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Escolano e Gairín: Uma Crítica ao Modelo Parte-Todo

CAPÍTULO II REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

2.5 Escolano e Gairín: Uma Crítica ao Modelo Parte-Todo

No artigo “Modelos de Medida para la Enseñanza Del Número Racional en Educación Primaria”, Escolano e Gairín (2005) apresentam os resultados de uma pesquisa realizada com alunos de educação primária na Espanha, entre os anos de 1999 e 2004, em que analisam alguns dos obstáculos didáticos que, segundo os autores, são decorrentes do uso do modelo parte-todo na introdução do conceito de número racional.

Os autores iniciam o texto com algumas considerações sobre peculiaridades do significado parte-todo e comparam esse significado com os significados medida, quociente e razão. Afirmam também que as dificuldades que costumam ser apresentadas pelos alunos em relação ao domínio dos números racionais podem ser causadas tanto pelo conjunto de procedimentos, relações e operações próprias dos números racionais quanto pelas decisões tomadas em relação ao processo educativo desses números. As considerações do artigo referem-se a essa segunda classe de dificuldades.

O trabalho destaca o fato de que o número racional positivo sintetiza diversos significados ou interpretações, que participam da construção desse conceito. Cita autores como Behr et al (1993) que admitem cinco significados para a fração: parte-todo, quociente, razão, operador e medida. Destaca também que Kieren (1993) considera o significado parte-todo incluído nos significados quociente e medida.

Ao descrever o significado parte-todo, os autores consideram que a apresentação da fração numa situação estática, com uma figura dividida em partes iguais, com algumas dessas partes pintadas, como tradicionalmente é

feito, exigirá do aluno realizar uma transferência entre representações gráficas e simbólicas e as etapas dessa transferência são a interpretação da figura, a realização de uma dupla contagem, e a representação do resultado dessas operações de forma simbólica. Essas tarefas conduzem ao estabelecimento de uma relação simbólica entre dois números naturais, e só depois, ao longo do processo educativo, será instituída a definição de número racional.

A construção do conceito de fração, tendo como ponto de partida o modelo parte-todo aqui descrito, tem como características a constatação de que boa parte do conhecimento é adquirido de forma visual, e também o fato de que a atividade não está associada à tarefa de medir grandezas. Segundo os autores, esses fatos produzem na aprendizagem alguns efeitos indesejados.

Os autores entendem que não considerar um processo de medição, intrínseco à própria gênese do número racional, faz com que o modelo crie obstáculos à formação de concepções adequadas, pois

• fica omitida a grandeza utilizada. Embora se esteja trabalhando com unidades de superfície, não se faz menção a isso, pois a ênfase está na dupla contagem;

• não se define uma unidade. O todo-unidade não necessita ser apresentado de forma explícita. Por esse motivo as figuras podem ser apresentadas superpostas e claramente diferenciadas segundo o atributo da cor, de modo que o aluno não tem a necessidade de reconhecer a unidade para resolver a tarefa;

• não se atribui relevância à necessidade de igualdade dos tamanhos das partes (conservação das áreas), pois o processo está centrado na cardinalidade do número de partes.

Os três aspectos acima descritos merecerão especial atenção neste trabalho. Eles estão presentes nas questões preparadas e a pesquisa pretende investigar se seus efeitos permanecem ao longo dos estágios mais avançados da escolarização. A questão da conservação de áreas, também colocada, foi estudada profundamente por Campos e Cols (1995), já citadas nesta dissertação.

Aos argumentos já apresentados, os autores somam a idéia de que o modelo parte-todo, termina por reforçar o sentido de número natural, pois a tarefa se resolve por dupla contagem e o aluno não sente a necessidade de introduzir nenhuma estrutura numérica superior à do número natural. Dessa forma, a fração não adquire o status de número, mas de uma simples relação entre dois números naturais. Destacam também que a abordagem provoca uma aprendizagem passiva, uma vez que não há uma situação problemática, e que a tarefa está preparada para assegurar o êxito agindo de uma única maneira possível.

Ao se reportarem à gênese do número racional, apresentam idéias semelhantes às propostas por Caraça (1952), embora não citem aquele autor. Destacam que as atividades humanas que permitiram o surgimento do número racional encontram-se principalmente nos domínios dos significados quociente, medida e razão. A partir dessa observação, afirmam que o significado parte-todo não surge das necessidades humanas, visto que a gênese do número racional se encontra na medida de grandezas, seja realizada diretamente, seja para expressar o resultado de uma partição, ou na comparação com grandezas já medidas, o que dá sentido à noção de razão.

A partir dessas idéias, os autores argumentam que a aparente facilidade do ponto de vista docente, apresentada pelo modelo parte-todo, termina por

introduzir alguns obstáculos didáticos, no sentido atribuído por Brousseau (1993) ao termo, que são enumerados:

1) Criam-se obstáculos à formação de concepções adequadas, pois, a) não existem frações impróprias;

b) as frações são números, não medidas. Esse fato foi descrito pela análise das respostas à questão “encontrar o número de maçãs que havia em uma cesta, sabendo que depois de retirar metade das maçãs menos 7, restaram 40”, apresentada a um grupo de alunos de um curso de formação de professores. Segundo os autores é freqüente que se obtenha a resposta de que o problema é impossível, pois 1/2 –7 é um número negativo;

c) o todo, ou unidade não é um número. No processo não se explicita o sentido e as funções da unidade, o que provoca a identificação de frações do tipo a/a com a unidade.

