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Um dos problemas mais intrigantes em se tratando de cognição humana é explicar cientificamente como construímos nosso conhecimento, como transitamos de um conhecimento para outro ou como atingimos fases mais apuradas de conhecimento. Por exemplo, geralmente, na escola, uma criança aprende a somar utilizando diversos recursos (os dedos, alguns objetos, etc.). Progressivamente, a operação de somar, pelo menos com valores pequenos, torna-se automática, sem muito esforço cognitivo, utilizada em diversas outras situações quase mecanicamente. Porém, como acontece o processamento das informações, dos números dados e da operação, até a soma deles é um mistério com possíveis diversas explicações.

Em uma das teorias sobre como se dá o processo de construção e atualização do conhecimento, Jean Piaget (1896-1980) propôs explicações para o desenvolvimento cognitivo da criança com base na experimentação psicológica científica. Até então, os métodos psicológicos se baseavam em testes18 padronizados para avaliar a aptidão intelectual da criança. O método experimental de Piaget consistia em entrevistas, partindo de problemas abertos, com solução não diretamente aparente, para investigar os fundamentos e os processos cognitivos das

crianças entrevistadas. No caso de bebês, utilizavam-se brinquedos e as ações e reações deles eram analisadas meticulosamente. Tal procedimento ficou conhecida como abordagem clínica na psicologia.

De certo modo, a abordagem clínica não pretendia medir a capacidade intelectual das crianças entrevistadas (observadas), mas sim, buscava entender como a criança resolve determinados problemas e assim formula suas concepções sobre a realidade. De modo geral, os estudos piagetianos visavam descobrir, compreender, explicar “as raízes das diversas variedades de conhecimento, desde as suas formas mais elementares, e seguir sua evolução até os níveis seguintes, até, inclusive, o pensamento científico.” (PIAGET, 1983, p. 3). Surgia então a epistemologia genética piagetiana. Uma teoria sobre o desenvolvimento cognitivo para explicar a gênese do conhecimento ou como se formam as categorias cognitivas desde os seus níveis iniciais até as suas manifestações mais sofisticadas.

Para a epistemologia genética, o desenvolvimento cognitivo acontece quando as ações ou operações desenvolvidas pela criança se organizam em esquemas cognitivos e se ajustam psicologicamente formando estruturas mentais operacionais. Para o idealizador da teoria,

Estas estruturas operacionais são o que me parece constituir a base do conhecimento, a realidade psicológica natural, nos termos em que nós compreendemos o desenvolvimento do conhecimento. E o problema central do desenvolvimento é compreender a formação, elaboração, organização e funcionamento dessas estruturas. (PIAGET, 1972, p. 1).

Na teoria de Piaget, estas estruturas se desenvolvem conforme quatro estágios sucessivos. O primeiro deles, é o sensório-motor ou pré-verbal onde se desenvolve uma espécie de conhecimento utilitário a ser aprimorado no estágio seguinte. O segundo estágio, é o da representação pré-operatória no qual se inicia a linguagem e a função semiótica. O terceiro, é o das operações concretas no qual se utilizam objetos para representação, comparação e o raciocínio elementar. E o último estágio, é o das operações formais ou hipotético-dedutivas onde se inicia o raciocínio sobre hipóteses e abstrações (PIAGET, 1983).

A formação dos estágios e das estruturas operacionais, bem como a passagem de um conjunto de estruturas para outras, é regulada de acordo com a maturação biológica da criança, a experiência com os objetos (o ambiente físico), as transmissões ou experiências sociais e o processo de equilibração (auto regulação). É através dos mecanismos de equilibração que acontece a origem, o desenvolvimento e a consolidação das estruturas cognitivas que explicam as diferentes formas de comportamento desde a infância. Em outras palavras, na epistemologia genética,

o processo de desenvolvimento cognitivo poderia ser definido como um passo progressivo e continuado de níveis de equilíbrio inferiores a níveis superiores nos intercâmbios cognitivos entre os indivíduos e o meio, graças ao jogo da assimilação e da acomodação. O mecanismo de equilibração constitui um elemento de auto-regulação no processo de desenvolvimento, isto é, funciona como processo de ajustamento ativo por parte do sistema cognitivo, que compensa e antecipa, por sua vez, as perturbações com que esse sistema se depara no seu funcionamento habitual. (SALVADOR et al., 1999, p. 93).

Logo, as estruturas da inteligência mudam através da adaptação a novas situações de acordo com dois componentes: assimilação e acomodação. Sendo que, “assimilação implica reagir com base na aprendizagem e conhecimentos prévios; acomodação implica mudança na compreensão. Essa interação entre assimilação e acomodação leva à adaptação.” (LEFRANÇOIS, 2013, p. 245). A adaptação do sujeito ocorre através da equilibração entre assimilação e acomodação, não se tratando, porém, de um equilíbrio estático, mas sim essencialmente ativo e dinâmico.

