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Geografias imóveis: os monumentos de Muapitine e de Caivaca

No dia 8 de dezembro de 1983, na aldeia de Pehefitu, suku Muapitine no distrito de Lautém, teve lugar um massacre de um cinismo parti - cularmente macabro e hediondo que ouvimos descrito por uma teste- munha ocular. Cinco timorenses envolvidos na Resistência tinham sido presos em finais de novembro. Os militares indonésios fizeram saber que gostariam que se organizasse uma festa com tebe-tebe para os receber de volta. A festa juntou uma grande multidão e também as mais altas auto- ridades do distrito e alguns líderes comunitários.

Horácio dos Santos tinha na altura 9 anos de idade e quis falar-nos do seu testemunho face a uma solicitação do nosso companheiro Justino Valentim. Segundo Horácio, depois de terem autorizado a confraterni- zação dos presos com os seus familiares, a quem pediram tabaco e mor- talhas para fazerem cigarros, dando inicialmente a ideia de que os vinham

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mais que tentaram foi realizar os enterros de acordo com um mínimo de preceitos costumeiros.

Em 2005, antes que a situação de desafogo financeiro derivada da ex- ploração do petróleo no mar de Timor tivesse começado a surtir efeitos, e numa altura em que Xanana Gusmão assumia a Presidência da Repú- blica, sem poderes executivos para desenvolver as ações em relação aos «Veteranos» que mais tarde viria a desenvolver, as autoridades locais mo- bilizaram-se e, com uma verba modesta – poucos milhares de dólares – recolhida com grande esforço, erigiram um monumento: uma coluna encimada por uma estrela e o mapa de Timor-Leste, tendo na base quatro faces nas quais se pode ver uma placa alusiva à sua inauguração por Xa- nana, uma pintura representando a cena do massacre, uma narração do mesmo (da qual usamos acima alguns excertos), e uma lista que engloba todos os habitantes da aldeia que integraram a Frente Armada e a Frente Clandestina da Resistência e que morreram no mato entre 1977 e 1999 – num total de 74 nomes. Monumentos deste tipo, a que Michael Leach chamou «memórias difíceis» (Leach 2009), podem ser vistos um pouco por toda a parte em Timor-Leste.3

Este monumento não contém nenhuma sepultura, mas os cinco mas- sacrados permanecem até hoje no mesmo local em que foram original- mente sepultados. No caso de um deles, Ângelo da Costa, logo que a viúva teve acesso à pensão de veterano do marido em 2011, a campa sin- gela que existia foi alvo de obras de melhoramento. Nela se pode ler: «Massacrado e tombado pelo assassinado Forças militar da Indonésia numa cerimónia oficial de massa e foi sepultado com a condição vivo [sic]» – uma alusão clara a um aspeto macabro deste massacre, repetido por todos os que falaram connosco acerca do mesmo: os golpes que re-

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3 No distrito de Lautém, por exemplo, existe um memorial semelhante junto à estrada

que conduz a Díli, num local sobranceiro ao mar, que recorda o massacre, já depois do Referendo de 30 de Agosto de 1999, de um grupo de madres católicas e seus acompa- nhantes, todos ligados à Caritas Diocesana de Baucau.

cebera no pescoço e no tórax não haviam sido fatais, e mesmo nessa con- dição foi enterrado por exigência dos indonésios. O facto de terem sido as próprias famílias a fazer os enterramentos em 1983 parece explicar que em Muapitine se acredite que os mesmos foram realizados de acordo com os rituais mínimos necessários para garantir a paz aos defuntos.

Um segundo monumento evocativo de um massacre e que originou a morte de nove homens diz respeito ao memorial em Caivaca – locali- dade próxima a Lospalos. Em 21 de julho de 1985, o comandante Falu Cai e oito dos seus homens morreram num massacre nessa localidade. Na ocasião morreu também Luís Monteiro Leite, figura grada do regime. Este episódio aparece narrado nas memórias de Mário Carrascalão (2006, 256-259), amigo chegado de Monteiro Leite. Inserido numa tentativa de capturar o líder nacionalista, Monteiro Leite marcou um encontro com representantes da Resistência – esperando que nela comparecesse o pró- prio Xanana, que mantinha uma relação romântica com uma irmã sua. O que sucedeu a seguir é controverso. Os militares indonésios informa- ram o governador de que o encontro teve lugar, que os guerrilheiros abri- ram fogo e na troca de tiros que se seguiu haviam perecido vários deles, bem como Monteiro Leite e os seus assessores. Carrascalão não acredita nessa versão, e com base nos testemunhos da viúva e do motorista do seu amigo inclina-se para considerar que os indonésios traíram o seu pró- prio aliado e abriram fogo sobre a casa onde decorria o encontro, ma- tando todos os que lá se encontravam – esperando ter a cabeça de Xanana como troféu.