2) Criam-se obstáculos à separação conceitual entre número racional e número natural, pois

a) a fração é formada por dois números naturais e descreve apenas uma situação estática em que estão envolvidos dois números naturais, portanto, nem a fração nem a expressão decimal são entendidos como um ente numérico diferente dos números naturais;

b) as relações e operações com os números racionais têm os mesmos significados que com os números naturais. Os alunos tendem a estender aos números racionais as mesmas técnicas operatórias usadas nos números naturais, não percebendo as peculiaridades das operações com racionais, principalmente no que diz respeito à adição e à multiplicação.

3) Criam-se obstáculos à formação de idéias abstratas, na medida em que não provêm situações que facilitem a passagem do mundo dos objetos para o mundo das idéias, e assim os alunos adquirem crenças do tipo

a) os conceitos são as técnicas a eles associadas; b) os conteúdos úteis são os procedimentais.

A partir dos pressupostos aqui apresentados, os autores descrevem uma seqüência de ensino, com uma proposta alternativa de abordagem do ensino de frações, preocupada em reduzir os efeitos apontados como desvantagens do modelo parte-todo. As atividades tiveram a participação de 160 alunos e 5 professores.

Este texto não pretende descrever a seqüência, mas apenas apontar os fatores que condicionaram sua construção e comentar os resultados obtidos. São citados três grandes objetivos para a seqüência:

1) Favorecer a construção de concepções adequadas, ao propor modelos que têm como característica comum a medida de grandezas. Deste modo se dispõe de um mundo de objetos físicos para justificar os resultados matemáticos.

2) Potencializar a idéia de número racional, provocando uma ruptura entre as concepções de número natural e de número racional, na medida em que se destaca que os naturais servem para contar, e os racionais, para medir.

3) Facilitar a construção de idéias abstratas, entendendo que os modelos de aprendizagem em que o aluno interage com o mundo dos objetos facilita a construção mental dos números racionais e permite a avaliação semântica de qualquer expressão simbólica em que esses números apareçam.

Para atingir esses objetivos, a seqüência leva em conta a gênese histórica do número racional e procura priorizar modelos que forneçam suportes físicos estáveis para que os alunos construam seu conhecimento. Foram montados três modelos, com objetivos bem definidos, levando em conta os níveis de desenvolvimento cognitivo dos alunos nas respectivas idades:

1) Modelos de medida direta, na quarta série (alunos de 10 anos). O número racional surge da necessidade de comunicar o resultado da realização de uma ação: medir uma grandeza.

2) Modelos quociente, baseado no resultado da ação de repartir em partes iguais, utilizado no quinto ano (alunos de 11 anos). Estes modelos permitem introduzir a notação decimal e conectá-la com a fracionária. 3) Modelos de razão, no sexto ano (alunos de 12 anos). Estes modelos

vinculam o número racional à idéia de proporcionalidade.

Os autores propõem que as atividades comecem pela notação fracionária, pois o início pela notação decimal traria algumas questões de difícil resposta do tipo “como se realiza a notação efetiva da fração a partir da notação decimal?” ou “como justificar a existência de números racionais não decimais?” . Propõem também que as atividades tenham início com a grandeza comprimento, para que as técnicas de medição sejam as mais simples possíveis e o aluno possa se concentrar exclusivamente na idéia de fração.

Merece destaque a sugestão de incorporar a idéia de cardinalidade como uma

nova grandeza, considerando que o modelo baseado na cardinalidade apresenta características diferentes dos outros modelos, baseados em grandezas contínuas, porque o fracionamento da unidade não mais se pode fazer em tantas partes quanto se deseja, mas apenas no número de divisores do cardinal da unidade.

Essa grandeza fornece uma nova perspectiva do significado de fração e é um conhecimento socialmente útil e presente no mundo real.

Os autores ainda sugerem que o ensino das frações deve anteceder o ensino do Sistema Métrico Decimal e sintetizam a descrição informando que as atividades se dividiram em três grandes grupos: construção do sistema de representação fracionário com grandezas contínuas; relações de equivalência e ordem de frações; e construção do sistema fracionário de representação com a grandeza cardinalidade.

Como conclusão, os autores argumentam: 1) que o modelo apresentado, baseado nos significados medida, quociente e razão, proporciona o desaparecimento dos obstáculos citados inicialmente, pois permite que as frações impróprias tenham o mesmo status que as próprias, como expressão da medida de uma grandeza; 2) que as frações sejam vistas como entes numéricos associados à idéia de medida e destacam que a unidade tem um papel essencial para interpretar as frações; 3) que ficam bem caracterizadas as diferenças entre os números racionais e os naturais, bem como a idéia de frações equivalentes, através de atividades manipulativas.

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