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O cemitério nacional de Metinaro: unidade da nação?

O caso que apresentámos do cemitério de Nualata na secção anterior ilustra bem o princípio da vicinalidade das sepulturas em relação ao local de residência. O exemplo da sepultura de Ângelo da Costa isolada do povoado de Muapitine onde foi massacrado, ou o do monumento de Caivaca em torno do local onde o comandante Falu Cai e os seus ho- mens tombaram, exprimem a vitória de uma outra visão, que a Sr.ª Al- bina verbalizou do seguinte modo: «Quando se faz uma sepultura, seja ela qual for, é difícil vir depois mexer nela.» Quer dizer: a ideia de um enterro secundário encontra resistência. Apesar de se considerar que as sepulturas originais não correspondem ao que «deveria ser», a opção de manter nelas os restos mortais dos heróis e as redesenhar ostensivamente e com plena liberdade criativa tem também adeptos em Timor-Leste, os quais justificam tal prática exatamente nos mesmos termos daqueles que optam pela solução contrária.

A par das restantes iniciativas, em 2009, como já referimos, inaugu- rou-se o cemitério nacional do Jardim dos Heróis em Metinaro – uma nova estrutura especificamente desenhada para acolher, em lugar rigida- mente demarcado e isolado de todo o contacto com habitações, os restos mortais dos timorenses caídos na luta. É possível olhar para o Jardim dos Heróis de âmbito nacional e ver nele sinais de rutura com elementos im-

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na cor que ostentam – diz-se que Xanana Gusmão, indicado por muitas fontes como o autor da ideia, terá indicado explicitamente que queria replicar os cemitérios de guerra dos filmes americanos – contrapõe-se à ocupação caótica do espaço na maior parte dos cemitérios timorenses. O cemitério de Santa Cruz em Díli pode ser referido como exemplo do contraste a nível da profusão quase infinita de forma, da cor e dos mate- riais das campas, evidenciando um individualismo na abordagem deste tema que foi radicalmente substituído por uma linguagem uniforme no Jardim dos Heróis. A grande maioria dos que lá se encontram sepultados morreram durante o período da luta, sendo poucos os heróis nacionais com direito a esta honra que morreram mais tarde e puderam ser sepul- tados diretamente – como é o caso de Francisco Xavier do Amaral, o homem que fez a proclamação da independência em 28 de novembro de 1975 e foi o primeiro Presidente da República, e que faleceu em 2012. A esmagadora maioria dos que se encontram sepultados neste cemitério foram sujeitos a um segundo enterro (reburial) resultante da movimenta- ção através do território dos respetivos restos mortais.

A necessidade de proceder à remoção de ossadas do seu local original, para serem novamente sepultadas de acordo com preceitos adequados, tanto pode levar, então, a enterrar na proximidade dos túmulos em rela- ção à habitação de quem tem o dever de lhes prestar assistência perma- nente, com a opção do cemitério nacional. Este cemitério é apenas uma de entre várias formas de consagrar os mártires. O caso de Konis Santana, que passou por várias fases e acabou por responder, pelo menos parcial- mente, a uma variedade de requisitos contraditórios, exemplifica bem que tudo nestes processos é fruto de uma relação de forças que a cada momento respondem às exigências de diversas circunstâncias sociopolí- ticas e se enquadram ao mesmo tempo que transformam processos so- ciais.

Conclusão

A reconquista da independência em 2002 foi acompanhada de uma grande abertura de Timor-Leste a modelos culturais modernistas, seja pela via da diáspora que regressou imbuída de valores das sociedades de acolhimento, seja pela presença no território de uma vasta quantidade de expats que, provenientes das quatro partidas do mundo, tinham em comum o propósito de «ajudar» Timor a emergir como uma «nação mo- derna» – o ambicioso programa que justificou a presença em Timor-Leste de uma missão das Nações Unidas ao longo de vários anos, primeiro com poderes absolutos, depois numa situação de acompanhamento e aconselhamento. Nestes modelos modernistas, assume particular relevo o discurso tecido em torno do conceito de «construção da nação». Esse processo envolve explicitamente a constituição de uma identidade nacio- nal (que em grande parte existia antes do Referendo de 1999 e contribui fortemente para explicar o seu resultado), e exige uma grande capacidade de diálogo com as formas «culturais» – o que localmente se designa por

