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A escola e a organização da caminhada

3 ORGANIZAÇÃO E APRESENTAÇÃO DO TRABALHO

Grupo 14: Obrigado deus Tupã por estar sempre presente

22 Nos protestos políticos como os das mães e avós da praça de maio, H.I.J.O.S (filhos pela identidade e pela

3.2 CAMINHADA DO DIA DO ÍNDIO TAPEBA

3.2.1 A escola e a organização da caminhada

Na semana que antecede a data do evento, as escolas modificam suas rotinas em decorrência de preparação da caminhada. Parte da carga horária das aulas é destinada aos ensaios e a produção de materiais. Na preparação, professores e alunos manifestam preocupação em se “apresentar bem”. À primeira vista, o aspecto estético parece ser a tônica dos esforços empreendidos pelo grupo em oferecer um espetáculo carregado de beleza ao público. Percebi isso, em 2007, quando acompanhei um dos ensaios realizados na Escola Índios Tapeba, momento em que ganhava destaque a preocupação com as formas que delineariam a apresentação dos índios. Com efeito, havia um cuidado especial com a postura corporal, a distância delimitada entre os alunos e entre os pelotões (movimento espacial), o figurino e os demais objetos constituintes das cenas.

Chamaram-me atenção os esforços dos professores e alunos responsáveis por cada pelotão no desempenho de seus papéis. A definição destes, entre os atores sociais, é bem distinta. Desse modo, a maioria dos alunos e professores ficou encarregada das tarefas realizadas no interior da escola, sobretudo as instrumentais, já as lideranças políticas e religiosas, condutoras das falas e dos cantos durante o cortejo, cuidavam de questões relacionadas à articulação com instituições (sindicatos e outras) para a garantia de apoio técnico, como, por exemplo, um carro de som, necessário para a condução da caminhada.

Porém, no ensaio, os papéis das lideranças como condutoras desse ritual, puxadores dos cantos e do Toré, foram desempenhados pelo professor Thiago, do 3º ano; por Nilce, esposa de Tiago e ex-aluna da escola; pelo aluno João Neto, do 6º ano, e por Adriana, funcionária e também ex-aluna da escola. No curso da observação percebi que esses atores se identificaram com as ações executadas pelos líderes, vendo-se, mimeticamente, no desempenho destes papéis.

A identificação com os papéis das lideranças contribui para a construção de uma “auto-experiência”, importante elemento no processo de incorporação de papéis e posições sociais pelos indivíduos. Nessa direção, sugerem Berger e Luckman (2004, p.103) que “ao desempenhar papéis o indivíduo participa de um mundo social”, tornado, por meio dessas ações, objetivamente real para ele. O desempenho desses papéis, vale enfatizar, se dá no âmbito de “um acervo objetivado de conhecimentos comum a uma coletividade de atores”.

Estes exemplos conduzem à observação da atuação da educação escolar na formação de jovens líderes. No contexto das escolas diferenciadas no Ceará esta função social tem se manifestado de forma muito eficaz, fornecendo ao movimento indígena um quadro de jovens lideranças bastante atuantes, com uma performance política muito bem definida. Ou seja, sabem “representar” seu povo, contando em atos performáticos seus problemas, suas origens históricas, possuindo as qualidades inerentes a um líder (expressão corporal, oratória).

Como exemplo dessa participação da escola na criação de novas lideranças, observo que o professor e líder Weibe, hoje um dos personagens mais expressivos do movimento Tapeba, iniciou sua militância ao assumir uma sala de aula, ainda na condição de professor substituto. Mesmo considerando suas experiências de vida propiciadas pelo convívio com o pai – Dourado, um promissor líder Tapeba com expressão nacional e internacional –, a sua militância adveio com a inserção no espaço da educação escolar indígena44.

Os alunos, por sua vez, não se mostram menos envolvidos com as atividades da caminhada. No ensaio geral de 2007, realizado no dia 28 de setembro pela manhã, reuniram-se os três turnos. Os alunos compareceram quase em sua totalidade, com exceção de apenas poucos adultos que estudavam a noite e trabalhavam durante o dia. O

44 O movimento indígena cearense conta com vários “quadros” gerados nas escolas indígenas. Além do exemplo citado, destacam-se no cenário político outros nomes: Fernando e Itamar Tremembé, Renato Potiguara, Eliane Tabajara, Ceiça e Jeová Pitaguary, dentre outros. Tais casos fazem lembrar a estratégia, pode-se dizer bem sucedida, das lideranças ao assumirem a docência no inicio da criação das escolas indígenas na década de 1980.

entusiasmo das crianças era evidente, sendo as mais comprometidas com a representação de seus papéis. Estas investiam todo seu potencial nas expressões corporais, no andar, no cantar, no celebrar. O final da “caminhada ensaiada” foi marcado pela dança do Toré, realizada no pátio da escola, buscando reproduzir o que ocorreria no dia do desfile.

Passados os ensaios, chegou-se o dia da caminhada. A concentração foi na praça da igreja de Santo Antônio no centro de Capuan, no início da manhã. Logo cedo, por volta das sete e meia, começaram a chegar as primeiras escolas. À medida que chegavam, eram dispostas segundo uma ordem de temas que narravam os Tapeba em seus dramas e conquistas. Tais temas evidenciavam o compartilhamento do grupo com o conjunto de preocupações mundiais (aquecimento global, desmatamento, poluição, violência), além de outros que representavam sua cultura (os artesanatos feitos da palha da carnaúba, a atividades de coleta e venda de frutas da região).

Sob um sol escaldante, às nove horas da manhã, as escolas saíram em cortejo num percurso traçado pela rua principal do distrito rumo a Lagoa dos Tapeba 2. O caminhar ritual era acompanhado pelos olhares atentos dos moradores locais, postados nas calçadas e à beira das estradas, e por um público seguidor da caminhada, formado por alunos da UECE, pesquisadores acadêmicos de outras universidades e agentes representantes da FUNAI e CREDE.

A realização da caminhada parece servir, então, ao propósito principal dos projetos de escola e sociedade Tapeba, anunciando os modos de enfrentamento das situações de preconceito (contra as experiências escolares dos índios e a própria existência de suas comunidades), bem como enfatizando o caráter prioritário da demarcação do seu território. Com a escola protagonizando o evento, o aspecto “religioso” inicial, relacionado a uma maior presença da Arquidiocese, foi sendo posto em segundo plano em favor de um sentido mais “político” da caminhada. Nessa mudança de ênfase, a memória do cacique como móvel primordial do evento deu lugar aos dramas sociais presentes dos índios, teatralizados no caminhar enquanto ato coletivo.