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PARTE II – O ESTUDO: METODOLOGIA E DESENVOLVIMENTO DO

1. OPÇÕES METODOLÓGICAS

O investigador aborda o mundo com um conjunto de ideias, um esquema (teoria, ontologia) que especifica numa série de questões (epistemologia) que então estuda nos seus aspetos específicos (metodologia, análise) e a rede que contém essas premissas epistemológicas, ontológicas e metodológicas do investigador pode ser denominada de paradigma (Denzin & Lincoln, 2005; Lessard-Hérbert, Goyette & Boutin, 2005). Assim, a ontologia do investigador dirige a epistemologia e posteriormente a metodologia, enquanto o paradigma fornece um quadro ou uma lente através da qual se pode compreender e conduzir um estudo (Welford, Murphy & Casey, 2011).

Flick (2004) sublinha que o ponto de partida de um estudo seja centrado num problema e a escolha do tipo de abordagem depende do objetivo e do fenómeno a estudar. Assume-se que o fenómeno do qual se ocupa este estudo é complexo e que a compreensão do contexto social e cultural onde ocorre é um elemento importante para a pesquisa. O desenvolvimento de equipas multiprofissionais, como um dos elementos chave da reorganização em curso nos CSP para responder às necessidades de saúde das pessoas e da comunidade, pressupõe a construção de um projeto comum de intervenção em saúde. Para este desiderato é necessário que a intervenção específica de cada grupo profissional se complemente, se construa na interação entre profissionais e com os utentes. Assim, a implementação destas novas equipas exige que a prestação de cuidados de saúde passe a ter como característica central uma intervenção complexa em que a interdisciplinaridade é essencial, favorecendo a partilha de conhecimentos e intervenções, admitindo que todas as disciplinas e profissionais na área da saúde se tocam num ponto comum, o utente, e que este último faz parte desta mesma equipa. Neste entendimento, problematizou-se o papel do enfermeiro enunciando-se como questão central de investigação:

- Como perspetivam e quais as expetativas dos enfermeiros, dos outros profissionais e dos utentes, sobre o seu papel nas equipas de saúde das unidades funcionais do Centro de Saúde?

Para o estudo desta problemática elaboraram-se formulações sobre o que se procura conhecer:

75  - Como perspetivam os enfermeiros o seu papel na equipa?

- Que saberes e práticas valorizam os enfermeiros ao caraterizar e perspetivar o seu papel?

- Que expetativas têm os enfermeiros sobre o desenvolvimento do seu papel na equipa? - Como perspetivam os outros profissionais da equipa o papel do enfermeiro?

- Que expetativas têm os outros profissionais sobre as competências que o enfermeiro poderá mobilizar na equipa?

- Como perspetivam os utentes o papel do enfermeiro na equipa de saúde?

- Que expectativas têm os utentes sobre as competências do enfermeiro para responder às suas necessidades?

Estas questões constituem as premissas para identificar e analisar as perspetivas e expectativas dominantes sobre o papel do enfermeiro, objetivos principais do estudo. Procura-se obter um perfil geral de um fenómeno, descobrindo e apreendendo os conceitos e significados que o caracterizam sem atingir o grau explicativo, o que exige uma abordagem que seja capaz de conduzir à descoberta dos significados que lhe são dados (Flick, 2004).

Um primeiro argumento para selecionar uma abordagem está implícito na escolha da metodologia que se adequa à questão de investigação. Os métodos da pesquisa qualitativa são apropriados quando o entendimento do contexto social e cultural é um elemento importante para a investigação uma vez que pressupõem a análise das interações reais entre pessoas, e entre pessoas e sistemas (Patton, 2002; Flick, 2005; Lessard-Hérbert et al., 2005; Denzin & Lincoln, 2006; Günther, 2006). Deste modo, a trajetória metodológica deste estudo insere-se na pesquisa qualitativa, por forma a conduzir à compreensão do que há de essencial no fenómeno e nos processos sociais que o envolvem, ou seja, o sentido dado pela subjetividade. Flick (2004) ressalta como principal característica da pesquisa qualitativa a primazia da compreensão como princípio do conhecimento, que prefere estudar as relações complexas, em diferentes espaços e situações, ao invés de explicá-las por meio do isolamento de variáveis. Evidencia ainda como segunda característica a construção da realidade, sendo que o significado é o conceito central da investigação. Günther (2006) adverte que estas características são comuns à pesquisa quantitativa, que não exclui o interesse na compreensão das relações complexas e concebe as múltiplas atividades que compõem o processo de investigação como um ato social de construção de conhecimento. Flick

(2005) defende que a diferenciação entre os dois tipos de pesquisa reside no paradigma onde se ancoram as estratégias e práticas metodológicas.

