• Nenhum resultado encontrado

3. A “MÍSTICA DESCONHECIDA” DO MST

3.4 Conhecimento (auto)biográfico das experiências de religiosidade, espiritualidade e

3.4.3 Experiência de Religiosidade

Nas quatro entrevistas o religioso da experiência está relacionado, direta ou indiretamente a práticas instituídas nas tradições religiosas, em particular o catolicismo,

tais como: culto, celebração da palavra, fé em Cristo modelo do viver, valores, dedicação a uma religião na condição de leigo, padre, freira, agente de pastoral, comportamento sistematizado, missa, consideração a bispos, etc.

Concomitantemente aparece claro nas quatro entrevistas que essa experiência religiosa adquire sentido para elas/es quando: ligada às “ações concretas do dia-a-dia”; se crê que “Deus habita na vida do oprimido”; “se traz a celebração da palavra para os valores da vida”; “fé transformada em gestos concretos”; “ligada à dedicação a uma causa que a gente acredita”; cultivada em “escolas populares” e “centros de treinamento” de formação cristã libertadora; orientada por bispos e padres que “são gente da gente”, que “sentem a mística como a gente”, “que defendem um mundo que a gente também acredita”; ligadas “às nossas mobilizações do MST”; exprimem em profundidade, em vivência mística, em público o significado sacramental do MST.

Estas considerações a respeito da compreensão da experiência religiosa pelos/as militantes sintetizam-se na experiência vivenciada por Zé Lourenço:

Foi à celebração eucarística do centenário do Dom Helder. Foi muita emoção, não tem como esquecer. Foi Deus que preparou aquele momento. A gente foi, vários companheiros e companheiras. Estava celebrando o Pe. Haroldo. E aí, era pra a gente ir na caminhada ao altar levando a bandeira ... Só que na hora que a gente vai entrar, o Lúcio Alcântara estava lá. Recebe aquela túnica e entra na procissão de entrada. Então, nós não entramos. Nós ficamos com a bandeira e ficamos a um lado da Igreja. Quando é no ofertório, o padre chama a gente. Ele já tinha feito referência ao MST que

estava presente na eucaristia. Mas, na hora do ofertório ele indicou: “vinde MST ao altar”. Aí a gente leva a bandeira e pensamos que ia ficar só nisso. Eu nunca tinha

visto isso. Ele chama a gente para segurar o cálice e o pão, e foi abençoado nas nossas mãos. Sabe, assim, segurar o cálice e o pão ali na frente, na igreja, no altar... Assim, aquela coisa... uma emoção que foi pra além. Não tem como explicar esta emoção... nesses anos que a gente tinha vivido... em todos esses momentos de participação na igreja, momentos em que acontecem a mística... Mas, daqui a 50 anos não sei se a gente ainda vai conseguir ter o prazer de viver uma experiência tão bela, tão rica de sentimento como foi esta. Experiência de valor tanto coletiva, enquanto MST, porque sabíamos tranquilamente que era o MST que estava ali, quanto pessoal.... Acho que as palavras nesse momento são poucas para expressar o que no momento a gente passava.

Então, esse é o sentido da experiência religiosa que tentei traduzir aqui, nesse círculo de palavras. (ZÈ LOURENÇO)

Existe consciência clara que religiosidade esta relacionada à cultura camponesa e à devoção familiar. Religiosidade tem a ver com identidade cultural e pertença familiar. As pessoas, em particular quem vem do campo, costumam trazer consigo um comportamento de dedicação e devoção a certas práticas religiosas cultivadas nas famílias e nas igrejas.

Religiosidade é meu ato de rezar ao deitar, ao levantar. E, tentando dizer o seguinte: é que foi uma das coisas que primeiro a gente foi ensinado. A mamãe pegava na mão pra a gente fazer o primeiro sinal ao dormir. Ou a gente ia aonde ela estava deitada, ou ela ia lá na rede pra pegar na mão d’agente e fazer o primeiro sinal, né. E, assim, era muito forte, quando dava não sei porque, que na hora que ela estava ensinando a gente, né, o papai estava fazendo também. Então uma das coisas... Nunca eu vi lá em casa o pessoal rezando o terço, lá em casa mesmo... Mas a questão do deitar, do benzer, na hora do deitar e levantar, pra mim isso foi muito marcante, né. Então eu coloquei esse sentindo aqui dessa religiosidade, né, nesse sentindo do íntimo por restrição a pessoa desse rezar, do ato do rezar. E aí do rezar vai: Estou rezando para quê, estou rezando com quem, né. Então essa questão do oral, né, da oração. (ZÈ LOURENÇO)

