada, questionar o estilo de gestão governamental centralizado, excludente e privatizado da coisa pública?(PAOLI, 1995, p. 33)

As “questões perplexas” levantadas pelos/as pesquisadores/as mostraram as potencialidades de duas situações, do tipo “inédito-viável”, de Paulo Freire:

Quem eram esses atores (dos “novos movimentos sociais”)? Pobres,

migrantes, analfabetos, mulheres, padres e freiras, militantes em crise; como era possível que tivessem criado novas formas de organização participativa em bases locais democráticas, simultaneamente questionando o poder público em seu lado mais indignante: a profunda irresponsabilidade pública e violência dos governantes.(PAOLI, 1995, p. 33)

Para o nosso interesse de estudo estes destaques nos levam a questionar sobre a motivação profunda que levou essas pessoas a participarem como atores protagonistas de suas lutas e sobre as fontes de inspiração para criar novas formas de organização participativa de caráter democrático. Entendemos que uma possível resposta a estas questões vem do fato de considerar o real impacto “político” que a “cultura religiosa da libertação” – Teologia da Libertação, CEBs, Pastoral Social, Círculos Bíblicos, posicionamentos proféticos de agentes de pastoral, promoção humana, Conferências Episcopais de Medellín (1968), Puebla (1979) e sua famosa “opção preferencial pelos pobres” - pode ter ocasionado na vida dessas pessoas pobres, marginais, sem importância, para se autoconvocar a serviço da luta popular. Coincidentemente, a leitura popular da Bíblia, incentivada a partir do final da década dos anos 70, especialmente pelo Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI), organização cristã ecumênica fundada em 1979 -, privilegiava a atualização de histórias bíblicas de caráter libertador onde os pobres, desafiados por Javé (no Antigo Testamento) e por Jesus (no Novo Testamento), tornavam-se não só protagonistas de uma “história de salvação”, desde o “reverso da história”, mas construtores de uma nova identidade social, em ruptura com os centros de poder opressor e explorador e com situações de exploração e marginalização social.

A concomitância de ambos os processos, de afirmação de uma “cultura cristã de libertação” junto aos setores populares, de um lado, e de desenvolvimento de novas formas de exercício da política e da democracia, de outro lado, torna pertinente a pergunta pela incidência e grau de importância da experiência religiosa e da espiritualidade para o engajamento social e político nos Movimentos Sociais. É outra situação do tipo “finito-viável” em que a experiência religiosa mostra sua potencialidade para o exercício de práticas de cidadania, de direitos de democracia.

e) Por último, coloco em relevo a contribuição de MELUCCI (2001) para a melhor compreensão das formas de ação coletiva que gravitam nos Movimentos Sociais. No conjunto de características comuns a essas formas de ação, que é, segundo ele, um elemento característico de muitos movimentos, menciona o que ele denomina de “utopia regressiva de conteúdo direta ou indiretamente religioso”. Trata-se da definição da identidade do grupo em referência a um mito totalizante, muitas vezes de conteúdo religioso. Na situação de crescente laicização da vida social “o apelo utópico com conotações religiosas transforma-se em um dos conteúdos possíveis da ação coletiva”. O conteúdo “religioso”, enquanto mito totalizante sobre o qual se baseia a identidade pode transformar-se numa forma cultural de resistência à racionalidade instrumental dos aparatos dominantes. (MELUCCI, p. 85)

Interessante observar em Melucci, ainda na sua ótica moderna, a percepção “mística” que tem do protagonismo dos Movimentos Sociais, como deixa transparecer em seus escritos. “Os movimentos das sociedades complexas são profetas sem encanto”, é com estas palavras que introduz sua Invenção do presente (MELUCCI, p. 21), e continua:

Os movimentos são um sinal. Não são apenas produtos da crise... São ao contrário, a mensagem daquilo que está nascendo. Como os

profetas, “falam à frente”, anunciam aquilo que está se formando... A

inércia das velhas categorias do conhecimento podem impedir de ouvir esta palavra, e de desenhar, com liberdade e responsabilidade, a ação possível... Os movimentos contemporâneos são profetas do presente. Não tem a força dos aparatos, mas a força da palavra. Anunciam a mudança possível, não para um futuro distante, mas para o presente da nossa vida... Falam uma língua que parece unicamente deles, mas