O processo de pesquisa qualitativa não pode ser conduzido a partir de uma perspetiva neutra e a cada vez maior diversidade de estratégias de investigação e métodos de recolha e análise de dados proporcionam uma progressiva flexibilidade epistemológica, ontológica, axiológica e metodológica que se reflete na liberdade de paradigma para os pesquisadores qualitativos (Lessard-Hérbert et al., 2005; Denzin & Lincoln, 2006). Patton (2002) reconhece que há mudanças nos limites paradigmáticos e que, em vez de competição paradigmática, os investigadores confrontam-se atualmente com um novo "paradigma de escolhas" para conduzir de forma lógica e coerente a pesquisa e a inclusão de diferentes métodos. Não existe um paradigma que se sobreponha perante outros e a sua escolha é guiada pelo conhecimento sobre o fenómeno em estudo, as questões de pesquisa e crenças do investigador (Welford et al., 2011).

Sendo o papel profissional uma construção social em permanente evolução, que conjetura uma diversidade de formulações sobre os atributos da prática do enfermeiro percebidos e esperados quer pelos próprios enfermeiros, pelos outros profissionais de saúde, pelos utentes e comunidade em que está integrado, pretende-se a sua compreensão e significado a partir de múltiplas perspetivas, numa abordagem naturalista o que significa que o investigador estuda o fenómeno nos seus contextos naturais, tentando entendê-los ou interpretá-los em termos dos significados que as pessoas lhes conferem. O investigador está imerso no contexto, tem uma relação íntima com o que é estudado e uma perspetiva interpretativa da condução da investigação e das limitações situacionais que a influenciam. Enfatiza a natureza repleta de valores da investigação e procura responder a questões que realçam o modo como a experiência social é criada e adquire significado. Vê o mundo em atividade e nele insere as suas descobertas (Patton, 2002; Flick, 2004; Denzin & Lincoln, 2005; Lessard-Hérbert et al., 2005).

Neste enquadramento, o interpretativismo e o construtivismo emergem como paradigmas que conduzem o estudo do papel do enfermeiro. O interpretativismo estimula e valoriza o estudo dos fenómenos através da perspetiva dos participantes e assume múltiplas realidades cujo contexto dá sentido ao fenómeno e o construtivismo admite que os seres humanos desenvolveram a capacidade para construir e interpretar a realidade (Patton, 2002; Denzin & Lincoln, 2005). Ontologicamente, o interpretativismo

77  concebe a realidade a partir de várias perspetivas e múltiplos contextos, que são holísticos apesar de especificamente localizados, e o construtivismo pressupõe que a realidade é contínua, dinâmica e reproduzida pelas pessoas nos seus conhecimentos e interpretações (Welford et al., 2011). Relativamente à epistemologia, ambos os paradigmas reconhecem a subjetividade em coexistência com a objetividade: o interpretativo admite que não há nenhuma interpretação definitiva ou única da realidade pelo que o objetivo da pesquisa será entender e encontrar sentido na experiência de várias perspetivas de forma indutiva; o construtivista considera que teoria e conhecimento são iluminados através de significados compartilhados nas interações sociais sendo o foco principal da pesquisa descobrir as formas pelas quais os indivíduos e os grupos participam na criação de sua realidade social percebida (Patton, 2002; Denzin & Lincoln, 2005).

Tendo como pressuposto que a compreensão e significado a partir de múltiplas perspetivas podem explicar um fenómeno, este estudo tem como suporte um paradigma ‘interpretativo-construtivista’ (Welford et al., 2012), assume-se uma ontologia relativista considerando que existem significações e realidades múltiplas sempre em construção, uma epistemologia subjetivista fundamentada no trabalho conjunto do investigador e do participante na formação das compreensões, e um conjunto naturalista de procedimentos metodológicos para obter uma compreensão de como o papel do enfermeiro é interpretado e implementado na prática das equipas de saúde das unidades funcionais do Centro de Saúde.

De entre os percursos de abordagem qualitativa optou-se pelo estudo de caso, considerado por Flick (2004) como o ponto de partida ou elemento essencial da pesquisa qualitativa. Tomou-se o caso de um Centro de Saúde como uma unidade representativa para a compreensão do fenómeno em estudo. O caso pode ser similar a outros, mas é, ao mesmo tempo, distinto e particular pelo que Welford et al. (2012) observam que a inclusão contextual torna o estudo de caso único entre as estratégias de pesquisa e Creswell, Hanson, Clark and Morales (2007) enfatizam que parte de alguns pressupostos teóricos iniciais mas procura manter-se constantemente aberto a novos elementos emergentes e importantes para discutir a problemática em questão. Denzin and Lincoln (2006) argumentam que nenhum método é capaz de compreender todas as variações subtis na significação humana, consequentemente os investigadores qualitativos tendem a utilizar métodos interpretativos interligados procurando tornar

mais compreensíveis os contextos do fenómeno que estudam. Metodologicamente, o estudo de caso caracteriza-se pelo uso de múltiplos métodos para revelar as múltiplas perspetivas não só através de diversas estratégias de recolha de dados mas também da sua triangulação na análise, que pode ocorrer em simultâneo num processo interativo entre o investigador, os dados de campo e o referencial teórico, refletindo a preocupação de assegurar uma compreensão do fenómeno em profundidade e de aumentar a abrangência e rigor do estudo (Flick, 2005; Gangeness & Yurkovich, 2006; Welford et

al., 2012).