Eu me lembrei muito das missões populares, das festas da colheita, né, assim. Essas expressões da religiosidade do povo que a gente vivenciou muito, como esse compromisso com o projeto de demarcar território (DOROTHY)

Religiosidade é o cultivo de crenças e manifestações que se tornaram historicamente tradições, repetições, orações, cantos, festas religiosas populares, milagres e que tem um grande valor simbólico no imaginário da vida das pessoas... Eu sempre tinha o costume de no começo do ano ir à igreja de São Francisco pra fazer umas orações... Acho assim, muito interessante essa questão do imaginário religioso do povo. Por exemplo, na comunidade onde eu nasci eu fiz uma vez uma pesquisa: eu andei em todas as famílias recuperando as orações que o povo sabia. E as tradições. Consegui recuperar mais de trezentas orações. E uma coisa muito bonita: tinha oração que o povo me ensinava com a lamparina acesa, dentro dum quarto e ainda dizia: essa

oração eu sei ela há 20 e tantos anos, trinta e tantos anos e nunca ensinei a ninguém. Vou ensinar a você, mas essa é uma oração que ele guardava... Aí ele falava da força da oração, do segredo da oração, né. Que ela era uma oração poderosa. Eu achava isso tão bonito, sabe? E eu gostava muito disso... Em todas as orações que nos recuperamos nos botávamos o nome das pessoas, né. E era muito interessante, que isso, essas orações, até hoje, as nossas catequistas lá da comunidade, ainda tem umas que elas ensinam para as crianças, né. Que veio de uma tradição do povo, né. (MARGARIDA)

Na compreensão do conceito religiosidade chamou a atenção certa perspectiva secularizante (no sentido de Pierucci, de pensá-la fora do campo de influência da família e da igreja católica) que tenta prevalecer em algumas das entrevistadas, quem sabe em decorrência do peso ideológico da formação no MST onde este conceito parece ressignificado.

Religiosidade: é dedicar-se a uma missão, pra qual tenha a teologia como inspiração. E aí eu coloquei assim, que: a religiosidade é diferente do dogmatismo. E aí essa coisa assim do... essa religiosidade, essa inspiração, do acreditar, né. E do acreditar que há uma força, um Deus, uma força que inspira, que motiva, né. Mesmo sem ter que dizer que a imagem, que isso , que aquilo, mas é uma força maior que nos ajuda. É isso. (MARIA DE ARAÚJO)

Religiosidade. Eu coloquei: Expressão da fé do povo no Deus da vida, no Deus da luta. E como... eu me lembrei muito... religiosidade, essa coisa do fazer sempre, assim. Então eu botei como compromisso com o projeto libertador. A religiosidade tá muito ligada a esse compromisso permanente com o projeto. Então é essa expressão desse compromisso do projeto libertador. (DOROTHY)

Quando indagadas/os as/os entrevistadas/os sobre qual dessas experiências as identificavam mais, foram colocadas dois tipos de resposta: uma centralizada na mística, embora sem deixar de reconhecer a importância das outras; outra que valoriza a complementariedade de todas elas de modo que não seja possível optar por uma em particular. Respectivamente são:

Pra mim a mística ela é bem mais forte, a partir do que eu coloquei, assim, eu acho que a mística ela me responde mais. A minha vivência ela é bem mais forte do que as outras. É que, assim, confunde. Mística e espiritualidade elas são muito parecidas, assim, nessa coisa da motivação, que é o motivador e tal, né. Mas a mística ela tem elementos que, pra a vivência que nos temos hoje e que eu tenho, assim, dentro do movimento, né, do movimento social na luta permanente, e tal, a mística ela responde bem mais, assim. Não é que responde bem mais, é que ela é mais completa. (DOROTHY)

Eu acho difícil dizer qual é. Traduzir, talvez, falar em mística, eu poderia falar dessas três. Eu poderia trazer elementos dessas outras três palavras, dentro da palavra mística. Como também falando de espiritualidade, poderia estar trazendo elementos que foram colocados nas outras três. (ZÉ LOURENÇO)

3.5 Perspectivas para o estudo da força política da experiência religiosa nos