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Pensar no cotidiano dos jovens e adultos que frequentam as escolas com EJA nos remete à reflexão e à responsabilidade de educadores desse público, a fim de propiciar momentos qualificados, com sentido social e cultural.

Nessa busca, os estudos e as práticas de Paulo Freire (2016a)nos conduzem a algumas respostas a respeito do papel da escola e das práticas educacionais, no atendimento aos educandos da EJA, que perpassam pela concepção de homem em permanente construção, que se constitui no ato das relações, criador e transformador de sua realidade. Como ele mesmo relata em depoimento:

[...] fui me fazendo, na prática, um educador. E fui aprendendo, desde aquela época, a exercer uma prática de que não me afastei até hoje: a de pensar sempre a prática. De fato, pensar a prática de hoje não é apenas um caminho eficiente para melhorar a prática de amanhã, mas também a forma eficaz de aprender a pensar certo... Qual poderia ter sido o primeiro caminho que trilhei na tentativa de estabelecer um encontro entre a escola ou as escolas e as famílias? Foi a palestra, foi a exposição oral, foi o discurso sobre temas que eu admitia que seriam importantes [...]. Então, veja: é claro que isso revela a própria formação que eu também recebera, e revelava o peso de um passado profundamente autoritário, que é o passado brasileiro, que é o presente brasileiro. Isso revelava uma postura elitista, também, segundo a qual o que mais sabe, o que tem um certo tipo de saber considerado exato, rigoroso, pensa que só ele sabe. E que os outros, a quem ele quer falar, são exatamente aqueles que, não sabendo, precisam escutá-lo para aprender [...] aí estava o grande equívoco. Eu deveria ir ao concreto e discutir concretamente. (FREIRE, 1985, p. 8-10).

Nessa premissa, a prática e o currículo da EJA precisam ser construídos, respeitando os valores, as vivências dos educandos e o contexto, de forma a propiciar o desafio de pensar, perceber e refletir sobre as suas relações com o campo da cultura, do trabalho, das questões socioeconômicas e da justiça social, entendendo e exercitando ações individuais e coletivas, que podem promover reflexões emancipatórias e críticas. Freire (1985, p. 12) descreve um pouco de sua prática e de seu entendimento de escola no trecho a seguir:

[...] eu fazia meus estudos, minhas leituras no campo da Educação, já também no campo da Linguagem, porque me interessava muito. O que me fez chegar a isso foi a prática mesmo, foi meu dia-a-dia, foi vendo como é que as crianças funcionavam na escola e como os pais funcionavam com as crianças, através de pesquisas como aquelas a que já me referi, além de leituras teóricas. O meu equívoco não estava, evidentemente, em pretender discutir aquela temática que eu discutia. Mas é que, primeiro, eu deveria ter ouvido as famílias sobre o que lhes interessava discutir mais diretamente. Segundo, deveria inventar um outro caminho de aproximação aos temas e tratamento dos temas.

O exercício de construir conhecimentos, envolvendo educador e educando dentro do contexto social, fomenta a dimensão política do cidadão. A diversidade dentro do processo educativo precisa avançar para além da diferença e da desigualdade, como processo de partilha de experiências e conteúdo a serem entendidos, discutidos e absorvidos.

Freire (2015) defende o direito à diversidade, por meio das leituras que realiza do mundo, defendendo o percurso histórico de cada cidadão e as especificidades do contexto, por meio do respeito, da tolerância e de temas que façam parte da vida concreta das pessoas.

Toda leitura da palavra pressupõe uma leitura anterior do mundo, e toda leitura da palavra implica a volta sobre a leitura do mundo, de tal maneira que “ler mundo” e “ler palavra” se constituam um movimento em que não há ruptura, em que você vai e volta. E “ler mundo” e “ler palavra”, no fundo, para mim, implicam “reescrever” o mundo. Reescrever com aspas, quer dizer, transformá-lo. A leitura da palavra deve ser inserida na compreensão da transformação do mundo, que provoca a leitura dele e deve remeter-nos, sempre, à leitura de novo do mundo. (FREIRE, 1985, p. 15).