Mesmo o processo de equilibração sendo um dos fatores primordiais para a epistemologia genética explicar o desenvolvimento cognitivo, pode-se assemelhá-lo ao processo de aprendizagem. Ambos, desenvolvimento e aprendizagem, embora distintos, estão interligados no processo de cognição. Para o autor da epistemologia genética,

O desenvolvimento do conhecimento é um processo espontâneo, ligado ao processo global da embriogênese. A embriogênese diz respeito ao desenvolvimento do corpo, mas também ao desenvolvimento do sistema nervoso e ao desenvolvimento das funções mentais. [...] Em geral, a aprendizagem é provocada por situações – provocada por um experimentador psicológico; ou por um professor, com referência a algum ponto didático; ou por uma situação externa. Ela é provocada, em geral, como oposta ao que é espontâneo. (PIAGET, 1972, p. 1).

Enquanto o desenvolvimento humano é espontâneo, a aprendizagem é condicionada por fatores externos ao sujeito. Mesmo assim, apesar de não ser uma teoria pedagógica ou de

aprendizagem, a epistemologia genética revolucionou o modo de conceber a construção e o desenvolvimento do conhecimento humano e contribuiu na construção de inovações pedagógicas na medida em que o sujeito passa a ser visto como um ser capaz de construir seu próprio conhecimento na interação com o meio.

O construtivismo piagetiano talvez seja o maior exemplo aplicativo da epistemologia genética e, consequentemente, um caso peculiar da relação entre desenvolvimento e

aprendizagem. Apoiando-se nas ideias de Piaget, os construtivistas entendem que o processo de autoconstrução do conhecimento é possível, pois este não pode

ser concebido como algo predeterminado nas estruturas internas do indivíduo, pois estas resultam de uma construção efetiva e contínua, nem nos caracteres preexistentes do objeto, pois que estes só são conhecidos graças à mediação necessária dessas estruturas; e estas estruturas os enriquecem e enquadram. (PIAGET, 1983, p. 3).

O construtivismo parte das premissas de que a mente não é uma tábula rasa no qual as informações provenientes da realidade são depositadas, nem que a mente absorve informação proveniente exclusivamente do meio, mas uma entidade que constrói seu próprio conhecimento através da relação dialética sujeito-objeto, intermediada pela ação do sujeito na interação com o meio.

Portanto, na perspectiva epistemológica construtivista o indivíduo deixa de ser um receptáculo passivo no ato de conhecer ou de aprender. O conhecimento é o produto da atividade cognitiva, experiencial e subjetiva do sujeito. Ou seja, o “conhecimento não nasce com o indivíduo, nem é dado pelo meio social. O sujeito constrói seu conhecimento na interação com o meio tanto físico como social.” (BECKER, F., 2001, p. 88). Isso significa que no construtivismo, o conhecimento é totalmente dependente do sujeito, de sua ação sobre o objeto e da situação em que ele é produzido.

Sendo assim, a função do construtivismo na educação diverge da concepção de escola como transmissora de conhecimento, que se utiliza da memorização e de repetições como forma de aprendizagem. A postura construtivista idealiza os alunos como protagonistas na construção de seu próprio conhecimento.

Isso não significa, como foi entendido, em algum momento, que havia de se deixar o aluno atingir automaticamente um desenvolvimento cognitivo predeterminado. Pelo contrário, o construtivismo supõe uma responsabilidade do aluno envolvido numa intensa atividade intelectual, resultante do confronto com novas situações desafiadoras, a partir de suas experiências cognitivas anteriores.

Diante dessa postura do aluno, o papel do professor na visão construtivista é muito mais ativo e criativo do que supõe a pedagogia tradicional e, nesse sentido, muito mais difícil de alcançar. Longe de ter receitas ou fórmulas para a tarefa de ensino, o professor deve ter condições de fornecer os elementos necessários para promover a atividade cognitiva dos alunos, respeitando as diferenças individuais e, ao mesmo tempo, incentivando as atividades do grupo sob sua responsabilidade.

Além dos fatores apontados, o construtivismo se diferencia de outras teorias de aprendizagem por admitir como pilar a ideia de que “o conhecimento não tem, e não pode ter, o propósito de produzir representações de uma realidade independente, mas antes tem uma função adaptativa.” (VON GLASERFELD, 1998, p. 19).

Outrossim, o construtivismo não nega a existência de uma realidade anteriormente construída, um mundo independente do sujeito cognoscente, mas considera que este faz experiências que lhe permitem viver com as limitações impostas pelo meio. As experiências sem sucesso permitirão ao sujeito representar o mundo como uma limitação. As experiências bem-sucedidas possibilitam construir uma representação das condições viáveis desse mundo (MORETTO, 2011). É o conhecimento como adaptação cognitiva.

Os ideais construtivistas se ajustaram efetivamente ao processo de aprendizagem de matemática. Tal fato deve-se, em grande parte, ao estudo dos problemas matemáticos como fonte de situações desafiadoras, motivantes que se enquadram efetivamente no processo de construção e desenvolvimento de estruturas cognitivas. Desde que devidamente explorados, tais problemas possibilitarão ao aluno utilizar seus conhecimentos prévios e reestruturá-los ao buscar e formular explicações para solucionar estes problemas.