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PARTE II – O ESTUDO: METODOLOGIA E DESENVOLVIMENTO DO

2. ESTUDO DE CASO

2.3. TECNICAS DE RECOLHA DE INFORMAÇÃO

2.3.2. Entrevista

A entrevista reenvia-nos para uma conversação entre duas pessoas, dirigida e registada pelo entrevistador, com o propósito de favorecer a produção de um discurso contínuo e com uma certa linha argumental do entrevistado sobre um tema demarcado pelo fenómeno em estudo. Na perspetiva do paradigma qualitativo, a entrevista assume um caracter intimista, uma vez que se utiliza para obter informação que permita compreender mais do que explicar, procurando maximizar os significados sobre o objeto de investigação dentro de um contexto único sem pretender generalizar os resultados. É também mais flexível, adotando uma configuração de estímulo a discursos sem esperar que sejam objetivamente verdadeiros mas sim subjetivamente sinceros (Fontana & Frey, 2005; Denzin & Lincoln, 2006).

Para explorar as representações do papel do enfermeiro e reunir as perspetivas dominantes sobre as suas práticas e as expectativas acerca do seu papel nas três equipas de saúde, orientou-se a entrevista para a informação, e não para a resposta, visando circunscrever a compreensão e o ponto de vista de cada entrevistado (Lessard-Hérbert et

al., 2005). A entrevista deste género é frequentemente não estruturada mas atendendo

ao tipo de estudo e à diversidade de participantes a entrevistar, optou-se pela entrevista semiestruturada, baseada em diretrizes genéricas e um conjunto de temas, sob a forma de guião, para abordagem durante cada entrevista. Flick (2005) considera a entrevista semiestruturada mais adequada em estudos de caso múltiplo a fim de garantir a comparabilidade entre casos e Patton (2002) associa-lhe como vantagem o facto de permitir reduzir o efeito de ‘enviesamento’ que poderia ocorrer pela obtenção de informação mais abrangente a partir de certos participantes e informação menos

111  sistemática e profunda a partir de outros, o que poderia ocorrer uma vez que se realizaram entrevistas individuais a participantes diversos: enfermeiros, médicos, assistentes técnicos e utentes. Apesar de a entrevista ter alguma estruturação, conferida pela formulação prévia de questões, a investigadora assegurou que fossem realmente questões abertas que permitissem aos entrevistados exprimir-se na sua própria linguagem e manifestar-se de forma livre, não condicionada pela formulação da questão, permitindo que cada entrevistado impusesse o grau de estruturação da sua entrevista.

Perante participantes distintos operacionalizaram-se as diferentes entrevistas com base em critérios de ordem organizacional e cultural. Construíram-se três Guiões de entrevista não muito estruturados do ponto de vista do grau de diretividade e com duas grandes dimensões analíticas. Os Guiões de entrevistas aos utentes (Anexo II) e outros profissionais (Anexo III) nortearam‐se pelos mesmos critérios de discussão de duas temáticas principais:

- Representações sobre o papel do enfermeiro na dinâmica de trabalho na equipa de saúde da respetiva Unidade Funcional;

- Representações sobre as competências do enfermeiro e respetiva evolução na resposta às necessidades de saúde dos utentes.

O Guião de entrevista aos enfermeiros (Anexo IV) para além das questões mais abrangentes conjugou-se com o uso de imagens para a Foto-Elicitação, para discussão específica das temáticas comuns:

- Representações sobre o papel e competências do enfermeiro na dinâmica de trabalho na equipa de saúde da respetiva Unidade Funcional;

- Representações sobre a mudança organizacional e desenvolvimento da cultura interdisciplinar na equipa de saúde da tipologia da respetiva Unidade Funcional;

- Expectativas sobre o desenvolvimento do papel do enfermeiro e construção da identidade profissional na dinâmica de trabalho interdisciplinar.

Enquanto técnica, a entrevista implica sempre um processo de comunicação em que entrevistador e entrevistado se podem influenciar mutuamente, seja consciente ou inconscientemente. O encontro que a entrevista proporciona, entre entrevistador e entrevistado, prevê a existência de um ‘contrato’ que integra um conjunto de saberes mínimos partilhados por ambos. Este ‘contrato’ é negociável ao longo da entrevista de modo a que o entrevistador possa orientar a entrevista em função dos objetivos do

estudo. Por isso, longe de constituir uma permuta social espontânea compreende um processo um tanto artificial e simulado, através do qual o investigador cria uma situação concreta (a entrevista). A entrevista compreende, assim, o desenvolvimento de uma interação criadora e captadora de significados em que as características pessoais do entrevistador e do entrevistado influenciam decisivamente o seu decurso. Só será dito aquilo que se supõe ser aceite no intercâmbio com o outro, mas o grau de aceitação está condicionado pela posição social e cultural do entrevistador e do entrevistado e pelo cenário específico onde se desenvolve a entrevista (Lessard-Hérbert et al., 2005; Gergen & Gergen, 2003; King & Horrocks, 2010). A facilidade de acesso ao campo e a relação prévia da investigadora com a maioria dos participantes, com exceção dos utentes, foi propiciadora de um ambiente favorável à produção de uma informação verosímil e pertinente, contudo, acautelou-se sempre uma relação equilibrada entre familiaridade e profissionalidade. A maioria dos autores alerta para a importância da escolha de um local neutro para a realização das entrevistas, no entanto Bernard and Ryan (2010) defendem que devem ocorrer num contexto socialmente relevante para a construção de sentido das informações a obter. Neste pressuposto, optou-se por sugerir aos participantes que as entrevistas ocorressem no espaço físico da sua unidade funcional considerando a contextualização sociocultural do fenómeno em estudo e das temáticas em discussão.

