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Entrevistas: para não dizer que não falei com as flores do Grande (Bom) Jardim

No documento Programa de Pós-Graduação em Psicologia (páginas 61-65)

1. A composição de uma pesquisa encarnada entre imersões e contágios em um território

1.3 Ferramentas metodológicas além-mar: as práticas da jardinagem para a colheita

1.3.2 Entrevistas: para não dizer que não falei com as flores do Grande (Bom) Jardim

Como já relatado, enquanto pesquisador e membro da comissão de articulação da Rede DLIS já habitava e, portanto, experienciava o campo-(além)mar-periférico como um eu-(além)mar-vivências-periféricas, antes mesmo da proposta de pesquisar as resistências tecidas por e para as juventudes que habitam esse lugar.

Em relação à imersão no campo-(além)mar-periférico, foi necessária abertura para caminhar a partir das aproximações e construções de vínculos com as juventudes que nele habitavam. A partir desse movimento, tivemos a possibilidade de convidá-las para compor as entrevistas semiestruturadas, cujos objetivos eram a escuta do que aquelas vidas tinham a nos dizer a respeito das problemáticas e resistências diante dessas. O convite ocorreu na sede do CDVHS em uma das ações coletivas de organização do segundo Festival de Juventudes do GBJ na sede do CDVHS no ano de 2019. Pela primeira vez, me senti objetificado pelos olhares dos(as) convidados(as) que, naquele momento, me enxergavam como pesquisador após me intitular desse modo.

Os critérios de escolha dos(as) participantes levavam em consideração: aceite espontâneo dos(as) participantes em coproduzir esta pesquisa; ser maior de idade e se autodeclarar jovem; habitar o território do Grande Bom Jardim; ter vivenciado situações atravessadas por violências letais ou não; compor à época ou já ter feito parte de algum movimento social, coletivo juvenil ou entidade componente da Rede DLIS e/ou do Fórum de Juventudes da Rede DLIS.

Após os primeiros aceites por parte das juventudes, retomamos os contatos no intuito de confirmação e acordos quanto a logística do processo de composição dessas atividades. Nesse momento, tivemos muitas dificuldades, sobretudo porque, em alguns casos, entrei em contato várias vezes por telefone e/ou whatsapp com os(as) jovens para ter retorno positivo, em outros casos, não tive retorno algum, mesmo que o primeiro aceite tivesse sido confirmado anteriormente pelos(as) jovens de modo presencial. Outro complicador a relatar nesse processo foi que, três das sete primeiras pessoas convidadas tiveram de ser substituídas por desistência sem a justificativa formal por parte delas. Precisei contactar outras três pessoas para substituição na composição da pesquisa e tivemos o generoso aceite.

Após as confirmações, tive o cuidado de enaltecer a importância da contribuição daquelas juventudes para a compreensão e análise da conjuntura periférica do GBJ. Também deixei claro aos(as) participantes que sua privacidade seria resguardada e que a realização das entrevistas se dariam em locais adequados e de forma reservada e segura, podendo a qualquer momento retirar o seu consentimento sem sofrer prejuízo algum, como nos orienta o Comitê de Ética vinculado a Instituição que represente nesse estudo. Ainda, em relação aos critérios de segurança e integridade dos(as) entrevistados(as), bem como, sigilo em relação às informações cedidas pelos mesmos, foram fornecidos nomes fictícios.

Uma terceira questão desafiadora foi que tivemos de nos adaptar a mudança do local de parte das entrevistas. Havíamos acordado as primeiras entrevistas para o CCBJ, equipamento que se mostrou disponível a nossa pesquisa, mas, em decorrência de imprevistos por parte dos(as) participantes, todas as entrevistas foram realizadas na sede do CDVHS.

No processo de interlocução compartilhada proporcionado pelas entrevistas, em que tínhamos por objetivo nos aproximarmos das histórias de vida das juventudes que habitavam o Grande Bom Jardim, tivemos a oportunidade de, através das entrevistas, acessarmos “sucessivos fatos sobre o sujeito (ou sujeitos) e suas experiências para a compreensão não

apenas do ator social em si mesmo, mas também das unidades ou processos sociais que são mais amplos do que os indivíduos” (Camargo et al., 1983, p. 13).

