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Escalas opostas: a saga de heróis nacionais e a volta à terra de origem

(Konis-Santana e Nualata)

Em março de 1998, o chefe do Conselho Executivo da Luta/Frente Armada, Nino Konis Santana, faleceu no seu esconderijo no suku Mir-

tutu, distrito de Ermera. Nascido em 1957 em Tutuala (Lautém), chegara à chefia da guerrilha após a prisão de Mau Huno em 1993. Era um com- batente lendário, e a sua morte, objeto de algumas versões contraditórias, parece ter-se devido a um problema de saúde (Mattoso 2005). De qual- quer forma, o seu corpo foi encontrado no esconderijo pelo seu secretá- rio, Somotxo, que, com a ajuda da família que tinha a seu cargo a assis- tência regular ao guerrilheiro, o sepultou de forma muito discreta.

Logo após a independência, o túmulo de Konis Santana foi objeto de grandes melhoramentos, por forma a marcar que aquele era o local de repouso de um grande chefe da Resistência. No entanto, em 2012, Xa- nana entendeu que era oportuno trasladar os restos mortais de Konis para o Jardim dos Heróis em Metinaro. Na verdade, e de acordo com esta posição, sendo essa estrutura destinada a prestar a mais alta home- nagem aos principais vultos da Resistência e da construção nacional, faria pouco sentido que um dos nomes de maior relevo e já falecido não fosse contemplado com tal honraria. A sua falta contribuiria para alimentar a ideia de que o cemitério nacional não seria, afinal de contas, um lugar indiscutível, e que outras formas de homenagear os mártires poderiam dispor de uma legitimidade semelhante.

A decisão de Xanana, porém, desencadeou uma acesa discussão sobre o destino a dar aos restos mortais de Konis Santana. Somotxo diz-nos que alinhou nesse debate com aqueles que entendiam que a melhor forma de prestar homenagem consistiria em preservar a sua sepultura ori- ginal, podendo esta ser objeto de melhoramentos. Um dos nomes im- portantes que exprimiram esta mesma ideia foi Taur Matan Ruak, o homem que sucedeu a Konis na liderança da guerrilha, e atualmente Pre- sidente da República. Por seu lado, Mau Nana, um outro guerrilheiro conterrâneo de Konis em Lautém, alinhou pela posição assumida pela mãe de Konis, a Sr.ª Poko Tana, que desejava o regresso do filho à terra de origem, para poder estar mais perto dele e prestar-lhe a atenção ne- cessária.

Em finais de 2012, por decisão governamental, os restos mortais de Konis Santana foram resgatados de Mirtutu, onde permanece um me- morial erigido em sua honra. Foram transportados até Tutuala, onde a família organizou uma «cerimónia cultural», no dizer de Justino Valen- tim, membro ativo da Resistência que havia sido amigo e companheiro de escola de Konis em Fuiloro, e que nela participou. Também Xanana fez a viagem até à Ponta Leste para participar ativamente nessa «grande festa». Só depois dessa cerimónia pôde Konis rumar enfim a Metinaro, onde repousa num talhão destinado a altos quadros da Resistência, mas

Movimentos, Espíritos e Rituais

família inteira partiu para o mato para escapar aos militares indonésios que tratavam de impor a sua presença na Ponta Leste. Desta família, que usava os apelidos Gonzaga e Gonçalves, quarenta pessoas morreram entre 1979 e finais de 1986. «Estavam todos no mato. Nunca se rende- ram», diz-nos Faustino dos Santos, casado com Arminda Gonçalves, um dos poucos elementos dessa família que lograram escapar com vida, e recebe agora pensão como Veterana de 3.º Grau. Faustino também co- nheceu a vida no mato, onde terá permanecido até outubro de 1999, sendo hoje Veterano de 1.º Grau. Quadro intermédio, foi secretário da Região 1 e 2.º comandante de uma companhia. Entre 2007 e 2012 foi deputado no Parlamento Nacional (pelo partido UNDERTIM).

Logo após ter sido resolvido atribuir a esses mártires o estatuto que lhes permite receber uma pensão, a família Gonzaga e Gonçalves decidiu meter ombros à tarefa de recuperar os restos mortais dos seus familiares. Para tal, realizaram duas campanhas distintas, uma em 2008 (da qual re- sultou a recolha de oito ossadas) e outra no ano seguinte (tendo sido re- colhidos mais 32 «restos mortais»). Nessa ação de busca desenvolvida so- bretudo na zona do Matebian, alguns antigos guerrilheiros que tinham conhecimento dos locais onde se poderiam encontrar as ossadas foram chamados a participar ao longo de mais de um mês – mas não beneficia- ram do apoio oficial do exército ou das F-FDTL, que dispõe de um ser- viço especializado.

Apesar dos enormes esforços destas duas campanhas nem todos os membros da família puderam ser localizados. Além do conhecimento que alguns poderiam ter dos locais das sepulturas originais, também foram utilizadas práticas divinatórias para «chamar os mortos» e obter qualquer indicação que pudesse ajudar na procura. Mas «se não se en- contram os ossos, pode-se trazer um punhado de terra» – e assim sucedeu em pelo menos dez casos. A par de verdadeiras ossadas, há sepulturas que contêm elementos simbólicos que substituem a falta de restos mor- tais. Porém, todos foram tratados de igual modo: por cada membro da família fez-se o abate ritual de um certo número de animais, cuja carne

foi consumida na «festa» que então se organizou. Para cada um deles er- gueu-se um túmulo de dimensões semelhantes, que foi depois pintado em cores garridas, exibindo bandeiras da FRETILIN, das FALINTIL e de Timor-Leste, bem como, em vários casos, as armas com que comba- teram. Os enterros foram todos realizados no mesmo dia.

Nas conversas que tivemos com estes familiares dos tombados de Nua- lata,eles mostraram-nos o seu ressentimento pelo facto de as autoridades nacionais não terem comparecido a estas cerimónias (apesar de se atribuir a Xanana a decisão de comparticipar generosamente nos custos da em- preitada). O investimento financeiro ascendeu a várias dezenas de mi- lhares de dólares. Trata-se de um impressionante cemitério aberto, ao lado da estrada, com 40 sepulturas, localizado bem junto da residência de alguns membros dessa família. Em todos estes casos, tratou-se de fazer um segundo enterro, fazendo transportar, por vezes de terras longínquas, os despojos destes mártires num processo semelhante ao que em 2012 vimos iniciar-se em Chai/Loré.

O cemitério nacional de Metinaro:

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