A escola é o espaço mais propício e privilegiado para a construção de conhecimento, desenvolvimento de valores humanos e leitura do mundo, para propiciarmos o desenvolvimento das pessoas e alcançarmos uma transformação social e democrática, por ter a premissa de ser um espaço precioso de construção de novos conceitos e experiências, que vão contribuir para uma nova percepção da vida.

A diversidade da escola e da sala de aula também é foco de estudo de Schwartz (2012), que discorre sobre o perfil do educando da EJA, cada vez mais ampliado pela faixa etária, níveis culturais e educacionais diferenciados. As salas de aula se revelam como um universo singular, rico e marcado pela diversidade. Em comum, grande parte desses educandos pertencem ao mundo do trabalho, com suas experiências, disputas e fragilidades, apresentando baixa autoestima, poucas motivações e fracassos repetidos.

Neste universo, aparentemente desfavorável para ações educativas, a diversidade é o ponto de partida para a construção de saberes individuais e coletivos. Se acreditamos em uma construção social, há de ser considerado o contexto e todas as variáveis sociais, as culturas locais e pessoais, para a reflexão, problematização e definição dos novos sujeitos.

A educação de jovens e adultos, por isso, deve ser orientada no sentido de despertar no aluno a consciência da importância de alfabetizar-se, de instruir-se, e essa necessidade será despertada também a partir da compreensão crítica da sua realidade e da sociedade em que está inserido. Por isso, precisa partir dos elementos que compõem a realidade do alfabetizando, seu mundo do trabalho, suas relações sociais, suas crenças e valores. (SCHWARTZ, 2012, p. 74).

Nesse sentido, a proposta de Freire converge e oportuniza o exercício do diálogo, a construção libertadora e humanista do cidadão, por ser propositiva e intencional, pois o diálogo, como categoria, impulsiona o pensamento reflexivo.

Ao falarmos sobre nós mesmos e nossa realidade, ampliamos a possibilidade de percepção da nossa condição de oprimidos. Sendo assim “[...] quanto mais as massas populares desvelam a realidade objetiva e desafiadora sobre a qual elas devem incidir sua ação transformadora, tanto mais se inserem nela criticamente” (FREIRE, 2015, p. 54).

Essa conscientização tem na escola um espaço promissor para se desenvolver, por meio dos relatos de experiências, das histórias de vida, das dificuldades do cotidiano, das lembranças, dos desejos silenciados e das esperanças que se renovam a cada novo dia de aula.

O diálogo, como precursor de cada planejamento, de cada pesquisa, de cada prática a ser executada pelo educador, traz em si oportunidades inumeráveis de reflexão e conscientização humana.

A responsabilidade do professor, de que às vezes não nos damos conta, é sempre grande. A natureza mesmo de sua prática, eminentemente formadora, sublinha a maneira como realiza [...] daí a importância do exemplo que o professor ofereça de sua lucidez e de seu engajamento na peleja em defesa dos direitos, bem como na exigência das condições para o exercício dos deveres. (FREIRE, 2016a, p. 64).

A conscientização do educador, por meio de sua criticidade política é condutora de mudanças, pela competência que desenvolve e aplica em suas relações com o conhecimento, com a realidade e com os educandos, na certeza de que é possível mudar, mesmo que com dificuldades e entraves, pois o comprometimento com a diminuição das desigualdades é maior à medida que “[...] a educação é uma forma de intervenção no mundo” (FREIRE, 2016a, p. 96).

Sou professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda. Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais. Sou professor contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração: a miséria na fartura. Sou professor a favor da esperança que me anima apesar de tudo. Sou professor contra o desengano que me consome e imobiliza. Sou professor a favor da boniteza de minha própria prática, boniteza que dela some se não cuido do saber que devo ensinar, se não brigo por este saber, se não luto pelas condições materiais necessárias sem as quais meu corpo, descuidado, corre o risco de se amofinar e de já

não ser o testemunho que deve ser de lutador pertinaz, que cansa, mas não desiste. Boniteza que se esvai de minha prática se, cheio de mim mesmo, arrogante e desdenhoso dos alunos, não canso de me admirar. (FREIRE, 2016a, p. 100).