O insucesso da missão traduzido pela morte do grupo de guerrilheiros conduziu a ter circulado a ideia de que a iniciativa do encontro partira de Falu Cai, e nalguns casos afirmou-se mesmo que o fizera em con - tradição com ordens recebidas. Na sequência da morte do marido, a Sr.ª Albina Marçal Freitas, que vivera até ali no mato onde se casou com Falu Cai, voltou a Lospalos, onde foi de imediato detida pelos indoné- sios, tendo passado quatro anos na prisão. Haveria de sofrer por esse afas- tamento que perdurou até 1996, altura em que voltou à Frente Clandes- tina, tendo a partir de então um lugar de destaque na Organização das Mulheres de Timor.

Em finais dos anos 2000 a Sr.ª Albina entendeu proceder à reabilitação da memória do marido (e dos seus homens). Para tal, meteu mãos à obra de construir, no local onde eles foram mortos e singelamente sepultados em valas comuns sem identificação, grandiosos memoriais – usando para tal os apoios financeiros que o reconhecimento oficial do estatuto de ve- terano (tanto dele como dela própria) lhe proporcionava. A sua iniciativa

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Como nos explicou a Sr.ª Albina logo na nossa primeira conversa em 2012, as decisões que tomaram sobre o local de fundação do memorial tiveram em conta a importância de o fixar no local onde se deu o en- contro fatal. «A família decidiu que não era preciso transportar [os restos mortais], transferir para outro sítio. É um local original. Então os restos mortais repousaram no mesmo sítio onde eles mataram.» A decisão de fazerem o monumento no exato local da ocorrência comporta várias consequências. Por um lado, a sua localização é periférica, situando-se numa espécie de encruzilhada entre povoações fora da vila de Lospalos. Por outro lado, fica longe dos locais aos quais os familiares de todos os mortos têm reconhecidos direitos de habitação e portanto de sepulta- mento e de ocupação da terra. Assim, por exemplo, em 2013 foi preciso dar 3000 dólares a um alegado proprietário da terra.4

Para a Sra. Albina cada edifício do memorial especifica uma fase da tragédia:

O sítio acima é o local onde eles mataram. Porque eles tinham-se sentado num local e conversavam sobre como acertar e concordar para organizar as forças dentro da vila. [...] Há o outro sítio mais abaixo, onde há três ou qua- tro mortos que estão enterrados num buraco e não podemos identificar quais são. É para representar o local de derramamento do sangue entre ambas as partes: parte inimiga e FALINTIL. E mais acima na mesma estrada, con- forme informações, contaram que aquele buraco tinha seis pessoas, mas não se sabe. Fizemos aproximações com pessoas que tinham ligação direta com os indonésios, mas não há ninguém que tenha aquela coragem de dizer: «é assim e assim... Então é difícil [Sr.ª Albina, Lospalos 2012].

Soluções como esta, que comportam um tratamento mais personifi- cado ou singularizado dos eventos, são vistas pela Sr.ª Albina e por mui- tos outros timorenses como mais bem dirigidas aos destinatários da luta armada. A dignificação dos mortos exige este tipo de trato mais persona-

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lizado e não o tipo de massificação dos ossuários e cemitérios nacionais e distritais dos Jardins dos Heróis. Assim nos disse quando conversámos sobre o facto de o ossuário de Lospalos estar vazio:

Construíram uns monumentos que são de uma má qualidade. Os mortos não exigiram ao Secretário de Estado ou ao governo para construírem mo- numentos para eles. Antes de morrer nunca disseram isso. Mas como a lei garante e também como cidadãos que somos, vimos de uma luta armada, de uma luta sangrenta... Então temos que reconhecer os heróis, os nossos mortos. Então fizemos isso para eles, mas pelo menos uma boa condição para eles. Construíram um ossuário tão pequeno... E sem esclarecimento, sem clarificação... [Sr.ª Albina, Lospalos 2012].

O ossuário e as ambivalências da luta armada:

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