Estas opções problematizam duas questões críticas: da representatividade, uma vez que no processo de pesquisa qualitativa a realidade muda com o tempo e o seu significado é contextual e situacional e se assume o investigador imerso no contexto e interpretador da realidade; da validade externa, referente à possibilidade de generalizar os resultados do estudo. Para Denzin and Lincoln (2006) estas questões estão relacionadas com a reflexividade e representação textual do estudo, elementos que lhe conferem verdadeiro fundamento e solidez. Neste estudo, a investigadora tem consciência das realidades abstratas que se criam nas descrições, pelo que a inclusão de ‘vozes múltiplas’ significam uma forma mais participativa de investigação, isto é, no texto estão refletidas a voz da investigadora e dos que participam, dando ao leitor a possibilidade de ver as distintas perspetivas de forma simultânea. O conhecimento válido constrói-se através do consenso entre os membros de uma comunidade, nesse sentido, não pode ser separado dos que o constroem pelo que para lhe aceder é necessário a argumentação dos participantes no discurso, o que significa uma validação comunitária ao invés da validação objetiva. É este ‘código de representação’ que sustenta o conhecimento real (Denzin & Lincoln, 2006; Lincoln & Guba, 2006).

Quanto à reflexividade, há hoje um consenso de que é um instrumento para a validade e é proposta como um critério básico para avaliar a qualidade dos estudos qualitativos. Como processo de reflexão crítica do investigador e participantes, é uma habilidade que está presente nas interações sociais humanas, contudo envolve um importante conceito técnico enquanto instrumento para analisar a forma como a intersubjetividade influencia o processo de investigação. Quando o investigador presta contas pela sua prática, a reflexividade converte-se não só num produto escrito mas forma também parte do processo de investigação uma vez que o processo reflexivo impregna todos os níveis do estudo, desde a sua orientação e enquadramento teórico até às reações dos participantes,

79  e está presente em todas as fases desde a questão de pesquisa, ao trabalho de campo, à análise de dados e à elaboração final do relatório. O processo reflexivo também enriquece a própria pesquisa ao proporcionar perceções sobre o fenómeno em estudo o que amplia a sua compreensão e análise a partir de diferentes perspetivas e não apenas a partir do conhecimento teórico (De la Cuesta-Benjumea, 2011). Neste sentido, a reflexibilidade proporciona um processo de construção sobre o que conhecem e como o conhecem e assim beneficia a investigação, a teoria e sobretudo a prática ao refletir sobre o que podem mudar (Gergen & Gergen, 2003; Denzin & Lincoln, 2006; Lincoln & Guba, 2006).

O esforço da análise centra-se na rede de raciocínios por onde os conceitos se articulam, se apoiam, se reconstroem interpretativamente e produzem evidências integradas no processo lógico dedutivo (Mattos, 2011). É neste contexto que Lincoln and Guba (2006) defendem que a pesquisa qualitativa permite ‘transferibilidade de contextos’ e que Flick (2004) se refere à ‘generalização de conceitos e relações encontradas’. O sentido da pesquisa qualitativa não está orientado para a generalização dos resultados e sim para a compreensão da realidade, não há preocupação com representatividade mas sim com o aprofundamento da compreensão a partir de um grupo social, com enfase no carácter processual e na reflexão. Deste modo, a generalização de resultados da pesquisa qualitativa pode ser classificada como uma generalização argumentativa (Flick, 2005). Para Yin (2010) e Stake (2012) os estudos de caso admitem uma generalização precisamente na interpretação que recebem, sendo generalizáveis a proposições teóricas e não a populações ou universos, uma vez que o objetivo do investigador é fazer uma análise generalizante (generalização analítica) e não particularizante (generalização estatística). Coerentemente atinge-se a generalização analítica a partir de uma teoria previamente desenvolvida e usada como um padrão, com o qual são comparados os resultados empíricos do estudo de caso (Yin, 2010) e a generalização naturalística através do julgamento dos leitores sobre a possibilidade de transferência dos resultados encontrados para outros contextos (Stake, 2012), realizada transversalmente pela força do exemplo como interpretação prática da comunicação investigador-leitor (Mattos, 2011). Neste estudo, a possibilidade de generalização analítica sobre o papel profissional do enfermeiro será mediada pela teorização do papel proposta por Hardy and Conway (1988) e a eventual generalização naturalística terá de ser enquadrada no conjunto de medidas legislativas orientadoras da reforma dos CSP no âmbito do SNS.