A escola tem um objetivo primordial, que é fomentar o domínio do conhecimento e a prática da reflexão. Essas ações concomitantes possibilitam compreender que a escola está a serviço do capital, reproduzindo-se enquanto mercadoria e com uma falsa ideia de construção do cidadão crítico. Ela é capaz de transformar as relações sociais e a reflexão humana, na medida em que possibilita a formação da consciência crítica, permitindo o entendimento e a superação das contradições sociais.

É desta forma que Freire (2015) vislumbra a escola, como um meio de resistência ao modelo de sociedade capitalista, reagindo ao processo de alienação por meio de uma educação capaz de libertar as pessoas da opressão, porque a construção social nunca está completamente finalizada, por ser um processo fruto de relações permanentes e cotidianas.

Para Freire (2018), a escola é um espaço de relações sociais e humanas. Não é apenas na escola que as pessoas aprendem; a aprendizagem ocorre também na informalidade, na rua, no trabalho, na igreja e em momentos informais dentro da sala de aula, com significado.

Paulo Freire insistia que não é só na escola que a gente aprende. Como instituição social, ela tem tanto contribuído para a manutenção quanto para a transformação social. A escola, para Paulo Freire, não é só um lugar para estudar, mas para se encontrar, conversar, confrontar-se com o outro, discutir, fazer política. A escola não pode mudar tudo e nem pode mudar a si mesmo sozinha. Ela está intimamente ligada à sociedade que a mantém. Ela é, ao mesmo tempo, fator e produto da sociedade. Como instituição social, ela depende da sociedade e para mudar-se depende também da relação que mantém com outras escolas, com a família, com a sociedade, com a população. (GADOTTI, 2010, p. 154).

Ele é um defensor da escola pública, por ser o espaço de encontro e de possíveis transformações, um espaço que abriga as classes menos favorecidas, e aponta como possibilidade de ser uma escola cidadã, que resgate a cultura, que propicie o conhecimento científico, que considere o contexto e que possibilite a organização política de classes como instrumento de luta social contra a hegemonia da classe dominante.

Dia 19 de março de 1997, nos Arquivos Paulo Freire, em São Paulo, numa entrevista à TV Educativa do Rio de Janeiro, ele falou de sua concepção da “escola cidadã”: A Escola Cidadã é aquela que se assume como um centro de direitos e deveres. O que a caracteriza é a formação para a cidadania. A Escola Cidadã, então, é a escola que viabiliza a cidadania de quem está nela e de quem vem a ela. Ela não pode ser uma escola cidadã em si e para si. Ela é cidadã na medida mesma em que se exercita na construção da cidadania de quem usa seu espaço. A Escola Cidadã é uma escola coerente com a liberdade. É coerente com o seu discurso formador, libertador. É toda escola que, brigando para ser ela mesma, luta para que os educandos-educadores também sejam, eles mesmos. E, como ninguém pode ser só, a Escola Cidadã é uma

escola de comunidade, de companheirismos. É uma escola de produção comum do saber e da liberdade. É uma escola que vive a experiência tensa da democracia (GADOTTI, 2010, p. 155).

Para Freire (2018), a escola se compõe além das suas paredes, ela se soma e se concretiza em todas as relações de aprendizagem e construção coletiva de saberes e descobertas do contexto e de si própria. Nessa perspectiva, a escola se amplia para todos os espaços de formação humana, na comunidade, na cidade e no mundo e perpassa por ambientes digitais, sonoros e visuais, um grande e imenso universo de possibilidades e experiências.

A escola necessita mudar os conteúdos abordados, necessita de mudanças políticas e pedagógicas, como reflexo da crítica que a civilização contemporânea também recebe, como afirma Gadotti (2010).

Por ser a escola um espaço de relações, de construção, de esperança, de luta e de possibilidades, ela precisa ser de qualidade e para todos, forjada diariamente. A esperança faz parte da vida de Freire, vai muito além dos registros em seus estudos, é mais que alento, é condição de vida desse educador nordestino, que luta pelas massas, pela diminuição das desigualdades sociais, fruto de sua consciência e de sua escolha política, pela humanização do homem.