lisan, cuja resiliência tem sido posta em evidência. Andrew McWilliam

descreve o lisan como «as diversas formas de práticas e convenções cul- turais historicamente situadas que evoluíram ao longo de gerações e que oferecem instrumentos legitimados para intervir nos assuntos da comu- nidade» (McWilliam 2008, 129). Para David Hicks, tratar-se-ia de «repre- sentações coletivas» num sentido durkheimiano, ou seja, «o corpo de ideias, noções, conceitos, valores e instituições que são tidos em comum pelos membros de uma dada sociedade» (Hicks 2013, 27). James Fox foi dos primeiros a chamar a atenção para a persistência desse tipo de práticas que permitem ao mesmo tempo resistir a desafios provindos do exterior e entreter com eles um diálogo importante (Fox 2000, 4; e 2011, 255). Entre essas práticas e convenções contam-se aquelas que se prendem com o culto dos mortos (McWilliam 2011). Por outro lado, esse processo exige um programa de ações concretas destinadas a dar forma visível aos ele- mentos estruturantes de um projeto de modernidade.

Este texto é um contributo para uma compreensão etnográfica de como esse processo está a ocorrer. Diferentemente de pensarmos em processos de construção nacional a partir de programas governamentais ou de imposição por instâncias internacionais – seguindo uma lógica de «choque de paradigmas» (Hohe 2002) – ou de postularmos a emer- gência de uma forma cristalizada que eliminasse os pontos de tensão, neste artigo seguimos uma compreensão das coexistências suscitadas pela condição inevitável de coabitação entre formas familiares e nacio-

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-Loir e Reid o programa indonésio implicou consagrar como heróis na- cionais «um grupo coletivo de mortos cuja potência/poder foi criada pelo próprio Estado» (Chambert-Loir e Reid 2002, XXIII). O conceito de

«mortos potentes» (potent dead) que estes autores operacionalizam para conjugar o poder dos mortos como antepassados e como heróis nacio- nais é útil para a análise destes processos em Timor-Leste. Mas as abor- dagens que entretanto nos apresentam sobre a Indonésia mostram um outro tipo de nacionalismo onde os monumentos e os cemitérios aos que tombaram na luta pela independência – uma luta particularmente san- grenta – são icónicos, ao ponto de haver para cada distrito personalidades de heróis a quem consagraram monumentos e cemitérios (cf. Schreiner 2002, 184, 190). Os cemitérios foram integralmente organizados pelo go- verno central que desde 1974 tem em Jakarta o «Cemitério dos Heróis» – o maior da Indonésia que conta com espaço para 15 000 túmulos (Schrei- ner 2002, 183). A diversidade de situações em Timor-Leste que apresen- tamos neste artigo confirma que a urgência de fixar os seus mortos numa cartografia de mártires não deixou espaço ao Estado para se antecipar. Assim, se a nacionalidade se está a construir por meio do processo de criação de heróis da luta pela independência em Timor-Leste, ela está a surgir a partir de uma confluência de soluções – de uma «co-habitação» entre modos distintos de conceber o culto dos mortos – e não de um programa propriamente nacional (cf. Viegas e Feijó, no prelo, 2017).

Em Timor-Leste, como noutras partes das ilhas Sundas, os processos de realojamento ou reenterrar (reburial) implicam «o fortalecimento da posição ritual de um falecido pela transferência dos seus restos mortais para um lugar de maior e mais apropriada dignidade» (Schreiner 2002,

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5 Referimo-nos aqui a uma perspetiva teórica que propõe ver os processos de intercul-

turalidade, mesmo os que implicam forte hostilidade, como processos de inevitável coa- bitação, aproximando-nos da reflexão que tem sido desenvolvida, por exemplo, por Ju- dith Butler (2012), e que temos vindo a desenvolver para a análise de Timor (cf. Viegas e Feijó, no prelo, 2017).

193). O que os casos que aqui apresentamos nos permitem verificar é que essa dignificação começa por significar gestos tão simples quanto os de fixar geograficamente os mortos, contrariando a perturbação gerada por os mortos não terem lugar, estarem espalhados, perdidos no territó- rio. Fixar os mortos é em si um primeiro ato de dignificação. A possibi- lidade de eles voltarem à sua terra de origem pode oferecer-lhes «potên- cia», mesmo que conflituando com outras opções da sua integração como mártires nacionais que implicariam o seu isolamento em relação à rede familiar dos antecessores. Em suma e terminando, se a nova car- tografia dos mártires puder ser vista como a territorialidade timorense em construção, ela será rizomática, estendendo os sentidos de nação a nichos territoriais marginais, ao mesmo tempo que constrói o sentido dos chefes de Estado do panteão nacional no cemitério nacional em Me- tinaro – afinal o único que chefes de Estado estrangeiros são levados a visitar quando fazem as honras aos seus anfitriões, desta forma apresen- tando a unidade nacional como uma de entre várias formas de identifi- cação da territorialidade do recente país de Timor-Leste.

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