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O preconceito na fundação das escolas Tapeba

3 ORGANIZAÇÃO E APRESENTAÇÃO DO TRABALHO

Grupo 14: Obrigado deus Tupã por estar sempre presente

22 Nos protestos políticos como os das mães e avós da praça de maio, H.I.J.O.S (filhos pela identidade e pela

2.1 LUTAS POR ESCOLAS

2.1.1 O preconceito na fundação das escolas Tapeba

Nas histórias contadas pelos Tapeba que narram a criação de suas escolas aparece a figura de um jovem índio, aluno de uma escola não indígena do distrito de Capuan29, que teria sido discriminado por sua fisionomia pela diretora e os outros alunos. Contam que, pelo fato do garoto usar cabelos compridos, ele era perseguido na escola, sendo alvo de constantes situações de preconceito. Sob a ameaça da diretora de cortar-lhe o cabelo com uma faca, com a ajuda dos seus colegas de classe, o jovem decide abandonar a escola.

O drama da discriminação e do preconceito sofridos pelo jovem índio, história que os Tapeba fazem questão de atestar a sua veracidade dizendo ter ela ocorrido com o filho da líder Ivonilde da comunidade do Trilho, teria motivado a criação das primeiras escolas Tapeba. Esta criação teria se dado a partir do momento em que o aluno desistiu de freqüentar a escola não indígena, conforme se pode observar em um depoimento da própria Ivonilde, transcrito por Aires (2000, p. 74)

[...] a partir desse momento, quando ele começou a querer não andar na escola foi que a gente começou a querer a usar essa escola diferenciada. A gente começou debaixo daquela mangueira, da mangueira a gente fez uma palhoça aqui [...] Na época que a gente começou a trabalhar, que eu comecei a participar das reunião, comecei a entender um pouco a história, 29

Localidade pertencente ao município de Caucaia, reivindicada e ocupada pelos Tapeba como parte de seu território.

e daí foi que a gente começou com essa escola diferenciada. Que era prá que lá fora ele não tivesse preconceito, mesmo que eles dissessem alguma coisa sobre a roupa, sobre o calçado, porque eles iam com a chinela de um jeito outra do outro, eles não sentiam nenhum preconceito de voltar pra trás sem querer estudar.

A imagem não domesticada de um sujeito incivilizado, constrangido a submeter- se às normas da escola, representa, de um modo paradigmático, na narrativa de origem da escola indígena, as situações de preconceito vivenciadas cotidianamente pelos Tapeba. Dados os “sinais de primitividade” percebidos no índio na escola do branco, com sua presença incomodando e ameaçando a “normalidade” do cotidiano escolar, são expostos alguns dos motivos presentes nos conflitos que caracterizam as relações entre os Tapeba e os regionais. Em outro depoimento Ivonilde apresenta a fala da diretora dirigindo-se ao aluno indígena que resistia ao corte de cabelo: “Você quer bem ser índio! Aqui não existe índio, o que existe é negro, cabôco, afavelado, bacurim”.’ E complementa: “Isto é o significado de índio para ela.”

Além desse caso grotesco, no cotidiano de uma instituição escolar podem ser reveladas inúmeras formas (explícitas ou implícitas) de expressão do preconceito, como por exemplo, a apresentação de aspectos culturais sob a forma de estereótipos ou folclorizados; o ocultamento da história político-cultural de grupos sociais minoritários, suas formas de organização social, suas formas de resistência, religiosidade etc. Nesse sentido, aponta Santomé (2003, p.167) que a inexistência de uma reflexão sobre as diferenças étnico-culturais constitui-se numa importante lacuna a ser preenchida pela escola. Assim, segundo sua perspectiva, a ausência de uma educação pluricultural na escola se faria sentir no momento dos conflitos surgidos pelo compartilhamento ou utilização do mesmo território por diferentes grupos étnicos.