Parte desse movimento compreensivo se compôs no tecer dos sentidos enfronhados nos discursos. Sua condução foi operacionalizada a partir de um roteiro semiestruturado, pensado e organizado à partir de três eixos principais: a) Perfil e Trajetória de vida dos Jovens; b) Os efeitos da violência urbana na produção de subjetividades e o surgimento dos Movimentos Sociais e item c) Estratégias do Fórum de Juventudes para o enfrentamento à letalidade. A proposta inicial dessas indagações e temáticas sugeridas com a utilização desse instrumental era que fossem disparadores potentes na condução das conversas, conduzidas de modo franco, aberto, e informal, demonstrando que podíamos escapar das amarras metodológicas tradicionais inflexíveis e hegemônicas no manejo das falas e nos aproximando das vivências daquelas juventudes, a medida que as conversas direcionavam os discursos (Minayo, 1999).

As entrevistas, por seu turno, consistiram em um “diálogo com o objetivo de colher, de determinada fonte, de determinada pessoa ou informante, dados relevantes para a pesquisa em andamento” (Ruiz, 1996, p. 51). Nos propomos a conduzir esses momentos de modo dialógico, respeitoso e horizontal em sua radicalidade, por entendermos essa característica como essencial na interação pesquisador-sujeitos pesquisados para a coconstrução de novas realidades (Minayo, 1996; Aragaki et al., 2014).

O acesso ao particular concedido e autorizado pelas juventudes naquele encontro intersubjetivo, demarcou o nosso envolvimento mútuo e afetivo no processo, envolvimento entre pessoas, e não apenas entre sujeito ativo que pesquisa e objeto passivo que se (a)sujeita. Ambos eram sujeitos ativos no processo de construção dos sentidos. Melhor dizendo, “como condição de aprofundamento de uma relação intersubjetiva. Assume-se que a inter-relação no ato da entrevista contempla o afetivo, o existencial, o contexto do dia a dia, as experiências, e

a linguagem do senso comum, e é condição ‘sine qua non’ do êxito da pesquisa qualitativa” (Minayo, 1996, p. 124).

Nos balizamos, ainda, norteados por escolha ética e comprometimento político, com uma escuta cara a cara como sugerem Brioschi e Trigo (1989), de modo atento, valorativo, compreensivo e respeitoso em relação às falas daquelas juventudes racializadas e empobrecidas, portanto, dos(as) próprios(as) agentes interlocutores(as) e militantes sociais. Tal postura nos permitiu compreender como os fenômenos relativos à violência urbana afetavam a vida desses moradores, sobretudo nesse campo-(além)mar-periférico, onde a violência atinge seus índices mais elevados (Paiva, 2014).

Para a análise de dados, propomos utilizar a Análise de Discurso (AD) (Foucault, 2006) visando compreender não apenas os discursos colhidos nas entrevistas semiestruturadas em si mesmos, mas, para além disso, enfocando nas forças e relações de poder que atravessam o campo, enfronhados nas entrelinhas das falas, não psicologizando-as, mas sim, problematizando as forças que convergem para a instauração desse poder, ou seja, as condições sociais que geraram possibilidade para a enunciação desses discursos. A Análise de Discurso (AD) tem por objetivo principal “realizar uma reflexão geral sobre as condições de produção e apresentação da significação de textos produzidos nos mais diferentes campos: religioso, filosófico, jurídico e sócio-político” (Minayo, 1996, p. 211). Tal reflexão, que se constitui em uma proposta crítica, “visa a compreender o modo de funcionamento, os princípios de organização e as formas de produção social do sentido” (p. 211).

Tais discursos significam “a linguagem em interação, ou seja, é o efeito de superfície de relações estabelecidas e do contexto da linguagem” (Minayo, 1996, p. 213). No caso, o esgarçamento do tecido social ocasionado pelo fenômeno das violências, cujas ações são engendradas por um Estado racista e genocida denotou que o discurso ultrapassa “a simples

referência a coisas, existe para além da mera utilização de letras, palavras e frases” (Fischer, 2001), são experiências particulares e coletivas trazidas nas falas.

No documento Programa de Pós-Graduação em Psicologia (páginas 61-65)