Apesar da existência do guião temático prévio que integrava os objetivos da entrevista e orientava a interação, a investigadora procurou criar ao longo da entrevista uma relação dinâmica em que se foram abordando os temas em estudo, sendo que a maioria das vezes não seguiu o percurso descrito no Guião alterando a ordem e forma das perguntas e acrescentando outras, sempre que considerou necessário. Cada entrevistado tem um estilo próprio de resposta e nesse sentido a investigadora adotou uma postura de ouvinte interessada, controlando o ritmo da entrevista em função das respostas do entrevistado. O que é crucial na condução das entrevistas é que as questões permitam ao entrevistador recolher o discurso dos participantes sobre o fenómeno de interesse ou o objeto de estudo (Fontana & Frey, 2005; Gergen & Gergen, 2003; King & Horrocks, 2010). A flexibilidade da entrevista semiestruturada permite modificações no seu decurso sempre que há possibilidade de explorar aspetos de interesse, pelo que Patton (2002) recomenda o recurso a caderno de campo ou ficha de entrevista para registo de observações sobre particularidades da entrevista ou entrevistado, para além do equipamento de gravação

113  áudio. Optou-se pela ficha de entrevista para anotações tendo por base a dupla recomendação de Lessard-Hérbert et al. (2005): indicia ao entrevistado que se está muito interessado no que ele está a dizer e permite ao entrevistador registrar, por escrito, as suas observações sobre a entrevista em si e anotar dados, ideias e comentários importantes dos entrevistados para além de reacções e impressões que a gravação não capta.

A habilidade para questionar é a chave para o sucesso de uma entrevista. Wengraf (2004), Bernard and Ryan (2010), King and Horrocks (2010) e Turner (2010) tecem algumas considerações sobre a condução da entrevista e proporcionam orientações que se procuraram ter em conta. A interação verbal em cada entrevista foi sempre iniciada pela investigadora com uma explanação sucinta dos objetivos do estudo e explicação da necessidade do registo da entrevista em gravação áudio, garantindo a confidencialidade dos dados recolhidos e obtendo o consentimento formal do entrevistado. Após esta fase introdutória iniciou-se a fase de interrogação convidando o interlocutor a iniciar a conversação através de uma questão de afirmação gradual, isto é, demonstrando algum conhecimento sobre o tema para conduzir o entrevistado a falar ao sentir que partilhava algo com a entrevistadora.

No decurso da entrevista foram-se conjugando questões longas e concisas, tendentes a produzir também respostas mais longas e precisas com o desenvolvimento dos pensamentos do entrevistado, com questões incentivadoras - Pode descrever?, e outras de reiteração através da repetição do último enunciado do entrevistado e pedindo para continuar. Fundamentais para a construção discursiva da entrevista foram também alguns comentários que favorecem a produção da fala, assim como as sínteses parciais que ao sublinharem as palavras do entrevistado estimularam o discurso descritivo, e a gestão dos silêncios para permitir a continuação do pensamento e conclusão da fala. Por vezes, para reorientar a entrevista no sentido dos objetivos do estudo, foi necessário conduzir o entrevistado a movimentar-se nas memórias através de pontos de referência, sobretudo os utentes, solicitando-lhes que recordassem os últimos contatos com os enfermeiros.

A familiaridade da investigadora com a maioria dos participantes facilitou a sua adesão na participação no estudo mas a negociação da data de realização da entrevista teve sempre por base a disponibilidade, o sentido de oportunidade e a iniciativa dos participantes, o que se revelou mais moroso que o previsto perante algumas

contingências do funcionamento das próprias unidades funcionais. Planeou-se que as entrevistas individuais ocorressem sequencialmente, iniciando-se pelos enfermeiros e posteriormente pelos outros profissionais e utentes. Não existindo interligação entre a recolha de dados junto de outros profissionais e dos utentes com qualquer outra estratégia e não dependendo da recolha prévia de informação junto dos enfermeiros, equacionou-se a revisão e alteração da sua calendarização. Assim, prosseguiu-se em simultâneo com as entrevistas aos diferentes participantes.

Não deixou de ser relevante verificar que as entrevistas aos enfermeiros e aos médicos se revelaram mais exequíveis. Houve recetividade dos assistentes técnicos para colaborar no estudo, marcaram-se as entrevistas mas foi particularmente difícil encontrar disponibilidade nas datas assinaladas, alegando sempre carga de trabalho e, nalguns casos, só remarcando para nova data após clarificação da sua forma de contribuição e reforço da importância do seu contributo. Relativamente aos utentes, se alguns acederam de imediato a colaborar e a realizar a entrevista, a maioria invocou indisponibilidade de tempo, quer antes ou após do seu atendimento, não aceitando ser entrevistados. Em alguns casos, o utente a quem se solicitou a entrevista recusou-se a participar, mas indicou o familiar que o acompanhava que, após verificação se reunia os critérios de inclusão na amostra, acabou por conceder a entrevista. Em ambas as amostras, a dificuldade em concretizar as entrevistas pode estar relacionada com o que Resnik (2011) designa por ‘assimetria social do posicionamento dos atores’ uma vez que há distanciamentos simbólicos perante a entrevista, determinados pelo campo social e leigo dos entrevistados e o campo profissional e científico do entrevistador.