A narrativa do índio discriminado na escola do Capuan é recontada por muitos Tapeba, variando apenas a performance de cada narrador. Tendo sido espectadora de algumas versões, tanto de professores quanto de lideranças, considero a encenação dos líderes significativamente mais rica em elementos cênicos (gestos, detalhes, entonação de voz, postura corporal), possuindo, com efeito, grande poder de convencimento. É como se os líderes – e, nesse momento, é oportuno destacar que alguns professores também são lideranças –, no jogo das interações entre eles e os docentes índios, possuíssem um maior domínio do mercado lingüístico, investindo todas as suas estratégias para “levarem o melhor na luta simbólica pelo monopólio da imposição do veredicto, pela capacidade

reconhecida de dizer a verdade a respeito do que está em jogo no debate” (BOURDIEU, 2004, p. 55).

Nessa direção, sublinho a necessidade do exercício de uma escuta sensível (BARBIER, 1998) na interpretação dos discursos (verbais, gestuais e imagéticos) sobre a educação escolar diferenciada proposta por professores e líderes indígenas. Considerando- se sempre os lugares de fala de cada um desses locutores e as “leis de formação desse grupo de locutores para compreender o que pode ser dito e sobretudo o que não pode ser dito no palco – é preciso saber quem é excluído e quem se exclui”(BOURDIEU, 2004, p.55).

Na disputa simbólica instaurada nos discursos sobre a formação das escolas diferenciadas, ganham relevo, então, as descrições das diferentes competências dos indivíduos em interação. Sendo assim, a fala de Ivonilde, referenciando o início da formação do grupo, expressa algumas das incompatibilidades existentes entre professores e líderes.

Nessa época só tinha o povo. Era um povo analfabeto, mas era um povo que respeitava todo mundo. Não tinha ninguém sabido, com lei, artigo. A gente fazia um trabalho em cima do que ia aprendendo. Não tinha capacitação pra ser liderança. A gente era capacitado em cima do que a gente sabia, do que a gente ia falando na realidade.

Ivonilde faz referência ao início das mobilizações de organização do grupo Tapeba, momento de nascimento de algumas lideranças. Seu depoimento revela que os lideres construíam e expressavam seus saberes somente a partir de suas experiências de vida articuladas a realidade social. Ao salientar não haver relação entre a função de líder e escolarização, Ivonilde sugere haver um distanciamento entre os conhecimentos dos novos líderes e a realidade social, fazendo pensar sobre a ligação entre os saberes advindos com as experiências cotidianas e as do processo de escolarização, geralmente dissociadas umas das outras.

Alguns dos atuais líderes indígenas surgiram de seus engajamentos nas escolas diferenciadas, conforme apresentado em outro momento (NASCIMENTO, 2006). O projeto de escolas diferenciadas tem promovido diferentes momentos de formação possibilitando situações de interação entre líderes e professores. Os cursos de magistérios indígenas locais são exemplos desses momentos. Entre os Tapeba a experiência de formação vivenciada no curso de magistério Tapeba, Pitaguary e Jenipapo-Kanindé

provocou ou acentuou fissuras na relação entre líderes e professores, como se pode perceber no relato do professor Nildo

No decorrer desse processo o professor foi começando a conhecer qual seu verdadeiro papel na educação. Muitas vezes as idéias do professor se confrontavam com as idéias da liderança [...] A liderança que não conseguiu entender a complexidade que é a organização escolar não conseguiu ficar de mãos dadas com os professores.

O que parece ser colocado em jogo na interação entre professores e líderes é, por conseguinte, não apenas uma disputa semântica pela validade de suas interpretações, mas, sobretudo, a busca de legitimação dos seus papéis junto a comunidade. Assim, na uniformidade performada dos discursos, também ganha relevo os bens simbólicos em disputa. Ademais, nesse caso, percebo que os atores sociais estão empenhados em representar os papéis de liderança, cada um agindo, porém, conforme sua compreensão dos valores oficialmente reconhecidos como os legítimos por suas comunidades. A este respeito diz Goffman (1999, p.41) que “quando o indivíduo se apresenta diante dos outros seu desempenho tenderá a incorporar e exemplificar os valores [...] oficiais comuns da sociedade em que se processa”. Tais valores, de um modo geral, orientam as ações políticas dos Tapeba na luta pelo reconhecimento de suas escolas, como descrevo na seqüência.